sexta-feira, 9 de julho de 2021

Lições do genocídio de crianças indígenas no Canadá

Créditos da foto: (Arquivo/Saskatchewan/EPA)

A descoberta de túmulos de crianças indígenas em escolas residenciais canadenses causou consternação internacional.


Por Bernardo Barranco                                                                        08/07/2021 13:34

Dias atrás, foram encontradas cerca de 1,4 mil sepulturas sem nome e em valas comuns, graças à utilização de equipamentos especiais. Estima-se que existam mais de 6 mil corpos de crianças que tiveram o mesmo destino e que ainda não foram encontrados.

A reação dos povos nativos da região não tardou. Alguns deles realizaram ataques incendiários a igrejas católicas no oeste daquele imenso país – a imprensa local contabiliza ao menos sete casos nesse sentido.

Também há um informe das autoridades canadenses que especula com uma cifra de mais de 150 mil casos de crianças que foram arrancadas de suas famílias indígenas e confinadas em recintos católicos. O objetivo dessa política era desenraizar esses menores de suas culturas e tradições ancestrais e integrá-los aos padrões da cultura ocidental e da religião cristã. Entre 1890 e 1996, o estado canadense financiou mais de 150 internatos desse tipo, a maioria deles ligados à Igreja Católica – embora também existam muitos relacionados às igrejas anglicana e presbiteriana.

As horríveis descobertas causaram horror e indignação em todo o Canadá, nas sociedades e ocidentais e também nas estruturas das igrejas. Muitas escolas funcionavam como verdadeiros campos de concentração para aquelas crianças que foram vítimas. Houve abuso moral das crianças a partir do desprezo das suas culturais e tradições. Os internatos seguiam filosofias dignas do nazismo. Os sobreviventes desses abusos relatam que o tratamento que receberam era ultrajante, e incluía abusos físicos, psicológicos e sexuais. Os direitos humanos foram sistematicamente violados. Os religiosos depreciavam a identidade daquelas crianças, e usavam a violência para forçá-las a se integrarem à cultura ocidental dominante.

As tumbas descobertas reabriram o debate sobre esses odiosos internatos onde crianças indígenas eram enviadas à força, e lá permaneciam até assimilarem a cultura dominante, revelando a face sombria de uma sociedade que aplicou uma política de extermínio cultural, bem como a tentativa de destruir as várias etnias indígenas. O governo de Justin Trudeau mostrou sua dor e pediu perdão pela violação da dignidade humana dos povos originários do Canadá. A Conferência Episcopal fez o mesmo e espera-se que o Papa Francisco também expresse esse arrependimento e peça perdão, em nome da Igreja Católica, em sinal de reconciliação e reparação pelos prejuízos causados. Em dezembro, está agendada uma reunião entre federações e organizações indígenas com o sumo pontífice, em Roma.

A questão implícita neste caso é a lógica da imposição de uma cultura que se define como superior. É o mesmo raciocínio que prevaleceu na colonização. Desde o Século XV até este Século 21, o raciocínio é o mesmo: a cultura superior deve prevalecer. A lógica da espada e da cruz na colonização. O sacerdote Juan Ginés de Sepúlveda, filósofo influente na Espanha do Século XVI, justificou a conquista com o argumento de que os índios eram bárbaros e pagãos, e que tais pessoas deveriam ser submetidas ao império de príncipes e nações mais educados e humanos. Assim, decidiu-se implantar a verdadeira religião, a católica, ação que justificava a violência e o uso das armas. A conquista e a colonização supõem a lógica da guerra justa, pois prevalece a imposição de uma cultura superior. A guerra é legítima porque justifica o estabelecimento de uma ordem civilizada. Sob esses conceitos, comunidades étnicas inteiras foram exterminadas em partes dos Estados Unidos pelos colonizadores puritanos. Também foi assim no norte da Argentina. A teologia da guerra justa e legítima foi questionada na Nova Espanha por Frei Bartolomé de las Casas quando ele escreveu: “conquistar nada mais é do que matar, roubar e saquear bens e terras daqueles que estão em suas casas tranquilas, que não ameaçaram ou fizeram mal a ninguém”. A conquista também foi denunciada no Século XVI por Francisco de Vitória, teólogo que reivindicou os direitos e a dignidade humana dos indígenas das terras americanas.

No entanto, essa atitude racista e arrogante prevalece hoje sob as manifestações políticas e representações culturais. A tenacidade e dureza nas lutas pelos direitos e equidade dos povos indígenas em todo o continente não é acidental. As culturas indígenas também desenvolveram mecanismos de resistência e resiliência. Suas lutas foram se acumulando através dos anos, em busca de afirmar a dignidade indígena no continente. Na Bolívia, houve um golpe racista em 2019, mas que felizmente foi revertido.

A presidente imposta pelos militares, Jeanine Áñez, comemorou a consumação do golpe com a bíblia nas mãos, enviando uma mensagem aos grupos étnicos que mais apoiam Evo Morales.

A resistência histórica das comunidades agrárias guaranis no Paraguai, nos Anos 60, a luta do povo mapuche no Chile, não são casos apenas de resistência cultural, mas também de uma luta contra a expropriação de terras e contra injustiças que a comunidade indígena historicamente sofre. O levante armado zapatista de 1994, no estado mexicano de Chiapas, buscou estabelecer a dignidade e os direitos coletivos dos povos indígenas, historicamente violados, bem como um novo modelo econômico do país que reconhece o multiculturalismo étnico baseado na justiça e no sistema de liberdades.

A resistência indígena é uma resposta à arrogância da civilização que se acredita ser superior. A mesma coisa acontece na Igreja Católica. Devemos examinar a atitude de desprezo dos sacerdotes e intelectuais europeus antes do Sínodo da Amazônia, que aconteceu em Roma, em outubro de 2019. O Papa Francisco foi acusado de permitir o paganismo no Vaticano. Os católicos conservadores não foram decorosos ao criticar as expressões culturais indígenas do universo amazônico como se fossem excentricidades inadmissíveis aos dogmas católicos.

Em suma, o drama canadense deve nos ajudar a rever o quanto ansiamos por uma sociedade secular, diversa, inclusiva, plural e tolerante.

Bernardo Barranco Villafán é sociólogo da Universidade Nacional Autônoma do México e mestre em Sociologia do Catolicismo Contemporâneo da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris

*Publicado originalmente em 'La Jornada' | Tradução de Victor Farinelli

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