quinta-feira, 17 de junho de 2021

Che, o zelador de sonhos e utopias dos latino-americanos


Cinema de qualidade mostra alguns momentos da heróica trajetória do Comandante Guevara numa pequena grande coletânea de quatro filmes sobre o ícone histórico mais poderoso do século XX


Por Léa Maria Aarão Reis                                                             14/06/2021 12:03

Há quem tenha na sua lista de filmes de cabeceira Diários de motocicleta, de Walter Salles, lançado em 2004, o belo recorte da viagem decisiva do jovem estudante Ernesto Guevara de la Senra através da América Latina, uma viagem ao encontro do seu destino. Trata-se de um dos filmes a ver e a rever nesta semana que se inicia com a lembrança da data do seu aniversário. Fosse vivo, o Che teria 93 anos.

Um entusiasmado cinéfilo do filme de Salles é o professor de Educação José de Sousa Miguel Lopes, da Universidade do Estado de Minas Gerais. ''Num mundo em que as utopias parecem ter-se perdido, Salles apresenta-nos a bela trajetória por terras latino-americanas, do jovem Ernesto que viria a tornar-se um depositário dos sonhos e de utopias da juventude e uma das figuras mais emblemáticas do século XX: o Che'', diz Miguel Lopes.

Assim como esse, outro filme indispensável sobre Guevara, também longe das produções abertamente comerciais, é Che - Memórias de um Ano Secreto, de Margarita Hernández, a cineasta brasileira nascida em Cuba justo na cidade de San Antonio de los Baños onde está localizada a famosa Escola Internacional de Cinema e TV da ilha.

Se o périplo do jovem estudante argentino Guevara, de 23 anos, através dos oito mil quilômetros na latinoamericanidad da pátria grande, foi relatado no seu diário - aliás, ele foi a base para o excelente roteiro do filme, do porto-riquenho José Rivera - o ano secreto a que se refere o filme de Margarita longe de ser um período sabático é o tempo em que o Che viveu mais ou menos incógnito.

No início, na África, Congo e Tanzânia (onde reencontrou a segunda mulher, Aleida March), e em seguida em Moscou e em Praga, despistando agentes da CIA e amadurecendo o seu retorno à guerrilha no continente - no caso, as selvas da Bolívia.

O filme é resultado de pesquisa histórica notável, construído com revelações de agentes secretos desse período que permanecia oculto da história, entrevistas inéditas, fotos exclusivas e viagens aos diversos países por onde o Che passou, disfarçado com próteses, irreconhecível e com passaportes falsos.

Minuciosa, Hernandez incluiu no filme mapas ilustrativos, visitas a museus, trechos de docs e líricas imagens das capitais por onde o líder cubano passou. A montagem desse documento cinematográfico histórico é primorosa.

Já Diários retrata as aventuras do estudante de Medicina prestes a se formar em companhia do amigo Alberto Granado, bioquímico e colega da mesma universidade. Os dois saíram de Buenos Aires em janeiro de 1952 montados na 'Poderosa', a moto que levou-os em parte da viagem em seguida concluída como andarilhos. A dupla deixou a Argentina em direção a San Martin de los Andes, Bariloche e entrou na Patagônia chilena, em Temuco. Os dois percorreram o Atacama, visitaram Cuzco, Machu Picchu e subiram até a Amazônia colombiana.

O curioso documentário Chevolution (Guerrilheiro heróico, título em português), de uma hora e meia, autoria de Trisha Ziff e Luis Lopez, narra a origem da célebre fotografia que roda o mundo até hoje, captada pelo cubano Alberto Korda durante uma homenagem às vítimas da explosão do navio francês La Coubre, em 1960, quando descarregava toneladas de armas e munição no porto de Havana.

Guevara se encontrava ao lado de Fidel no palanque, durante o memorial fúnebre. Korda usou um rolo de negativos fotografando os que se encontravam ali, mas apenas dois frames captaram a presença do Comandante; aqueles que acabaram se transformando numa réplica à Mona Lisa, na história da fotografia.

Em entrevistas feitas com ex-funcionários do governo, com colegas de profissão de Korda, e com a filha do fotógrafo, os autores de Chevolution concluíram que provavelmente o interesse pela foto demonstrado pelo famoso editor italiano Giangiacomo Feltrinelli, ativista de esquerda e fundador da célebre editora que leva o seu nome foi o detonador da celebridade da foto. Ela foi oferecida com dedicatória, pelo próprio Korda, como presente ao italiano, quando ele visitou Havana.

De volta à Europa, Feltrinelli teria transformado a imagem em uma série de pôsteres lançados pela sua editora. Pouco depois, ela se espalhou durante o chienlit de maio de 68, em Paris. Em seguida, a imagem entrou no universo das artes plásticas, quando um jovem artista gráfico, Jim Fitzpatrick, também entrevistado em Chevolution, aumentou o contraste da imagem e aproximou-a da iconografia do movimento da pop art.

Detalhe: o rosto de Guevara reproduzido por Korda e o alto contraste de Fitzpatrick tiveram registrados direitos autorais por nenhum dos dois autores.

O quarto filme dessa pequena grande coleção de produções sobre Guevara é o precioso curta-metragem de 19 minutos, de autoria do histórico documentarista cubano Santiago Alvarez. Hasta la Victoria Siempre pertence ao gênero atualidades - ou como Alvarez dizia, cinema urgente- e é exemplar na prolífica carreira de cinejornais do cineasta. É uma pérola cinematográfica que trata das circunstâncias que levaram à morte do Che quando da fracassada campanha de guerrilha boliviana.

O filmete foi uma encomenda do próprio Fidel a Alvarez que disse ao documentarista que precisava do trabalho para dali a dois dias. Queria exibi-lo para o meio milhão de pessoas que participaram do imenso comício, na Praça da Revolução, em memória do companheiro assassinado. Sua trilha musical é composta de jazz, música pop da época e canções patrióticas. Um silêncio marcante sublinha as imagens do Che armado, na Bolívia.

A polêmica em torno da frase escrita pelo Comandante na sua carta a Fidel antes de partir para a Bolívia e utilizada como título desse documentário continua até hoje. A possibilidade mais aceita por historiadores de todos os matizes políticos é a de que tenha havido uma distração de Guevara na sua pontuação quando escreveu a carta à mão. O significado verdadeiro dessa exortação do companheiro de armas a Fidel seria este: Hasta la victoria. Siempre patria o muerte.

Há também Che, de Steven Soderbergh. Trata-se de uma co-produção comercial EUA/França/Espanha. Filme dividido em duas partes, a primeira, O argentino, começa com o desembarque dos rebeldes em Cuba, passa pela ascensão de Guevara de médico a guerrilheiro e vai até a tomada de Havana e deposição de Fulgêncio Batista. Na segunda parte, Guerrilha, Che deixa seu cargo político em Cuba, parte para a África e morre na Bolívia. O filme é raso e sem importância maior. Costuma ser relembrado por ter sido a chance do ator Benicio Del Toro receber o premio de Melhor Ator no Festival de Cannes de 2008 fazendo o papel do líder revolucionário.

Na pequena relação dos quatro filmes relevantes sobre Guevara chama a atenção o jovem estudante de Medicina fazendo uma observação ao amigo Alberto Granado quando dele se despede num pequeno aeroporto colombiano. A viagem dos dois terminou, ambos se separam ali e cada um seguirá o seu caminho. Vão se reencontrar oito anos depois em Havana.

Diz o futuro Comandante da Revolução Cubana nesse tocante Diários de motocicleta: ''Mas quanta injustiça, não?" resumindo tudo o que ambos viram e viveram na América do Sul.

Filmes em plataformas de streaming: Diários de Motocicleta no YouTube e Chevolution no Amazon Prime Video. Trailer de Hasta la victoria siempre no Youtube.


Carta Maior

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