sábado, 5 de junho de 2021

Os Anarquistas - Vaillant


A decepção foi tremenda – e tremendos o ódio, o desejo de vingança contra o traiçoeiro burguês. 


A parte mais inteligente, mais pacífica, ou mais legal do proletariado concebeu logo a necessidade de fazer uma outra e derradeira revolução, não contra a estrutura política da sociedade nova mas contra a sua organização económica, porque não era agora por causa do regime político que o proletariado sofria, mas por causa do regime económico, nascido das invenções mecânicas, das descobertas químicas, dos excessos de produção, da concorrência de todos os progressos do século, realizados só em benefício da classe média, e cada vez mais tendentes a separar as duas velhas «nações» de Aristóteles, os pobres e os ricos, atribuindo a uma todos os proveitos e impondo à outra todas as fadigas. Desde esse momento nascera, ou aparecera, organizado na república, o socialismo.

Uma outra parte, porém, do proletariado, a mais inculta ou a mais violenta, ou simplesmente a mais naturalista, concebeu uma outra ideia, e estranha. Para essa, a revolução económica pregada pelo socialismo e concebida ainda dentro de um funesto espírito jurídico é ineficaz, quase pueril, porque não atinge o mal! Associações, trade unions, barateamento do capital, seguros de velhice, reclamação para o domínio social dos serviços colectivos, regularização da concorrência, etc., etc., todas essas reformas revolucionárias tentadas pelo socialismo são tigelas de água morna deitadas sobre uma gangrena. São ainda subterfúgios traiçoeiros do horrendo burguês. O mal, o verdadeiro mal que é necessário extirpar, é a própria ideia de direito, de lei, de autoridade, de Estado.

O homem nasceu livre como nasceu bom, e próprio para ser feliz: e todavia por toda a parte está escravizado, e pena sob essa escravidão. Mas quem o escraviza, quem o faz penar? A sociedade, com toda a sorte de peias, de estorvos que se opõem à livre expansão da natureza humana, que é fundamentalmente e inatamente boa, e que não poderia nunca ser senão um radiante progresso do homem no sentido do bem. Esses empecilhos odiosos são as leis, a autoridade, o Estado. A própria moral é, como o direito, fictícia, e um outro jugo imposto ao homem. Tudo isso pois tem de ser destruído, para que a nova humanidade realize, na absoluta liberdade, a absoluta felicidade. Mas como a sociedade está irremediavelmente impregnada desses funestos conceitos, que são a sua alma, e o seu princípio de coesão, é inútil fazer revoluções para a transformar ou melhorar; porque, qualquer que seja a forma que se dê à sociedade, ela conterá sempre em si o vírus horrível – o princípio do direito, de Estado, de autoridade!

A única solução portanto é arrasar completamente a sociedade, matando e sepultando para sempre sob os seus destroços esses princípios fatais que até agora a têm governado, e depois recomeçar de novo a história desde Adão. E a sociedade tem de ser destruída, em bloco, toda ela, sem se empurrarem para um lado os culpados, e sem se resguardarem para outro lado os inocentes. No mundo actual não há inocentes. Decerto existe uma classe mais especial e odiosamente criminosa – a classe dos ricos, que foi quem concebeu, para seu proveito, e contra os pobres, esses estorvos morais e sociais que se chamam direito, autoridade, Estado, e que são a causa de todo o mal humano. Mas a sociedade inteira é solidária e responsável do mal. Todo aquele que pacificamente se aproveita da protecção das leis é tão culpado como o monstro que inventou as leis. E uma costureira que se priva de apanhar uma flor num jardim público é já uma cúmplice da sociedade, porque, pelo seu consentimento tácito, ela concorre a que se perpetue o despotismo do regulamento. E pois necessário destruir tudo – e atirar indiscriminadamente a bomba redentora contra as classes exploradoras, contra as classes voluntariamente exploradas, contra a cidade onde se realiza a exploração, contra as próprias crianças que nascem, porque elas já trazem em si o vírus da submissão explorável.

Tal é em resumo, muito em resumo, a teoria do anarquismo.

Basta que ela seja enunciada para que se lhe reconheçam logo todos os sintomas de uma alucinação mórbida. Não há nela proposição que não seja quimérica. Uma só é exacta, aquela pela qual o anarquismo se prende ao socialismo, e que estabelece, com razão, que a presente organização social, em que uma classe possui todos os gozos e outra sofre todas as misérias, é iníqua.

Ecos de Paris Vol. 14
Eça de Queiroz

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