quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Desemprego dispara e sobe mais de 20% entre maio e julho, aponta IBGE

A pandemia do coronavírus e a crise econômica que o Brasil enfrenta fizeram o número de desempregados disparar no país, atingindo 20,9% entre maio e julho, revelou o IBGE


20 de agosto de 2020, 11:11 h Atualizado em 20 de agosto de 2020, 12:11

247 - O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou nesta quinta-feira (20) que o número de desempregados disparou no país, atingindo 20,9% entre maio e julho. O alto índice é reflexo da pandemia do coronavírus e também fruto da crise econômica que o Brasil enfrenta. 

De acordo com o levantamento, publicado no G1, o país encerrou o mês de julho com 12,2 milhões de desempregados, cerca de 2,1 milhões a mais que o registrado em maio, quando somavam, aproximadamente, 10,1 milhões de pessoas.

A pesquisa também indicou que o número de trabalhadores ocupados teve queda de 3,5% entre maio e julho, passando de 84,4 milhões para 81,4 milhões, e que país perdeu 1,9 milhões de trabalhadores informais em três meses. 

Além disso, houve queda de 42,6% no número de trabalhadores afastados devido ao isolamento social e 3,2 milhões de trabalhadores afastados ficaram sem remuneração em julho. 


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A vergonhosa sugestão do financismo

Ao contrário do que sugerem os convidados para o Baile da Ilha Fiscal de 2020, o Brasil precisa urgentemente de uma política econômica que privilegie as despesas públicas como forma de estimular a retomada das atividades. Fora disso, nada nos resta senão a continuidade do caos.


18 de agosto de 2020, 16:52 h

A edição dominical dos grandes jornais costuma conter espaços para artigos de maior densidade e capacidade de análise. Apesar das profundas transformações incorporadas pelos avanços tecnológicos, o fato é que mesmo em meio digital encontramos por ali momentos de maior reflexão nos finais de semana.

Pois a Folha de São Paulo do domingo 16 de agosto trouxe para seus leitores um artigo, sob a forma de um abaixo assinado, onde algumas dezenas de economistas se manifestavam a respeito de seus receios quanto ao quadro atual e futuro da economia e da sociedade brasileiras. Compreensível a preocupação. Afinal, quem não se sente incomodado com o avanço da pandemia e com as evidentes e sucessivas incompetências do governo em lidar com o tema tão grave quanto urgente?

Naquele mesmo dia, os registros oficiais do próprio Ministério da Saúde escancaravam a tragédia de 108.879 mortes provocadas pela covid 19. Esse deveria ser mesmo o centro da preocupação de todos aqueles e aquelas sinceramente envolvidos em apontar soluções para a crise que o Brasil atravessa atualmente. Como minorar o drama das dezenas de milhões de famílias que não contam com renda suficiente para suportar o necessário confinamento social? Como encontrar soluções para o quadro iminente da grande maioria das micro, pequenas e médias empresas no País, que não contam com capital de giro e condições operacionais para seguir em frente e atravessar o período de dificuldades? 

Financismo: mais do mesmo.

Seria mesmo razoável que esses economistas colocassem sua cabeça a funcionar e buscassem alternativas para superar a tragédia de mais de 13 milhões de desempregados no mercado de trabalho, para além das péssimas condições de remuneração daqueles que ainda conseguem alguma ocupação na informalidade e na precariedade. Quem, em sã consciência, não lançaria mão de toda sua experiência e capacidade para formular políticas que apontassem para a busca de recursos tão exíguos na área da saúde, da educação e outros domínios das políticas sociais?

No entanto, nem tudo aquilo que a maioria da população considera como razoável ou racional passa pela cabeça obtusa de setores das elites tupiniquins. Infelizmente, mais uma vez, aqueles que ocupam o andar de cima de nossa injusta e desigual estrutura social vêm a público vomitar toda a sua sanha contra as necessidades da maioria da população. Na verdade, são os mesmos que vociferavam seu ódio contra programas de transferência de renda como o Bolsa Família ou contra as consequências de políticas - tímidas, inclusive - de redução da desigualdade, a exemplo da recuperação real do poder de compra do salário mínimo. Quem não se lembra das preconceituosas praguejadas contra os “aeroportos transformados em verdadeiras rodoviárias” ou os direitos proporcionados às empregadas domésticas ou as cotas introduzidas nos processos de acesso às universidades públicas. Ou? Ou? Ou? A lista dos incômodos é enorme.

Mas não! O documento não manifesta um único ponto de preocupação com essas questões tão fundamentais para o presente e para o futuro de nossa sociedade. O grande temor dos que assinaram o manifesto da vergonha é com o risco, segundo eles, de ser colocado em xeque um dos elementos basilares da austeridade fiscal destruidora em nosso tempos. O documento foi elaborado com a missão de tentar salvaguardar a Emenda Constitucional nº 95, número com que foi recepcionada a famigerada PEC do Fim do Mundo. Para quem não se lembra, no dia 13 de dezembro de 2016, no apagar das luzes do ano que foi marcado pelo impedimento de Dilma Roussef, a dupla Temer & Meirelles conseguiu convencer o Congresso Nacional a aprovar uma proposta que introduzia no texto constitucional uma amarra destruidora. Estava decretado o congelamento dos gastos orçamentários não financeiros pelo longo período de 2 décadas. Uma loucura!

Manter a EC 95: nada mudar!

Pois agora - antes tarde do que nunca! - vários setores do próprio establishment econômico já começam a perceber as dificuldades que o famigerado Novo Regime Fiscal imposto pela EC 95 estabelece para a recuperação da atividades da economia de forma geral. Assim, aos poucos vai tomando forma e corpo uma ampliação da consciência de revogar esse dispositivo. Mas os interesses do financismo não perdem tempo. Inconformados com a possibilidade de perderem mais uma benesse sob a forma de orientação de política econômica, articularam o tal manifesto anacrônico e equivocado. As assinaturas pertencem a um universo restrito composto por diretores de bancos e demais instituições financeiras, conselheiros de grandes conglomerados do capital, professores e pesquisadores de instituições marcadas pela adesão à ortodoxia conservadora e por aí vai.

As passagens seriam cômicas, caso não fossem trágicas. Os autores parecem viver em um universo paralelo, pois o risco de desorganização da economia e recessão viriam, segundo eles, no futuro caso essa atitude “irresponsável” de acabar com o teto de gastos fosse adotada agora. Para esse pessoal, o Brasil vai muito bem, obrigado.

(...) “A escolha desse caminho, a partir de um ponto em que a dívida bruta do governo será de 95% do PIB, levaria à rápida desorganização da economia e ao aprofundamento da recessão.” (...)

Ao perceberem que o teto de gastos coloca problemas para qualquer governo de plantão, independentemente de sua orientação, o documento apresenta o verdadeiro pulo de gato, mais um exemplo de recorrer à malandragem destruidora. Já que não querem mexer no limite superior das despesas imposto pela EC 95, eles sugerem então um rebaixamento do piso das mesmas. Na prática, um corte horizontal dos gastos não financeiros para reduzir seu volume e “acomodar” o Orçamento da União. Em termos concretos, isso significa a ladainha de sempre: cortar salários dos servidores, reduzir despesas com previdência e assistência social, comprimir gastos com saúde e com educação.

(...) “uma única proposta que pudesse caracterizar o estado de emergência fiscal e disparar gatilhos para contenção das despesas obrigatórias do Orçamento já em 2021.” (...)

Assim, o documento é bastante claro em seu intento. Para facilitar a aceitação de mais esse sacrifício pela maioria, chama agora de “estado de emergência fiscal”. Com isso, pretende dar continuidade ao processo de destruição do Estado e de desmonte das políticas públicas, sem uma única menção à vergonhosa destinação de centenas de bilhões às despesas financeiras. Segue o baile com redução de rubricas para as áreas sociais e investimentos públicos tão necessários, ao passo que o pagamento de juros pelo Tesouro Nacional e pelo Banco Central continua livre, leve solto, sem nenhum tipo de limitação.

Manter o teto e rebaixar o piso!

O documento pretende operar como suporte político para Paulo Guedes, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre. Afinal, o superministro está com sua imagem desgastada junto ao Presidente, em especial depois que ameaçou com o risco de impeachment, caso Bolsonaro seguisse dando ouvidos a certos conselheiros que recomendam “flexibilizar” o teto. O detalhe é que Guedes fez essa fala ao lado do Presidente da Câmara dos Deputados, responsável por acolher os pedidos de impedimento.

(...) “Precisamos rebaixar o piso, para que o teto não colapse, se não em 2021, por opções equivocadas de política, nos próximos, por excesso incontornável de despesas obrigatórias.” (...)

Na direção contrária do que vem sendo colocado em prática na grande maioria dos países do mundo, a elite de financismo em nossas terras resiste à mudança. Insiste em manter seus privilégios, ainda que isso signifique a devastação do País. Mantém o discurso catastrofista do medo, acenando até mesmo com o espantalho do retorno da inflação. Sentindo a possibilidade de derrota, os arautos do austericídio esboçam até mesmo uma chamada militante, uma saída pouco usual para seus tradicionais punhos de renda:

(...) “A hora é agora e não há mais nenhum tempo a perder.” (...)

Para eles, é chegada a hora de não mudar nada. Esse é momento de não apenas manter o teto de gastos, mas também de introduzir uma redução ainda maior das despesas por meio do rebaixamento do piso.

Realmente, não há tempo a perder. Por isso é essencial que as forças progressistas e o movimento social reforcem seu movimento para que seja revogada a EC 95. Não existe caminho para a superação da desgraça em que Bolsonaro e Guedes nos meteram sem recuperação do protagonismo do Estado.

Para tanto, ao contrário do que sugerem os convidados para o Baile da Ilha Fiscal de 2020, o Brasil precisa urgentemente de uma política econômica que privilegie as despesas públicas como forma de estimular a retomada das atividades. Fora disso, nada nos resta senão a continuidade do caos.


Paulo Kliass
Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal

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10 x 0 : Justiça Brasileira pode conter uberização predatória

Assim como na Califórnia, juiz gaúcho obriga 99 a indenizar motorista assaltado e afasta alegação da empresa, que tentou isentar-se de responsabilidade


Por Redação Carta Maior                                                                                        20/08/2020 13:51

Teria o Judiciário brasileiro decidido que as operadoras de aplicativos de transporte são meros intermediários entre passageiros e condutores? Sendo assim, estas corporações não são responsáveis pelos danos que possam ocorrer aos motoristas? Esta ideia, constantemente difundida pela mídia “profissional” acaba de sofrer um abalo, que pode gerar repercussões. Em 19/05/2020, a 5ª Vara Cível de Canoas (RS) obrigou a 99 Tecnologia a indenizar, em mais de R$ 25 mil, motorista de aplicativo vinculado à empresa, que sofreu assalto, foi ferido e teve de se afastar temporariamente do trabalho. Muito mais importante que o valor da sentença é o precedente aberto.

A decisão foi proferida pelo juiz Jorge Alberto Silveira Borges, que frisou, num trecho: “A relação entre as partes é incontroversa”; é “inequívoco” o “controle exercido pela demandada [99] sobre o autor [motorista]”. O caso começou em dezembro de 2018..

Elias Manasses Soares, o motorista, colheu, na região metropolitana de Porto Alegre, passageiros que se utilizavam do aplicativo da 99 – e haviam sido, portanto, habilitados pela empresa. Estes o assaltaram. Quando tentou defender-se, esfaquearam-no. Elias passou uma semana hospitalizado e a agressão deixou sequelas. Por meses, ficou impossibilitado de dirigir – e, portanto, de exercer sua profissão.

Quando recorreu à empresa, buscando ser indenizado, recebeu como resposta um escárnio. A 99 dispôs-se a pagar-lhe R$ 476, menos de meio salário mínimo. Provavelmente, fiou-se na posição hoje predominante no Supeior Tribunal de Justiça (STJ), segundo a qual a relação entre motoristas de aplicativos e as empresas que controlam sua atividade não caracteriza vínculo trabalhista.

Mas a 99 não contava que fosse encontrar, na Justiça Comum, o magistrado Silveira Borges, um observador atento das realidades sociais e econômicas contemporâneas. Em sua decisão elegante, ele articula os fatos com clareza. Ao contrário do que alegam, diz, as empresas que uberizam são muito mais que “gerenciadoras de aplicativos” – como gostam de ser classificadas. Assumem, na prática, a condição de opradoras do Sistema Nacional de Mobilidade Urbana. Nessa condição, são regidas tanto pelos artigos da Constituição que tratam desta atividade quanto pela Lei 12.587/2012.

Não fosse assim, aliás, seriam incapazes de assumir o vulto econômico que tomaram. Um conjunto de matérias jornalísticas reunido por Silveira Borges mostra que a 99 converteu-se no “primeiro unicórnio brasileiro”, ao chegar a valor de mercado de US$ 1 bilhão. Ainda em 2018, foi adquirida, por este montante, por uma corporação chinesa, a Didi Chuxing. Esta empresa anunciou, logo após a transação, que faria novos aportes de capital.

O juiz lembra além disso que, como todas as uberizantes, a 99 não dá, nem aos passageiros, nem aos motoristas, o direito de fixar tarifas, ou mesmo de escolher passageiros. Os condutores são, na prática, seus subordinados. E um dos argumentos destacados em publicidade para estabelecer esta relação é exatamente a “segurança”. Silveira Borges teve o cuidado de pesquisar os anúncios da 99 e de descobrir que eles mencionam, com destaque, o fato de supostamente tornarem “segura” a atividade profissional de seus “parceiros”.

A indenização pretendida pelo motorista Elias Soares ultrapassava R$ 60 mil. O magistrado rejeitou a reivindicação de lucros cessantes – pois o autor não produziu prova a respeito. No entanto, Silveira Borges acatou o pedido de danos morais e fixou para eles o valor de R$ 25 mil. Sua sentença reduz os danos do posicionamento esdrúxulo adotado até agora pelo STJ. E reaviva a esperança de que o Brasil esteja no grupo de países que não aceitam a uberização selvagem; pois buscam, diante das transformações tecnológicas, assegurar os direitos humanos e sociais.

Veja a seguir, na íntegra, a decisão do juiz Silveira Borges:

***


Poder Judiciário

Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

5ª Vara Cível da Comarca de Canoas

Rua Lenine Nequete, 60 - Bairro: Centro - CEP: 92310205 - Fone: (51) 3472-1184

PROCEDIMENTO COMUM CÍVEL Nº 5003848-60.2019.8.21.0008/RS

AUTOR: ELIAS MANASSES SOARES

RÉU: 99 TECNOLOGIA LTDA

SENTENÇA

Vistos.

ELIAS MANASSES SOARES ajuizou ação ordinária contra 99 TECNOLOGIA LTDA., já qualificados, alegando, em síntese, que prestava serviço de transporte privado de pessoas, através do aplicativo da ré, e no dia 07/12/2018, ao realizar o transporte de dois sujeitos, partindo da Rua Dr. Barcelos, 75, centro de Canoas-RS em direção à rua Pedro Lerbach, no bairro Centro, na cidade de Esteio-RS, foi vítima de assalto, oportunidade na qual foi agredido com golpes de faca.

Segundo a inicial, em decorrência dos ferimentos o autor permaneceu internado de 07/12/2018 a 14/12/2018, com sequelas até os dias atuais, inclusive com indicação de procedimento cirúrgico para correção. Sustentou que, desde então, está impossibilitado de exercer seu trabalho, dependendo do auxílio de familiares e recebendo benefício previdenciário de um salário-mínimo desde maio de 2019. Mencionou a indenização recebida da ré no valor de R$ 476,00 (quatrocentos e setenta e seis reais). Discorreu acerca dos requisitos caracterizadores do dever de indenizar, e alegou prejuízo material, além de abalo moral. Requereu a condenação da ré ao pagamento de indenização por danos materiais de R$ 64.654,41 (sessenta e quatro mil, seiscentos e cinquenta e quatro reais e quarenta e um centavos), acrescido de juros e correção monetária, e por danos morais de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais). Postulou a concessão do benefício da gratuidade de justiça, atribuiu à causa o valor de R$ 114.654,41 (cento e quatorze mil seiscentos e cinquenta e quatro reais e quarenta e um centavos) e juntou documentos.

Concedida a gratuidade judiciária.

Em contestação, a ré arguiu preliminar de ilegitimidade passiva e denunciou da lide TOKIO MARINE SEGURADORA S.A. No mérito, teceu extensa argumentação acerca do aplicativo e da relação da empresa com os usuários (motoristas e passageiros). Asseverou a inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor e da ausência do dever de indenizar, além da ausência de responsabilidade. Atribuiu ao Estado o dever de proteção aos cidadãos por violência urbana, destacou a inexistência de prova dos danos alegados e refutou os pedidos indenizatórios. Requereu o acolhimento da preliminar de ilegitimidade passiva, com a consequente extinção do processo, e, no mérito, a improcedência. Juntou documentos.

Inexitosa a conciliação, apresentada réplica, as partes manifestaram-se pela desnecessidade de outras provas.

É o relatório.

De início, mantenho a decisão do evento 29 naquilo que se refere à denunciação da lide, verificada a preclusão por ausência de requerimento de citação da denunciada, na forma do artigo 126 do Código de Processo Civil. Inobstante, trata-se de medida facultativa, assegurada a busca de eventual direito contra a denunciada em ação própria. Destaque-se que a reabertura da fase postulatória neste instante causaria prejuízo à parte autora, impondo a observância de prazos específicos da denunciação, em detrimento do julgamento no estado em que se encontra o processo, após expressa manifestação das partes neste sentido.

A relação existente entre as partes é incontroversa.

Segundo a inicial, o autor atendeu chamado de passageiro por meio do aplicativo, na da Rua Dr. Barcelos, 75, centro de Canoas-RS, em direção à rua Pedro Lerbach, no bairro Centro, na cidade de Esteio-RS, quando foi vítima de roubo mediante agressão com golpes de faca. Como resultado, relatou sequelas físicas que o impedem de exercer a atividade profissional, dependendo do auxílio de familiares.

De acordo com o policial militar comunicante do fato, já no hospital, o autor referiu resistência à comunicação de assalto, e defendendo-se com as mãos dos golpes de faca provocou a fuga dos passageiros (evento 1 out 4).

Em decorrência das lesões, o autor foi atendido pelo SAMU, em situação de sangramento por ferimentos, identificada ruptura de tendões das mãos, sendo submetido a tratamento cirúrgico na mão esquerda. A situação resultou na percepção de benefício previdenciário entre maio e julho de 2019 (evento 1, out.2, out.11, out.12, out.13, out.14, out.15 e out.20).

Esta a prova trazida pelo autor, em nenhum aspecto contraposta pela demandada.

Como se vê, o autor é motorista cadastrado junto à demandada, com o compromisso de prestar serviço de transporte privado remunerado aos passageiros também previamente cadastrados pela ré, em conformidade com os termos de adesão (evento 22, out.2 e out.3). A partir daí, a identificação, a análise e a delimitação de eventual responsabilidade exige prévio posicionamento acerca do modelo a ser aplicado no caso concreto.

Nessa perspectiva, decisão acerca da alegada ilegitimidade passiva tangencia o mérito, na medida em que a aplicação de um ou outro fundamento da responsabilidade civil interfere no alcance subjetivo da lide.

Registro que a incial reporta-se aos artigos 186 e 927, ambos do Código Civil, como fundamento para responsabilização da ré pelos alegados danos de ordem material e moral. De outra parte, a demandada refuta a presença dos elementos da responsabilidade sujetiva, entre outros argumentos.

Extrai-se da contestação a pretensão da ré de qualificar-se exclusivamente como agente de aplicações de internet, de acordo com a definição do artigo 5º, inciso VII, da Lei 12.965/2014, o que por sí só determinaria uma interpretação em conformidade com o artigo 6º da mesma lei. Mas, compreendo que a ré, ao optar pela regulação, intermediação e controle da relação entre motoristas e passageiros, inclusive estabelecendo o preço do serviço ao passageiro e o valor da remuneração do motorista, inseriu-se no Sistema Nacional de Mobilidade Urbana, como previsto nos artigos 21, inciso XX, e 182, da Constituição Federal, e regulado na Lei 12.587/2012.

O artigo 21, inciso XX, da Constituição Federal atribui à União a competência para "... instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos;...", enquanto o artigo 182, prevê que a política de desenvolvimento urbano "...executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes".

Portanto, ainda que o surgimento da ré tenha estabelecido no setor algum grau de concorrência, em princípio benéfico aos usuários, a demandada não criou para sí um ambiente virtual de mera aproximação de terceiros, sem qualquer compromisso com as consequências de sua atividade, como pretendeu delinear na contestação. Bem mais que isto, posicionou-se no Sistema Nacional de Mobilidade Urbana, na condição de serviço exclusivo para caracterização do transporte remunerado privado individual de passageiros.

Esclarecedor neste sentido o teor do inciso X do artigo 4º da Lei 12.587/2012, com a redação da Lei 13.640/2018:

"Art. 4º Para os fins desta Lei, considera-se:

X - transporte remunerado privado individual de passageiros: serviço remunerado de transporte de passageiros, não aberto ao público, para a realização de viagens individualizadas ou compartilhadas solicitadas exclusivamente por usuários previamente cadastrados em aplicativos ou outras plataformas de comunicação em rede".

Resulta daí a constatação de que não há como confundir, comparar ou estender o tratamento dado à questão em análise a outros provedores de aplicação desvinculados da política de desenvolvimento urbano.

Criada em 2012, a existência da ré na restrita condição de aplicativo de internet dificilmente justificaria a meta alcançada em janeiro de 2018, quando foi considerada o primeiro "unicórnio" brasileiro, denominação atribuída a uma startup avaliada em US$ 1 bilhão, na oportunidade de sua aquisição por empresa chinesa.

A esse respeito, matéria veiculada no site de notícias da área econômica https://www.istoedinheiro.com.br/aplicativo-99-torna-se-oficialmente-primeiro-unicornio-brasileiro/, em 03 de janeiro de 2018:

"O aplicativo de transporte 99, rival do Uber, tornou-se oficialmente o primeiro unicórnio brasileiro.

A Didi Chuxing, considerada a “Uber chinesa”, assumiu seu controle nesta terça-feira 2, avaliando a startup brasileira em US$ 1 bilhão.

Um unicórnio, no jargão dos fundos de investimento, é uma companhia avaliada em US$ 1 bilhão ou mais. Até agora, nenhuma startup brasileira tinha conseguido atingir esse patamar.

A Didi Chuxing, que havia investido US$ 100 milhões na 99 em janeiro do ano passado, comprou as fatias detidas pelos fundos Riverwood Capital, Monashees, Qualcomm Ventures, Tiger Global e pela japonesa Softbank, segundo o jornal Valor.

Nessa transação, a companhia chinesa teria pago quase R$ 1 bilhão. Além desse valor, fontes indicam que a Didi Chuxing deve fazer novos aportes na startup brasileira.

A 99 já recebeu US$ 240 milhões em cinco rodas de investimentos. A startup brasileira foi fundada em 2012 por Ariel Lambrecht, Renato Freitas e Paulo Vera para ser um aplicativo de táxi. Com o advento da Uber, a companhia lançou o seu serviço Pop para concorrer com o rival americano.

Em nota, a 99 disse que “a respeito de informações de mercado publicadas hoje (02/01) pela imprensa, a 99 informa que se manifestará no momento oportuno."

Algumas particularidades do serviço evidenciam a atuação da demandada, como por exemplo, a fixação do preço do serviço de transporte, sem que haja qualquer possibilidade de negociação entre motorista e passageiro, limitada a esfera de decisão dos usuários à aceitação ou recusa do serviço. Assim também na oferta de retorno financeiro ao motorista, bem como nos termos da execução do serviço, ou ainda na posterior avaliação dos envolvidos. Logo, perceptível a todos a atuação da demandada, muito além da simples aproximação de pessoas interessadas em contrato de transporte por meio de aplicativo.

Pertinente mencionar que a relação com os usuários é formalizada por instrumento de adesão, intitulado no site da ré de "termos de uso motorista" (https://99app.com/legal/termos/motorista/).

Oportuna a transcrição de texto publicado no dia 31 de março de 2020, com nítido caráter publicitário, no endereço https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/marcas_2020/noticias/2020/02/726911-primeira-unicornio-do-brasil-99-quer-continuar-a-crescer.html, ilustrativo da dimensão e do alcance da atividade exercida pela ré, além da forma como se relaciona com os usuários. Vejamos:

"Se tem um setor que passou por uma transformação que afetou a vida de todo mundo foi o de mobilidade urbana. Novas marcas chegaram para abocanhar o mercado, pegando profissionais desprevenidos. Agora, não tem mais volta.

Nesse contexto, mais de 18 milhões de pessoas no Brasil utilizam o serviço da primeira startup que alcançou o status de unicórnio no País: a 99. Os dados são da própria empresa, atuante em 110 cidades gaúchas. No Rio Grande do Sul, a lista é composta desde municípios com poucos habitantes, como por exemplo, Alto Feliz, que teve uma população estimada em 3.028 pessoas em 2019, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), até Porto Alegre.

A 99 trabalha com seis tipos de serviço: a 99Pop, a categoria de carros particulares; a 99Taxi; a 99Top, serviço de táxis de luxo; a 99Compartilha, serviço de corridas compartilhadas; e o 99Comfort, que reúne comodidade de carros mais novos e espaçosos; e a 99Food, que começou a operar em Belo Horizonte no final do ano passado.

Fundada em 2012, em São Paulo, a empresa foi comprada em 2018 pela chinesa Didi Chuxing ("DiDi"), que naquele período também iniciou seus serviços de mobilidade com marca própria no México e na Austrália, além de uma joint venture com o Soft Bank Corp. para oferecer serviço de táxi compartilhado no Japão.

De acordo com a gerente de Operações-Sul da 99, Clarissa Brasil, após a aquisição, a startup cresceu sete vezes. Portanto, para 2020, a expectativa é continuar no ritmo acelerado, mas de forma robusta e sustentável. A executiva diz que o objetivo é consolidar os serviços, melhorar a experiência de motoristas e passageiros e investir no desenvolvimento de novos negócios. Embora com resultados positivos, a ordem é não se acomodar.

A plataforma possui cerca de 1 mil colaboradores em território nacional e conecta mais de 600 mil motoristas parceiros. O cálculo do ganho dos condutores é feito independente ao valor pago pelo passageiro, sendo considerados o tempo e a quilometragem da corrida.

Clarissa explica que o motorista recebe um valor mais rentável em situações que fujam ao seu controle. Para estimular que eles optem pela plataforma, são oferecidos incentivos financeiros em horários de pico, com o intuito de promover mais lucro em período de grande demanda. Outra maneira de atraí-los é o pagamento em até um segundo para 99,9% dos condutores que utilizam o Cartão 99.

A empresa mantém ainda o SOMOS, um programa de relacionamento que conta com uma rede de apoiadores. 'Há descontos em consultas médicas, cursos de graduação e capacitação, acesso a serviços de auxílio para recursos a multas e reciclagem da CNH, além de vantagens especiais em restaurantes, lava-jatos e oficinas', destaca Clarissa.

Para driblar a concorrência de outras empresas que atuam no mesmo segmento, a 99 investe na busca da oferta de melhor preço aos passageiros. 'Contamos com uma política de democratização do acesso ao transporte. Desta forma, garantimos preços até 15% menores nas áreas periféricas em relação ao centro expandido das cidades em que atuamos, sem que isso impacte os valores repassados aos motoristas', explica.

De acordo com ela, essa política designada como democratização da mobilidade, desestimula o uso do carro próprio e fomenta o compartilhamento e a economia inteligente.

Para a executiva, a promoção do acesso é um pilar muito importante da 99, uma atitude, inclusive, que pode inspirar marcas tradicionais. 'Felizmente, conforme dados recentes da 99, 67% das viagens de Porto Alegre e Região Metropolitana começam ou terminam fora do centro expandido da capital gaúcha - o que significa que nosso serviço já é acessível para grande parte da população', comemora.

Para Clarissa, por já nascerem com um DNA de tecnologia, inovação e dinamismo, os unicórnios propõem novos modelos de negócio e alteraram os já existentes, trazendo ganhos para todos. 'Hoje, o Brasil está entre os 10 maiores produtores de unicórnios do mundo. Com a força que esse ecossistema vem ganhando, em 2020, os unicórnios serão uma realidade ainda mais presente neste País', avalia.

'Acredito que novas tecnologias continuarão surgindo com uma velocidade cada vez maior, e isso desafiará as marcas a se tornarem relevantes para os seus consumidores, principalmente em termos de experiência', comenta. As empresas, segundo ela, precisam ter mais flexibilidade para mudanças e mais agilidade na criação de produtos. 'Ter uma cultura de inovação sólida será essencial para quem quiser se manter competitivo', detalha.

Ao aconselhar as novas startups que vêm sendo criadas, ela revela que o grande segredo é trabalhar firme com propósitos bem definidos. A 99 emprega a ideia da experiência do colaborador e do passageiro. Um dos focos é proporcionar segurança. Por isso, para a foto estar sempre atualizada para conferência, é realizado reconhecimento facial periódico com todos os motoristas antes deles se conectarem. 'Disponibilizamos, no aplicativo, um kit de segurança que possibilita os usuários ligarem para o 190 e compartilharem rotas em tempo real com até cinco contatos de confiança. Contamos, também, com uma equipe especializada, que trabalha 24 horas oferecendo apoio.'

A unicórnio age internamente para que o funcionário seja desafiado profissionalmente, mas que se sinta confortável. O escritório, afirma Clarissa, é moderno, com espaços de relaxamento, como salas de descanso e meditação. No Pet Day, os colaboradores levam seus animais de estimação. 'Possuímos, ainda, grupos afirmativos formados por funcionários negros, LGBTQ e mulheres para aumentar a conscientização e promover mudanças positivas para a companhia e fora dela'."

É nesse contexto que se mostra inequívoca a preponderância do controle exercido pela demandada na relação com o autor, desempenhando atividade empresarial por meio de provedor de aplicação da internet, atuando no Sistema Nacional de Mobilidade Urbana na condição de agente exclusivo da definição legal do transporte de passageiro individual privado, intermediando a relação entre usuários, mediante robusta contraprestação econômica.

Com efeito, o reconhecimento da incompetência da Justiça do Trabalho para apreciação e julgamento de questões atinentes à relação entre motorista e aplicativo, argumento empregado na contestação, apenas desloca para a Justiça Comum o palco de solução dos conflitos da espécie, mas de forma alguma implica reconhecer ausência de solidariedade ou responsabilidade da ré por danos experimentados pelos usuários, sejam eles motoristas ou passageiros.

O que está atualmente definido pelo Superior Tribunal de Justiça é a inexistência dos elementos caracterizadores da relação de trabalho no compromisso assumido entre o motorista e o provedor de aplicação, o que suscita alguma inquietação sobre o emprego da cláusula geral de risco, bastante utlizada pela Justiça do Trabalho na responsabilização do empregador em casos de acidente do trabalho, sobretudo num mundo cada vez mais impactado pelo que se convencionou chamar de "uberização".

Sobre isso, transcrevo a seguinte ementa do Egrégio Superior Tribunal de Justiça:

"CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. INCIDENTE MANEJADO SOB A ÉGIDE DO NCPC. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C.C. REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS E MORAIS AJUIZADA POR MOTORISTA DE APLICATIVO UBER. RELAÇÃO DE TRABALHO NÃO CARACTERIZADA. SHARING ECONOMY. NATUREZA CÍVEL. COMPETÊNCIA DO JUÍZO ESTADUAL. 1. A competência ratione materiae, via de regra, é questão anterior a qualquer juízo sobre outras espécies de competência e, sendo determinada em função da natureza jurídica da pretensão, decorre diretamente do pedido e da causa de pedir deduzidos em juízo. 2. Os fundamentos de fato e de direito da causa não dizem respeito a eventual relação de emprego havida entre as partes, tampouco veiculam a pretensão de recebimento de verbas de natureza trabalhista. A pretensão decorre do contrato firmado com empresa detentora de aplicativo de celular, de cunho eminentemente civil. 3. As ferramentas tecnológicas disponíveis atualmente permitiram criar uma nova modalidade de interação econômica, fazendo surgir a economia compartilhada (sharing economy), em que a prestação de serviços por detentores de veículos particulares é intermediada por aplicativos geridos por empresas de tecnologia. Nesse processo, os motoristas, executores da atividade, atuam como empreendedores individuais, sem vínculo de emprego com a empresa proprietária da plataforma. 4. Compete a Justiça Comum Estadual julgar ação de obrigação de fazer c.c. reparação de danos materiais e morais ajuizada por motorista de aplicativo pretendendo a reativação de sua conta UBER para que possa voltar a usar o aplicativo e realizar seus serviços. 5. Conflito conhecido para declarar competente a Justiça Estadual. ( CC 164544 / MG CONFLITO DE COMPETENCIA 2019/0079952-0, Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, Relator Ministro Moura Ribeiro, julgado em 28/08/2019)".

Tal fenômeno, traduzido como a modificação do meio de oferta de produtos e serviços, através de provedores de aplicação e emprego de plataformas digitais, introduz um modelo de empresa que despreza a propriedade dos meios de produção, despreza a valorização e qualificação do trabalho, e despreza os riscos do negócio, outorgando-os integralmente ao trabalhador, sob a embalagem da economia compartilhada. Se de um lado esta configuração das relações econômicas compõe uma tendência no uso da tecnologia, de outro lado não compromete o reconhecimento da responsabilidade civil objetiva, preconizada na cláusula geral de risco estatuída no parágrafo único do artigo 927 do Código Civil.

Portanto, o autor foi vítima de roubo e atingido por golpes de faca executando serviço próprio de mobilidade urbana mediante remuneração, por meio de aplicativo mantido pela ré. O fato é incontroverso, e por isto a demandada buscou eximir-se da responsabilidade por outras razões, sendo pertinente referir, no campo da responsabilidade objetiva pelo risco, a suscitada inexistência de nexo causal.

Nesse contexto, e como adiantado, reputo adequado ao caso o reconhecimento da responsabilidade objetiva fundada no risco da atividade, por aplicação da cláusula geral de risco prevista no § único do artigo 927 do Código Civil:

"Art. 927. Aquele que, por ato ilícito ( arts. 186 e 187 ), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem".

Vale repetir, ainda que inexistente especificação legal para o caso em exame, foram identificados os elementos constitutivos da obrigação decorrente do risco da atividade desempenhada pela ré.

A atividade normalmente desenvolvida foi delineada acima, e consiste basicamente na intermediação de serviço de transporte, mediante remuneração e uso de provedor de aplicação, definido no Sistema Nacional de Mobilidade Urbana, aproximando motoristas e passageiros na implementação da mobilidade e acessibilidade das pessoas. Como antes referido, além de normalmente desenvolvida, a atividade da ré gerou negócio com uma empresa chinesa avaliado em US$ 1 bilhão no ano de 2018.

Como decorrência, impositivo reconhecer que a ré tira proveito econômico em cifras bilionárias da atividade empresarial desenvolvida, utilizando argumento publicitário para atrair motoristas que buscam segurança na execução do transporte de pessoas, além de assegurar pelos mesmos meios vantagem econômica diferenciada.

Aqui outro elemento para o preenchimento da cláusula geral de risco, identificado na admissão da violência urbana como fator de atração de motoristas. Exemplificadamente, as seguintes frases utilizadas no próprio site da demandada:

"Ser parceiro 99 é a oportunidade que pode mudar sua vida. Isso porque você tem: soluções de segurança..." (https://99app.com/motorista/).

"Com segurança você faz mais. Dedicação total para passageiros e motoristas curtirem o caminho. Prevenção: esse é o nosso compromisso pela sua segurança." (https://99app.com/seguranca/).

Com tamanha veemência publicitária, não há dúvida do risco assumido pela demandada em paralelo aos lucros bilionários auferidos com a promoção do transporte de passageiros, comprometendo-se com a execução do serviço em condições de segurança para os usuários, risco indesejadamente concretizado no episódio envolvendo o autor. Tal comportamento evidencia a exposição do motorista à violência, pretensamente neutralizada pela proposta publicitária veiculada no site da ré, e afasta a perquirição de eventual causa excludente da responsabilidade com base na culpa exclusiva da vítima, ou por fato de terceiro. O encontro entre o autor e seus agressores só foi possível pela intermediação da ré, por meio do provedor de aplicações no qual todos estão necessariamente cadastrados.

Sob este enfoque, impositivo concluir pela existência do nexo de causalidade entre a atividade desempenhada pela ré e os danos experimentados pelo autor, durante a execução dos serviços por ela promovidos. Como decorrência, identificados os pressupostos, surge a obrigação à reparação dos danos em virtude da responsabilidade objetiva pelo risco da atividade.

A prova da extensão do dano, como já referido, limitou-se às despesas comprovadas, além da necessidade de cirurgia, com incapacidade provisória para a função habitual, já que a prova trazida pelo autor não autoriza outra conclusão.

Quanto à alegada concorrência de culpa, ao contrário das afirmações da demandada, compreendo que o comportamento do autor não tem o condão de alterar o valor da indenização, já que não há como estabelecer, de acordo com os elementos do processo, a circunstância da reação aos golpes de faca. É certo que não há como exigir imobilidade de quem está sendo agredido com golpes de faca, assim como não há evidências de que a agressão foi resultado da atitude do autor.

Relativamente aos danos emergentes, foram demonstradas despesas médicas no valor de R$ 638,37 (seiscentos e trinta e oito reais e trinta e sete centavos), conforme notas fiscais do evento 1, out.19, pois ilegíveis os documentos referentes aos demais gastos alegados.

Quanto ao pedido de lucros cessantes, a improcedência é de rigor. Consoante o disposto no artigo 402 do Código Civil os lucros cessantes abrangem o que a parte razoavelmente deixou de receber. Entretanto, não há prova mínima das alegações, inexistente qualquer comprovação dos rendimentos auferidos na condição de motorista cadastrado junto à ré.

Registro que, oportunizada a produção de outras provas, as partes manifestaram o desinteresse.

De outro lado, inquestionável o dano moral experimentado pelo autor, resultado de agressões sofridas durante assalto no exercício do trabalho de transporte privado de passageiros cadastrados no aplicativo da ré, com a perda temporária da capacidade de trabalho, indutora da percepção de benefício previdenciário. Trata-se, na caso em exame, de dano moral puro, já que a dor, o sofrimento, o abalo emocional decorrentes do fato e de suas consequências são presumidos.

Nesse sentido, a seguinte ementa do Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

"APELAÇÕES CÍVEIS. RESPONSABILIDADE CIVIL. ROUBO DE VEÍCULO EM SUPERMERCADO. DEVER DE INDENIZAR OS DANOS MATERIAIS. DANOS MORAIS. OCORRÊNCIA. ASSALTO A MÃO ARMADA. ABALO PSICOLÓGICO SOFRIDO. Mérito do recurso em exame 1. No presente feito restou caracterizado o contrato de depósito, necessário para se exigir o dever de vigilância e guarda sobre o veículo deixado no estacionamento do estabelecimento empresarial. 2. Ressalte-se, ainda, que a parte demandada explorava economicamente a área, percebendo os benefícios de oferecer aos clientes um local supostamente seguro para o estacionamento dos veículos, o que serve para aumentar a captação daqueles e o lucro do empreendimento. Da indenização por danos materiais 3. O dano material possui duas subespécies de prejuízos que exsurgem desta situação, os danos emergentes, ou seja, o prejuízo efetivamente causado, a diminuição patrimonial sofrida pela vítima; e os lucros cessantes, o que esta deixou de ganhar em razão do ato ilícito. 4. O pleito de dano material formulado na inicial, veio corroborado pela prova documental acostada aos autos, portanto, deve ser ressarcido, na medida em que há o nexo causal entre aquele e a conduta ilícita da ré. 5. Lucros cessantes. As questões atinentes ao fato de a parte autora exercer atividade profissional autônoma como prestadora de serviços médicos, a qual ficou afastada daquela por sessenta (60) dias, interregno de tempo este no qual teve redução de seus ganhos, situação que foi adequadamente examinada na decisão de primeiro grau, pois restou comprovada a perda havida. Logo, deve ser mantida a condenação na indenização concedida à título de lucros cessantes, ou seja, o que a postulante deixou de perceber no período precitado. Da indenização por danos morais 6. Em que pese o furto do veículo não ensejar, de regra, por si só, a indenização por danos morais, pois se trata de realidade presente no dia-a-dia de centros urbanos maiores, plenamente suportável, as provas constantes nos autos demonstram situação diversa – por se tratar o caso em análise de roubo, praticado mediante violência e grave ameaça. 7. Isso porque é evidente que a autora ficou apreensiva e nervosa com o evento em questão, pois foi rendida a mão armada dentro do estabelecimento comercial da ré, consoante se denota do boletim de ocorrência, além de ter necessitado de atendimento de emergência e internação hospitalar para tratar as lesões advindas do ilícito ocorrido. 8. Assim, perfeitamente passível de ressarcimento o dano moral causado no caso em análise, decorrente de terem sido atingidos direitos inerentes a personalidade da parte autora, em razão da apreensão e nervosismo da autora com o evento descrito na inicial, medida que resulta na violação ao dever de respeitar aquela gama de direitos inerentes a cada ser humano, pois por certo que ficar com uma arma apontada para si deve ter causado dor psíquica intensa ao ponto de importar em lesão imaterial. 9. No que tange à prova do dano moral, por se tratar de lesão imaterial, desnecessária a demonstração do prejuízo, na medida em que possui natureza compensatória, minimizando de forma indireta as consequências da conduta da ré, decorrendo aquele do próprio fato. Conduta ilícita da demandada que faz presumir os prejuízos alegados pela parte autora, é o denominado dano moral puro, hipótese que se configurou no caso em análise. 10. O valor a ser arbitrado a título de indenização por dano imaterial deve levar em conta o princípio da proporcionalidade, bem como as condições da ofendida, a capacidade econômica do ofensor, além da reprovabilidade da conduta ilícita praticada. Por fim, há que se ter presente que o ressarcimento do dano não se transforme em ganho desmesurado, importando em enriquecimento ilícito. Quantum majorado para R$ 12.000,00. Dos honorários recursais 11. Os honorários advocatícios deverão ser majorados quando a parte recorrente não lograr êxito neste grau de jurisdição, independente de pedido a esse respeito, devido ao trabalho adicional nesta instância, de acordo com os limites fixados em lei. Inteligência do art. 85 e seus parágrafos do novel CPC. Negado provimento à apelação da ré e dado parcial provimento ao recurso da autora.(Apelação Cível, Nº 70081875171, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge Luiz Lopes do Canto, Julgado em: 28-08-2019)".

Por isso, consideradas as circunstâncias do fato, destacando-se o grau de sofrimento do autor durante o episódio, sem desvalorar o sofrimento posterior, advindo da realização de cirurgia e da falta de capacidade para o trabalho durante o período comprovado, em cotejo com a condição econômica do autor - motorista de aplicativo - e da ré - empresa avaliada em bilhões de dólares-, conclui-se pela adequação do valor correspondente a vinte e cinco mil reais a título de danos morais. Reputo este valor suficiente, de modo a evitar o enriquecimento injustificado, considerando o caráter coercitivo e pedagógico da indenização, além de representar uma valoração proporcional e razoável.

Em face do exposto, rejeito a preliminar de ilegitimidade passiva, e JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTES os pedidos veiculados por ELIAS MANASSES SOARES para condenar a ré 99 TECNOLOGIA LTDA. ao pagamento de indenização por danos materiais no valor de R$ 638,37 (seiscentos e trinta e oito reais e trinta e sete centavos), corrigido monetariamente pelo IGP-M, a contar do desembolso, e acrescido de juros de mora de 1% ao mês desde a data do fato (Súmula 54 do STJ). Outrossim, pelos danos morais, condeno a ré ao pagamento de R$ 25.000,00 (vinte e cinco mil reais), corrigido monetariamente pelo IGP-M, a contar da presente data (Súmula 362 do STJ), acrescido de juros de mora de 1% ao mês desde a data do fato (Súmula 54 do STJ).

Observada a sucumbência recíproca, condeno o autor ao pagamento de trinta por cento do valor das despesas, além de honorários advocatícios fixados em 10% do valor da condenação, atendendo ao disposto nos artigos 85, §§ 2º e 8º, e 86, caput, ambos do Código de Processo Civil, suspensa a exigibilidade na forma do artigo 98, § 3º, do mesmo diploma legal. Outrossim, condeno a ré ao pagamento de setenta por cento das despesas e honorários advocatícios, fixados em 15% do valor da condenação, nos termos dos artigos 85, §§ 2º e 8º, e 86, caput, ambos do Código de Processo Civil.

Caso interposto recurso de apelação, cumpram-se as formalidades dos §§ 1º e 2º, do artigo 1.010 do CPC, e, após, remetam-se os autos ao E. Tribunal de Justiça do RS.

Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

Preclusa a decisão, arquive-se com baixa.

Diligências legais.

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Documento assinado eletronicamente

por JORGE ALBERTO SILVEIRA BORGES, Juiz de Direito, em 19/5/2020, às

0:10:27, conforme art. 1º, III, "b", da Lei 11.419/2006. A

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Carta Maior


































Executivos ganham 320 vezes mais que trabalhador comum - Só?

Créditos da foto: Um manifestante segura uma placa "Tax the Rich" [Tributem os Ricos]durante um protesto em Nova York em 27 de junho de 2020. (Erik McGregor/LightRocket via Getty Images)

À medida que os salários ficam estagnados e a remuneração dos executivos 'continua a aumentar', relatório mostra que os principais CEOs agora ganham 320 vezes mais do que o trabalhador normal

Nova pesquisa do Economic Policy Institute (EPI) revela que a remuneração dos CEOs cresceu 1.167% de 1978 a 2019, "superando em muito" o crescimento do mercado de ações


Por Jake Johnson                                                                                                 19/08/2020 11:52

Uma nova pesquisa publicada na terça-feira (18) pelo Economic Policy Institute (EPI) mostra que os principais executivos das maiores corporações dos Estados Unidos agora ganham, em salários e benefícios, 320 vezes mais do que seus funcionários típicos.

A última análise anual da EPI sobre remuneração de executivos mostra que os CEOs das 350 maiores empresas dos EUA arrecadaram uma média de US$ 21,3 milhões [R$ 116 milhões ao câmbio de 19/8/2020] em 2019, um aumento de 14% em relação a 2018. A proporção 320-1 de remuneração do CEO para o trabalhador em 2019 é mais de cinco vezes maior do que a proporção 61-1 relatada em 1989.

A pesquisa do think tank surge em meio a uma pandemia global que deve exacerbar a tendência de décadas de aumento da desigualdade de renda e riqueza nos EUA - uma tendência que, de acordo com o EPI, não será revertida por CEOs que optam por cortes de salários durante uma crise de saúde pública que deixou dezenas de milhões de norte-americanos desempregados.

A nova pesquisa do Economic Policy Institute revela que a remuneração dos CEOs cresceu 1.167% de 1978 a 2019, "superando em muito" o crescimento do mercado de ações.

“Os CEOs que se oferecem para aceitar cortes de salários não estão abrindo mão de uma parcela significativa, considerando que parte de seu pagamento vem de prêmios de ações e opções”, disse EPI.

Legenda do gráfico: O gráfico mostra, ano a ano, quantas vezes a remuneração do CEO foi superior àquela do trabalhador comum. A linha azul clara reflete o valor da remuneração quando ela é concedida ao CEO e a linha azul escura leva em conta o valor da remuneração do CEO no momento que ele efetivamente realiza as ações e opções que recebeu.


Lawrence Mishel, um eminente membro do EPI e co-autor do novo relatório, disse em um comunicado que "embora o crescimento dos salários para a maioria dos norte-americanos tenha permanecido relativamente estagnado por décadas, a remuneração do CEO continua a crescer exponencialmente".

"Isso alimentou o crescimento espetacular da renda das camadas 0,1% e 1,0% de maior renda e o crescimento da desigualdade de renda em geral", disse Mishel. Ele afirmou ao Washington Post que o salário do CEO pode aumentar novamente em 2020, apesar do colapso econômico nacional causado pela crise da Covid 19.

"Os CEOs que aceitam cortes salariais durante a pandemia do coronavírus geram comunicados à imprensa", acrescentou Mishel, "mas nenhum progresso real na redução da desigualdade e no aumento dos salários dos trabalhadores".

Como uma alternativa substantiva aos truques de relações públicas do CEO, o EPI propôs várias mudanças de política que reduziriam significativamente a enorme lacuna entre a remuneração do CEO e o pagamento do trabalhador comum:

- Restabelecer taxas marginais de imposto de renda mais altas no topo da escala de renda;

- Definir alíquotas de imposto corporativo mais altas para empresas que têm índices mais altos de remuneração entre CEO e trabalhador;

- Limitar a remuneração e tributar todo o ganho que supere o limite; e

- Permitir maior uso da fórmula "opinar sobre o pagamento", que permite aos acionistas de uma empresa votarem na remuneração dos principais executivos.

Jori Kandra, assistente de pesquisa da EPI e coautor do novo relatório, disse que "o enorme crescimento na remuneração do CEO" nas últimas quatro décadas "não é um reflexo do mercado de talentos".

“Sabemos disso porque a remuneração do CEO cresceu mais de três vezes mais rápido do que o crescimento dos ganhos do grupo 0,1% de maior renda, que foi de 337% no mesmo período”, disse Kandra. "Isso significa que a remuneração do CEO pode ser restringida para reduzir a lacuna crescente entre os que ganham mais e todos os demais, com pouco ou nenhum impacto na produção da economia ou no desempenho da empresa."

*Publicado originalmente em 'Common Dreams' | Tradução de César Locatelli

Carta Maior

Crianças podem ser mais contagiosas que adultos em relação ao coronavírus, aponta estudo de Harvard

Pesquisadores alertam para risco ‘significativo’ de reabertura das escolas


Uma pesquisa conduzida pela Escola Médica da Universidade Harvard (EUA) mostra que crianças podem ser muito mais contagiosas do que adultos, inclusive aqueles em quadro severo da doença.

Os pesquisadores concluíram que o potencial de disseminação do novo coronavírus pelas crianças foi largamente subestimado nos últimos cinco meses da pandemia.

O artigo, submetido ao periódico científico Journal of Pediatrics nesta quinta-feira 20, foi escrito por pesquisadores do Hospital Geral de Massachusetts, que integra a Escola Médica de Harvard.

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O estudo envolveu 192 pessoas com idades de 0 a 22 anos que estavam em unidades de atendimento de urgência por suspeita de Covid-19. Quarenta e nove delas – um quarto do total – testaram positivo para o vírus.

Os cientistas encontraram níveis de carga viral consideravelmente mais altos nas vias respiratórias de crianças nas fases iniciais da doença do que nas de adultos internados em unidades de terapia intensiva.

O risco da volta às aulas

Os responsáveis pela pesquisa apontam para o risco de as crianças retornarem às atividades escolares com os resultados.

Os pesquisadores questionam se a reabertura de escolas, mesmo com protocolos sanitários rigorosos, vale o risco para alunos, famílias e educadores.

Sem um protocolo rígido, reforçam, o risco de a pandemia persistir e mais pessoas, incluindo familiares, serem expostas ao coronavírus com o retorno das aulas presenciais é “significativo”, o que é agravado em regiões mais pobres e vulneráveis.

Carta Capital