O sociólogo Edwaldo Alves é um militante político fulltime, sempre predisposto ao debate, transitando com desenvoltura entre a conciliação e a disputa aberta. Filiado ao Partido dos Trabalhadores, foi um dos principais articuladores políticos do governo municipal nas gestões dos prefeitos Guilherme Menezes e José Raimundo Fontes. Ex-preso político, torturado pelo regime militar que vigorou 21 anos no Brasil, Edwaldo Alves sentiu na pele os efeitos daninhos de um Estado de Exceção.
Convidado pelo Diário a colaborar com o tema que vem ganhando expressão no Brasil – os reiterados pedidos de intervenção militar pelos simpatizantes de Bolsonaro e os resultados recentes da pesquisa que mensurou ser grande a adesão de brasileiros a regimes autoritários – Edwaldo fez uma leitura profunda do cenário político e social brasileiro das últimas décadas e, sem tergiversar, fez a devida autocrítica a determinados comportamentos das esquerdas brasileiras, especialmente no tocantes às alianças.
Em sua concepção, essa “aspiração” autoritária sempre existiu na sociedade brasileira, mesmo antes de 1964 como no pós-ditadura. Mas, ao analisar os resultados atuais da pesquisa, ele argumenta que “um dos elementos do recrudescimento desse desejo é o grande desencanto e decepção que amplos setores das classes dominantes e da população iludida tiveram com os resultados do golpe contra Dilma”. “Todos estão sentindo na pele que as coisas pioraram e começam a perceber que os golpistas tinham o objetivo de livrarem-se da apuração de seus próprios crimes”.
Abaixo, a íntegra da entrevista com Edwaldo Alves.
DIÁRIO: Qual sua opinião sobre as cada vez mais crescentes manifestações favoráveis à intervenção militar?
EDWALDO ALVES: As crescentes manifestações favoráveis à intervenção militar são um elemento importante da atual situação brasileira. Creio que elas cresceram muito após o golpe midiático/parlamentar que afastou Dilma Roussef da presidência. Claro que essa aspiração sempre existiu na sociedade brasileira. Tanto antes de 1964, após a sua derrota e mesmo no pós-ditadura quando Brizola denunciava os “filhotes da ditadura”. Entendo que um dos elementos do recrudescimento desse desejo é o grande desencanto e decepção que amplos setores das classes dominantes e da população iludida tiveram com os resultados do golpe contra Dilma. Na pele todos estão sentindo que as coisas pioraram e começam a perceber que os golpistas, antes de mais nada, tinham o objetivo de livrarem-se da apuração de seus próprios crimes, utilizando descaradamente o poder institucional para barrar qualquer processo e agora percebe-se que os verdadeiros corruptos e ladrões estão no poder.
DIÁRIO: Pesquisa recente mostrou que há uma tendência majoritária da população brasileira para apoiar regimes autoritários. O que explica este comportamento social?
EA: Além disso, conforme a pesquisa indica, é muito forte a tendência popular de considerar que a sua situação pessoal e as questões nacionais só podem ser resolvidas com o autoritarismo e a força contra aqueles que, no seu entender, são os responsáveis pelos seus problemas e pela difícil realidade nacional. É mais fácil achar um culpado do que a solução. Entendo que não se pode analisar essa tendência sem considerar a formação do estado e do povo brasileiros. A instituição estatal foi praticamente “importada” de Portugal, a elite dominante governava de costa para o país e voltada para Portugal, França, Inglaterra e finalmente os Estados Unidos. O Brasil foi construído economicamente em 300 anos de trabalho escravo, um povo heroico que inicialmente não tinha nenhuma identidade com o lugar para onde foi arrastado. As alterações históricas e sociais, a passo de tartaruga, sempre foram resultados de acertos entre as classes dominantes, as revoltas populares foram violentamente massacradas e seus líderes mortos e esconjurados para todo o sempre como infiéis, assassinos e bandoleiros.
DIÁRIO: O que resultou disso?
EA: Um país profundamente desigual, injusto, violento, com um desenvolvimento econômico e social que sempre acentua as diferenças, empobrecendo os mais pobres e enriquecendo cada vez mais os ricos. Logo, cabe perguntar: qual a raiz da violência? Por que aqueles que sempre viram o autoritarismo como única forma de resolver, angelicalmente, passariam a enxergar outras formas mais humanistas de solução? Portanto, não aceito a tese do “povo-cordeiro”, do “povo malandro”, do “povo vagabundo” ou do “complexo de vira-lata”, como se o brasileiro conscientemente quisesse submeter-se a si mesmo e a outrem à violência e ao arbítrio. A pesquisa aponta que do ponto de vista racial o “mulato” é o mais propenso a desejar soluções autoritárias! Meu Deus, sou eu! Comigo não, violão.
DIÁRIO: O Brasil migrou do regime militar para a democracia numa transição negociada pelo alto. Faltou pedagogia das esquerdas para traduzir o significado do regime autoritário nesse período democrático pós-Carta de 1988?
EA: Realmente, o Brasil migrou da ditadura para a democracia numa transição negociada pelo alto. Mas, deve ser observado que os protagonistas desse acordo foram a parte menos insensata do sistema militar e do outro lado a oposição legal altamente conciliadora. Aliás, preso no DOI-CODI senti de perto e na carne o alto grau de disputa entre os militares. Um dia ainda vou escrever sobre isso. Gosto de observar que as propostas da oposição à ditadura, inclusive dos setores mais avançados, triunfaram totalmente: desmonte dos órgãos repressivos, revogação do Ato institucional n.5 e seus penduricalhos, revogação da Lei de Segurança Nacional, da Lei de Imprensa, anistia política, liberdade partidária e de organização, liberdade de opinião, constituinte, eleições diretas e tantas outras medidas de cunho democrático. Evidentemente essas conquistas foram ao longo do tempo de acordo com a correlação de forças de cada momento. Infelizmente, a transição negociada não alcançou a desejada apuração dos crimes da ditadura. Torturadores, assassinos, aproveitadores, agentes clandestinos continuam impunes esperando o tempo apagar seus crimes. As diversas Comissões da Verdade instauradas no Brasil inteiro, inclusive em Conquista, foram limitadas por aqueles que ainda têm força no poder de Estado e pela falta de prioridade política de governos democráticos. Com isso os familiares de desaparecidos ainda não tiveram o direito de enterrar os seus mortos.
DIÁRIO: Há uma associação direta entre o desejo de segurança pública e regimes autoritários na perspectiva das pessoas entrevistadas pelo DataFolha. A população já interpretou que há um Estado Paralelo do crime e que estamos numa Guerra Civil não declara?
EA: Não se trata apenas de um estado paralelo do crime. Infelizmente, já chegamos ao ponto de um sistema de associação do Estado com o crime organizado. Particularmente, aquele relacionado ao tráfico de drogas. Apenas em uma apreensão em portos de Santa Catarina contabilizou-se em dez mil toneladas de cocaína. Traduza-se isso em dólares e vai se perceber que o Pablo Escobar é fichinha diante do novo esquema. O Brasil, segundo alguns órgãos especializados, é o principal ponto de distribuição das rotas internacionais. Por que a apreensão de 500 quilos de pasta de cocaína em helicóptero de propriedade de um deputado e um senador (os Perrelas), e a mesma quantidade em um avião que partiu da fazenda do atual ministro da agricultura sumiram da grande mídia e o assunto foi esquecido? Por que não se discute seriamente a possibilidade da descriminação do uso de drogas. Ao crime organizado, em simbiose com setores do Estado, acrescenta-se o pequeno e violento marginal, fruto de uma sociedade profundamente injusta e cuja história de vida só lhe reservou violência, frustrações e falta de oportunidades. A sociedade de consumo é pródiga em mercadorias e serviços que lhe são sempre negados, inclusive agredindo-o diuturnamente de que é vencedor e tem valor aquele que consome e está na “moda”. Logicamente, o cidadão que está atrás das grades de sua casa não quer saber das causas e da origem da insegurança, preocupa-se com a sua segurança e da sua família. Para acabar com o mal é necessário eliminar aquele que o pratica. Entendo perfeitamente a necessidade de aperfeiçoamento, aparelhamento e estruturação material e pessoal dos organismos de segurança, mas além da humanização das ações policiais essas medidas devem ser acompanhadas de mudanças profundas nas condições de vida e de prestação de serviços básicos para a população, principalmente a mais pobre. Ouso supor que ainda teremos muitos anos, talvez décadas, para que um governo realmente popular enfrente a questão de segurança pública e diminua o sentimento do povo de que estamos diante de uma verdadeira guerra civil não declarada.
DIÁRIO: Qual o papel da grande imprensa e das mídias alternativas nessa percepção de falta de segurança da população?
EA: A grande imprensa sempre transformou o crime e a violência, às vezes, o inusitado em mercadoria que vende jornais. O grupo Folha tinha a “Folha da Tarde” e as “Notícias Populares”, o Estadão tinha o “Jornal da Tarde”, havia “O Dia”, dizia-se que eram jornais que se fossem torcidos sairia sangue. Na TV até hoje há muitos programas que não são diferentes desses veículos de comunicação. Dessa forma, violência, crimes, insegurança transformam-se em banalidades ou acontecimentos pitorescos que desinformam a população. Não acredito que a grande imprensa vai deixar esse papel, como qualquer outra empresa capitalista o seu objetivo final é o lucro. A mídia alternativa provavelmente terá um papel crescente nos meios de informação, os diversos instrumentos individuais poderão ser positivos dependendo de quem os manipula. Não sei avaliar ainda a ação de grandes empresas que tendem a crescer no meio da informação eletrônica. Achei interessante, mas sem simpatia, que jovens secundaristas na Macedônia elaboraram um esquema de criar e vender notícias falsas que circularam o mundo. Segundo informações, essas notícias tiveram grande influência nas eleições americanas que elegeram essa coisa chamada D. Trump e também no referendo britânico que decidiu pelo afastamento inglês da comunidade europeia.
DIÁRIO: Ao assumir o governo, a esquerda se afastou bastante das bases sociais e acabou cooptando para dentro dos governos (federal, estaduais e municipais) lideranças políticas que atuavam nessas bases. Este comportamento não acabou por abrir esses setores que realizavam o debate para novas lideranças menos identificadas com os valores da esquerda?
EA: Entendo que ainda faz falta uma análise rigorosa das alianças políticas, principalmente as eleitorais, realizadas pelo campo democrático e progressista, em particular o PT. Ao sentir-se confinado eleitoralmente nos limites de 30% dos votos nas condições mais favoráveis, as forças de esquerdas admitiram a inevitabilidade de aliar-se aos setores conservadores e ligados ao grande capital para triunfar eleitoralmente, de acordo com as regras e a estrutura institucional do país. Os enormes avanços conseguidos nos governos petistas são inegáveis e já difundidos e não cabe aqui detalhá-los. Mas, quando se apresentou a oportunidade os setores reacionários, inclusive dentro da aliança governista, logo buscaram o golpe para fazer retroceder as conquistas em favor dos trabalhadores e do povo. Resta verificar as consequências negativas dessa composição política como a adoção de todos os métodos da política das classes dominantes, em particular a transformação de eleições democráticas em campanhas de marketing político a custos altíssimos cujos recursos eram captados no meio empresarial. Não se pode negar que essas diretrizes afastaram a nossa base social e seus movimentos populares do partido e o partido dela, menosprezando o papel fundamental das lutas populares e dos trabalhadores no processo de surgimento, desenvolvimento e vitórias do partido. O problema no meu entendimento não residiu em cooptar lideranças populares dos movimentos sociais para o governo porque o melhor quadro de esquerda, na minha opinião, é aquele nascido e formado nas lutas do povo. O Lula é o exemplo mais marcante. O erro foi abandonar os movimentos sociais, tira-se a liderança, não se preocupa na formação, desenvolve-se uma política que não agrada o movimento, a liderança se desgasta e a política perde o seu rumo. Essa situação estabelece condições favoráveis para o surgimento de novas lideranças muitas vezes não identificadas com o pensamento democrático e mesmo socialista.
DIÁRIO: Há uma evidente política da mídia nacional em desmoralizar a política e os políticos, buscando assumir a condição de “espaço público” por excelência. Esta descrença num movimento democrático a partir da representação política não deu combustão a uma frustração coletiva que assume essa feição de apoio a regimes autoritários?
EA: Tenho insistido muito que não existe a “não política”. É o mesmo que negar a vida social. O ser humano existe porque se organiza voluntária ou involuntariamente em sociedade por meio da política, seja lá qual for. Sem dúvida, as condições existentes como a crise, a desigualdade social, a falta de cultura, a prepotência dos poderosos, a corrupção e o favoritismo formam as condições favoráveis para certas correntes antidemocráticas e a mídia oficial negarem a ação política transformando-a em sujeira, sacanagem e meios de alguns se aproveitarem dos outros. Ai, surge uma figura inexistente o “apolítico”, o puro, aquele que vai governar sem fazer política e portanto não depende da participação popular e nem da democracia. Ao lado disso, observa-se a total decadência e a completa “distioração” (para agradar os baianos) das instituições burguesas arrastando partidos, políticos, leis, representações, etc., e infelizmente abrindo as portas para aventuras golpistas de salvadores da pátria de direita. Por sinal o vereador David Salomão não passa da mistura de tolice com demagogia. Não é levado a sério, mas o que ele defende deve ser encarado com a maior seriedade, principalmente quando oficiais de alto coturno do Exército fazem declarações públicas pregando a intervenção militar. Não se esqueça que foi um outro general Mourão, que também não era encarado com seriedade pelos seus pares, que iniciou o golpe que durou 21 anos e tantas desgraças trouxe para o nosso povo.
DIÁRIO: A Operação Lava Jato e as ações do Ministério Público Federal e da Polícia Federal, com um grande número de prisões e “caça às bruxas” contribuiu para este sentimento generalizado de descrença da política enquanto instrumento de condução dos destinos coletivos?
EA: A operação Lava-jato é um dos elementos importantes para a tentativa espúria de diminuir a política e afastar dela aqueles que considera indesejáveis. Infelizmente, a reestruturação material e pessoal, os recursos, a independência que os governos petistas de Lula e Dilma forneceram à policia federal, ao ministério público e à própria Justiça Federal não estão sendo utilizados somente para seus objetivos afins. A partidarização, o atendimento de objetivos políticos espúrios aliados à busca desenfreada pelos holofotes e à notoriedade transformaram essas entidades públicas em instrumentos para ofender a democracia impedindo a previsível vitória eleitoral de Lula em 2018. Certamente as forças de direita e antidemocráticas não aceitam que após todos os esforços para golpear a presidenta Dilma e instaurar uma nova política o Lula retorne à presidência da república, em novas bases, com o desenvolvimento econômico com distribuição de rendas, a valorização dos trabalhadores e trabalhadoras, o fortalecimento das políticas e programas sociais e a recuperação do Brasil no cenário internacional com o restabelecimento da nossa política externa independente e soberana.
Diário Conquistense
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