Factotum, de Bukowski foi editado primeiro em Portugal, eliminando a lacuna no panorama editorial do país em relação a um relevante escritor do século XX
Pedro Ferreira - esquerda.net
Provavelmente, Charles Bukowski (1920-1994) não fez tudo o que gostaria de ter feito na vida e menos ainda terá feito tudo aquilo que sempre detestou.
Não é por isso uma contradição dizer que Factotum (que significa faz tudo) é um livro, o seu segundo livro, marcado por uma rebeldia que por vezes parece não conhecer limites e por uma crítica social e política às sociedades cujos códigos de conduta são invariavelmente caminhos que desembocam na frustração.
Enquanto escritor, Bukowski tem uma obra que não sendo linear do ponto de vista da narrativa- o que lhe permitiu vencer a banalidade e consequentemente a mediocridade – acaba quase sempre asfixiada num universo de excessos onde o álcool, o sexo e a “vagabundagem” são simultaneamente um grito de liberdade e uma forma nada ortodoxa de sobreviver às hostilidades do quotidiano.
Em Factotum, o escritor mergulha uma vez mais nos limites da sobrevivência, num dia a dia marcado pelas deambulações à procura de emprego e onde se vê confrontando com patrões sem escrúpulos, salários baixos e trabalhos onde a falta de criatividade só é suportável ancorada no torpor causado pela bebida.
A personagem principal deste livro é Henry Chinaski o seu alter egopresente noutros livros e por isso não será difícil adivinhar que não foi necessário usar a imaginação para o escrever bastando-lhe colocar em forma de letra as suas múltiplas experiências, mesmo que não estejamos perante uma obra com caráter autobiográfico.
Neste livro, Chinaski é ainda muito jovem mas revela já um conhecimento muito apreciável da vida. Sobretudo dos alçapões existentes na geografia por onde se move à procura de um lugar para escrever. Ser jornalista e/ou escritor são as suas vontades (e mais à frente perceberão porque não é usada a palavra ambição) mas pelo caminho depara-se apenas com fugazes trabalhos desqualificados de onde sai ou é despedido por desinteresse ou quando consegue juntar algum dinheiro para procurar um quarto barato numa pensão de reputação duvidosa. E é nesses pequenos espaços que mistura o prazer fugaz com sérias reflexões sobre o que o rodeia que é também aquilo que nos vai cercando.
Cáustico e fazendo uso de uma linguagem por vezes despudorada, o escritor faz neste livro uma profunda critica sobre o comportamento das pessoas, ou melhor sobre as atitudes que elas são obrigados a ter para garantir os patmares mínimos de subsistência.
Charles Bukowski é um escritor inclassificável e menos ainda passível de ser enquadrado numa qualquer corrente literária porque a sua sede de liberdade era absoluta e grande o desprezo revelado pelos comportamentos sociais impostos que não passavam para ele de grilhetas mais ou menos invisíveis que nos deixam ser pouco mais do que escravos, ainda que pensemos o contrário.
Mordaz e desconcertante
A sua crítica chega a ser tão mordaz quanto a descrição desconcertante que faz de um centro de emprego algures em Los Angeles onde a determinada altura se dirige na expetativa de encontrar um balcão destinado a pessoas sem ambição. Ou então quando é chamado para entrevistas de emprego e começa de imediato a perder a paciência quando o primeiro ato passa pelo preenchimento de formulários com os seus dados pessoais.
E assim parece que entramos num círculo fechado onde a sobrevivência se joga a cada passo de uma forma precária e bocejante.
À superfície talvez seja essa a sensação que se tem quando avançamos na leitura deste livro. Mas nos alicerces em que se funda a trama de Factotum há um enorme espaço onde se abre a possibilidade para uma discussão à volta daquilo que muitas vezes aceitamos apenas porque nos falta a coragem para o confronto.
E mesmo que o ar por onde se move o jovem Chinaski chegue a ser irrespirável, paira sempre a interrogação sobre a responsabilidade dos “precipícios sociais” para onde muitas vezes somos empurrados. Sem dor, porque afinal movimentamo-nos num mundo onde muitos afirmam que só há lugar para dois tipos de pessoas: as que vencem e as que cavam a sua própria sepultura. As primeiras são glorificadas com o lustro da competência e para as segundas fica reservado o lugar dos incompetentes e fracos e por isso incapazes de encontrar o seu lugar na arena da competição onde nos encontramos.
E será porventura isso que nos mata antes do tempo mesmo que esta morte não seja em sentido literal, o que confere uma importância acrescida a pessoas como Charles Bukowski que nunca procurou ser consensual em termos literários e legou-nos uma obra que de forma despretensiosa mas suficientemente incisiva nunca deixou de nos alertar para esses desconcertos tão característicos da vida, ou melhor da vidinha como um dia lhe chamou Alexandre O'Neill.
Factotum abarca tudo isto e por isso é um excelente livro.
Créditos da foto: .
Carta Maior
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