domingo, 21 de janeiro de 2018

Clara Nunes, nossa cantora maior, que foi sem nunca ter sido

21 de janeiro de 2018

Seu poderoso canto que retumbava nos terreiros de Candomblé não era tão bem quisto nem pelas famílias de “bem” e nem pela “inteligência”. Puro preconceito


Por Julinho Bittencourt


Essa conversa de a maior cantora, o maior guitarrista, o maior isso, o maior aquilo é um terrível engano que só serve para que renunciemos à nossa imensa diversidade. Temos vários “maiores”, diversos grandes, enormes. Trata-se, talvez, da nossa necessidade cristã de eleger um grande herói, um Deus, um salvador, um maior de todos que venha a nos redimir. O maior é único, portanto, parte da questão fica resolvida.

No caso das cantoras brasileiras, poucos são aqueles que não concordam ou que se arvoram a contestar: “a maior cantora brasileira de todos os tempos é a Elis Regina”. E quem diz o contrário é tratado como ateu.

Bem, não há dúvida que a nossa pimentinha foi uma das nossas grandes feras. Elevou a nossa música a outro patamar etc etc e etc. No entanto, e sempre há um no entanto, há um time – reduzido, é certo – de cantoras que disputam ali, com a Elis, o posto de grande, e isso também é incontestável.

Uma delas, e é disso que se trata o nosso texto de hoje, além de se encontrar no mesmo patamar das maiores e melhores, nos prestou um grande serviço e, talvez por isso mesmo, não apareça neste panteão das grandes como deveria.

Falo de Clara Nunes e a sua vigorosa e reveladora música, que evoca nossos antepassados, nossos cânticos e, claro, nossos orixás. Por ser ela – e disso uma amiga me lembrou muito bem – “macumbeira”, acabou execrada dos lares de “família”. Seu poderoso canto que retumbava nos terreiros de candomblé (com todo o respeito à diversidade, não se tratava de macumba) não era tão bem quisto nem pelas famílias de “bem” e nem pela “inteligência”.

Além disso, era também uma contara de gênero, ou seja, de samba – vá lá um samba meio “macumbeiro”, mas sim um samba, mal que serpenteou a carreira de Beth Carvalho, Alcione entre outras. Bethânia mesmo, por ocasião do aniversário de 70 anos da Alcione, revelou que pediu à gravadora que a querida Marrom participasse de um disco seu, lá na década de 80. Os cartolas do disco ficaram abismados e preocupados. Alcione era uma cantora de samba. Bethânia bateu o pé e a gravação foi sucesso, furando todas as expectativas e barreiras.

No caso de Clara Nunes, a coisa era ainda pior. Sua música – que até mesmo o guitarrista Hélio Delmiro, que tocou em vários dos seus discos e virou evangélico, disse que jamais faria discos assim novamente – era comprometida com a raiz das raízes afro-brasileiras. Ninguém, no espectro da nossa música, foi tão longe quanto ela. A exceção talvez seja Gilberto Gil, Obá de Xangô do Ilê Opô Afonjá. Mas o fez já consagrado, o que não tira seu mérito.

“Quem ouviu um soluçar de dor no canto do Brasil”, o “Canto das Três Raças” de Clara Nunes era algo tão forte e ousado que perturbava até os nossos menos ruins. Ela levou para o horário nobre o canto das sereias, “Iansã, Cadê Ogum? Foi pro mar! Mas Iansã, Cadê Ogum? Foi pro mar!, Filhos de Gandhi, badauê, Ylê ayiê,malê debalê, otum obá”.

Tudo vibrava num transe e num timbre inigualável. Clara foi grande, enorme quanto qualquer outra. E só não enxerga isso quem se nega ao nosso Brasil mais profundo, com todo o encanto de seu povo.


Revista Forum



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