Luis Gustavo Reis*, Pragmatismo Político
Segundo a respeitável plataforma digital Slave Voyages, cerca de 10 a 12 milhões de seres humanos foram arrancados da África para serem escravizados nas Américas. Desse total, aproximadamente 40% desembarcaram no Brasil que, assim como Roma, foram as maiores sociedades escravistas da história da humanidade.
O tráfico transatlântico de escravos, que vigorou por quase quatrocentos anos, deixou marcas profundas em todas as regiões onde foi adotado, constituindo um sólido legado perceptível até os dias de hoje. Milhares de africanos escravizados desembarcaram em cidades como Buenos Aires, Lima, Nova York, Rio de Janeiro, Havana, Cidade do México, Caracas, Montevidéu, Kingstown, Porto Príncipe entre diversas outras e formavam, em determinados períodos, a maioria da população na Argentina, Peru, Estados Unidos, Brasil, Cuba, Jamaica, Venezuela, Uruguai, Jamaica e Haiti.
Quem percorre atualmente as ruas de Buenos Aires, por exemplo, assiste aos jogos de futebol dos times argentinos, encanta-se pelos belos filmes produzidos pelos portenhos, pode se perguntar o que aconteceu com os quase 74 mil africanos que desembarcaram no Rio da Prata (como era conhecida a região até 1816) que não são vistos nos lugares citados. Como um grupo que compunha metade da população em 1776, constituí apenas 4% dos habitantes atuais?
Ocorre que no século XIX, o país foi acometido por uma grave epidemia de febre amarela responsável por dizimar parcelas significativas da população, especialmente os negros desassistidos dos serviços de saúde. Além da febre, o período foi marcado por diversas guerras internas e externas onde legiões de soldados escravizados foram enviados para serem trucidados nos campos de batalha.
Não bastassem esses horrores, nos idos de 1852 o presidente Justo José Urquiza decidiu recrudescer a política de embranquecimento da população implementada quatro anos antes. Para isso, distribuiu milhares de passaportes aos negros, principalmente aos homens, e os convocou a deixar o país. A empreitada logrou resultados e no início do século XX haviam poucos afro-argentinos no território, parte deles concentrados em Chacomús.
Apesar das sucessivas tentativas de extermínio dos negros e das diversas campanhas de apagamento de suas contribuições, são eles os responsáveis pelo elemento central da identidade argentina, o tango.
Desde meados do século XVIII, escravizados de diferentes etnias concentrados em Buenos Aires formaram sociedades de ajuda mútua onde praticavam, além de outras particularidades, cultos religiosos. Dançavam ao toque de tambores, entoavam canções ancestrais, reverenciavam altares repletos de símbolos sagrados e invocavam deuses até entrarem em transe.
Esses grupos religiosos deram origem ao chamado candombe (do banto Ka n’dombele, que significa “rezar aos deuses”), existente tanto na Argentina como em outras regiões do Rio da Prata (a origem do candombe divide estudiosos até hoje). Nos candombes, havia diversos elementos e rituais religiosos relacionados às distintas tradições africanas, além da prática de coroamento de reis e rainhas negros. Ao longo dos anos, o candombe foi se transformando e ganhando diversos significados, combinando períodos de legalidade e proibição sancionadas pelos poderosos senhores escravistas.
Após a abolição da escravidão (1813), os egressos do cativeiro passaram a se reunir em lugares que chamaram “casa de tango” (também conhecidas como “casas de tambó” ou “sítios”), substituindo os tradicionais candombes. Nessas casas, faziam reuniões, batucavam e cantavam diferentes músicas, religiosas ou não, criando um universo generoso de sociabilidades. No entanto, esses lugares passaram a incomodar as autoridades que ordenaram seu fechamento e a criminalização dos encontros.
Para driblar a proibição e se adaptar as contingências do momento, os frequentadores reinventaram os espaços, rearticularam suas relações e deram origem as chamadas “casas de bailes”, onde prevaleciam músicas embaladas por piano, flauta, violino, bandoneón e outros instrumentos, coreografadas por danças que misturavam o gingado do candombe, passos detalhadamente marcados e traços de sensualidade. No alvorecer de 1877, um grupo de negros inspirados no candombe e nas casas de bailes inventaram uma dança que chamaram especificamente de “tango”.
Desde o período colonial, alguns negros haviam aprendido música clássica, que passaram a tocar e a ensinar em várias escolas do país. No século XIX, pianistas como Ignacio San Martín e Teodoro Hipólito Guzmán, tocavam na orquestra da catedral de Buenos Aires. Remigio Navarro, Roque Rivero e Rosendo Mendizábal intercalavam aulas de piano e apresentações em festas apinhadas de gente.
Havia também dezenas de compositores, entre eles Casildo Thompson, Frederico Espinoza e Zenón Rolón que se destacaram pelas belíssimas canções que escreveram. Gabino Ezeiza, nascido em 1858 no então bairro negro de San Telmo, Buenos Aires, compôs mais de quinhentas músicas, entre elas tangos que foram imortalizados e ganharam projeção internacional.
Ao entrar no século XX, o tango sofreu diversas influências europeias que modificaram não apenas as letras das músicas, mas também as coreografias e os espaços onde era tocado. Dos bailes frequentados por negros e brancos pobres marginalizados, passou aos salões da alta sociedade, integrando o repertório de casas de espetáculo que iam de Nova York à Paris. Ao passo que o século avançava, acelerava-se também o apagamento da origem africana do tango, conhecido atualmente como herança dos imigrantes europeus.
De Norte à Sul das Américas, os africanos e seus descentes construíram e influenciaram a formação de diversos elementos culturais, muitos deles escamoteados pelas sistemáticas falsificações da história. Baseados em uma ideologia que estabelecia hierarquias entre os grupos humanos, ideia muito comum nos dias de hoje inclusive no Brasil, as autoridades argentinas e seus asseclas não foram capazes de destruir a força dos escravizados que deixaram suas impressões digitais no país e foram os responsáveis pela criação do símbolo máximo nacional, queira-se ou não.
*Luis Gustavo Reis é professor, editor de livros didáticos e colabora para Pragmatismo Político
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