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sábado, 29 de agosto de 2020

Os EUA lidam com um tsunami de despejos. Devemos cancelar os aluguéis antes que seja tarde demais

Créditos da foto: 'Cerca de 40 milhões de pessoas em todo o país enfrentam despejo devido à incapacidade de pagar o aluguel.' (Valérie Macon/AFP via Getty Images)

O fundo de Auxílio Aluguel de Houston esvaziou 90 minutos após sua abertura. Em Chicago, 80.000 inquilinos se candidataram para 2.000 concessões de auxílio


Por Lupe Arreola e Amee Chew                                                                   28/08/2020 10:58

Já começou. A maioria dos estados dos EUA retomou os despejos, ou os estão permitindo mesmo com a piora da pandemia.

Aproximadamente 40 milhões de pessoas na nação estão enfrentando despejos devido a incapacidade de pagar o aluguel. Em comparação, a crise das hipotecas em 2008 viu a perda de 10 milhões de lares. Agora, milhões – idosos com deficiência, pais e filhos – correm risco de perder suas casas. O despejo atinge desproporcionalmente mulheres negras e pessoas de cor, aprofundando desigualdades raciais selvagens.

Não é tarde demais para pôr fim a esse “tsunami de despejos” sem precedentes e reparar os danos, mas devemos ser ousados.

O tsunami não é acidente. É o resultado do lobby dos senhorios e das decisões dos legisladores. Mesmo antes da pandemia, 20.5 milhões de lares estavam batalhando para pagar o aluguel. No dia do trabalhador, milhares de inquilinos ao redor do país protestaram exigindo o cancelamento dos aluguéis pelo governo. Ao invés, o Congresso gastou trilhões resgatando grandes corporações, incluindo proprietários de imóveis de capital privado que lucraram exorbitantemente com a dor da crise das hipotecas e suas consequências. Agora, proprietários aumentaram os registros de despejos em antecipação aos moratórios que estão prestes a expirar, enquanto os inquilinos ainda não receberam o seguro-desemprego que lhes foi aprovado.

De Nova Orleans até a cidade do Kansas, Los Angeles até Nova Iorque, inquilinos estão interrompendo tribunais de despejo, bloqueando despejos e lutando para estender moratórios. Estão cumprindo com suas necessidades de moradia e criando alternativas à falta de moradia, ponto em que os legisladores falharam. Mas precisamos de mais do que somente tapa buracos que adiam o despejo.

Cancelar os pagamentos do aluguel e da hipoteca é a solução mais efetiva às dívidas que se acumulam e às ameaças de despejo em massa nas comunidades de trabalhadores, comunidades de cor e lares de baixa renda durante e depois da pandemia de covid-19. Isso significa aprovar leis que eliminem a obrigação do pagamento do aluguel, multas por atraso e pagamentos não realizados durante a pandemia. Atualmente, a dívida da hipoteca deve ser perdoada ou uma tolerância deve ser concedida. Auxílios adicionais devem priorizar inquilinos em risco e fornecedores de moradia acessível permanente – enquanto proprietários de grandes corporações devem ser taxados para ajudar a pagar a conta.

Cancelar os pagamentos do aluguel e da hipoteca atua imediatamente para abordar a verdadeira dimensão do problema.

Devemos proteger os inquilinos universalmente cancelando o aluguel para todos os arrendatários, independentemente de renda, emprego ou situação imigratória. Isso elimina formulários, provas de elegibilidade e esperas pelo auxílio. Protegendo todos os arrendatários, auxiliamos todos os marginalizados entre eles. O cancelamento universal do aluguel promove justiça econômica racial e de gênero por causa de quem são esses arrendatários: em sua maioria trabalhadores de baixa renda e, desproporcionalmente, de cor. Em contraste, exigir que os inquilinos solicitem assistência significa que grandes faixas da sociedade caem nas brechas.

Fundos de auxílio aluguel alcançaram somente uma pequena fração de milhões de pessoas que estão batalhando. Houston esvaziou seu fundo de assistência de 15 milhões de dólares em apenas 90 minutos depois da abertura das solicitações; Los Angeles propôs um fundo de auxílio de 100 milhões de dólares que cobriria menos de 14% das pessoas que se encontram à beira do despejo; e em Chicago mais de 80.000 arrendatários solicitaram auxílio para um total de 2.000 auxílios disponíveis. A administração do auxílio aluguel está excluindo as pessoas sem documentos, os que possuem empregos informais e que não possuem conta bancária, lares rurais e qualquer pessoa que encara obstáculos ao navegar o sistema.

Fundos de auxílio aluguel sozinhos não conseguem resolver a crise dos aluguéis agravada pela pandemia. Eles não consertam as causas fundamentais por trás da falta de acessibilidade à moradia: décadas de especulação estatal desenfreada e dependência crescente nos desenvolvedores com fins lucrativos para produzir moradias, junto com drásticos cortes na produção de moradias públicas e sem fins lucrativos que são permanentemente acessíveis. Desde 2000, a proporção de unidades recém construídas na ponta mais luxuosa mais do que duplicou, enquanto aquelas com aluguel mensal de menos de 850 dólares foram reduzidas pela metade. Para verdadeiramente abordar a crise da moradia, devemos limitar os aluguéis e financiar moradias sociais que sejam permanentemente acessíveis.

Depois da crise das hipotecas, os maiores proprietários de capital privado recolheram casas executadas. Políticas do governo permitiram e recompensaram esses atores ruins. Em 2020, estão novamente preparados para adquirir propriedades em massa. Podemos evitar isso. Ao invés de subsidiar proprietários corporativos e bancos que tiraram a riqueza das nossas comunidades, devemos cortá-los.

Primeiramente, ao combinar o cancelamento do aluguel com o cancelamento da dívida hipotecária, podemos estabilizar comunidades inteiras: inquilinos e proprietários pequenos, também. Auxílio adicional pode priorizar proprietários necessitados que mantêm aluguéis acessíveis e cumprem com as proteções aos inquilinos; fundos públicos deveriam subsidiar seletivamente proprietários socialmente responsáveis.

Em segundo lugar, moratórios consistentes de despejo, interrompendo todos os aspectos de todos os processos de despejo exceto em casos de ameaças iminentes à saúde e segurança, devem ser viabilizados e estendidos. A falta do pagamento do aluguel durante a pandemia como base para o despejo deve ser eliminada permanentemente– como São Francisco fez e como legisladores da Califórnia estão em vias de fazer com o AB 1436.

Finalmente, devemos redirecionar abundantes recursos públicos para criar moradias sociais. Depois da crise das hipotecas, a Administração Federal de Moradia vendeu 98% das propriedades hipotecadas aos proprietários de Wall Street a preço de banana. Dessa vez, devemos mudar a posse de corporações lucrativas para controles comunitários não lucrativos, incluindo cooperativas permanentes de moradia acessível, fundos de terra comunitária e moradia pública. Devemos abrigar os sem abrigo, ao invés de criminalizá-los. E devemos limitar grandes aquisições corporativas, seja por meio da proibição direta, domínio iminente ou leis que garantam o primeiro direito de aquisição para entidades públicas, sem fins lucrativos e arrendatários.

Essa visão mais ampla é o que as organizações de justiça por moradia dizem quando demandam “cancelem o aluguel, retomamos nossos lares”. Nessa linha, a lei federal da deputada de Minnesota Ilhan Omar procura construir um sistema de moradia mais justo, ao combinar o cancelamento do aluguel e da hipoteca com um fundo de aquisição para criar moradias sociais. Legisladores de Nova Iorque e Illinois introduziram leis para cancelar o aluguel e as hipotecas em todo o país. O momento continua a ser construído.

Fornecedores de moradias acessíveis como o Jane Place em Nova Orleans e Push Buffalo em Nova Iorque cancelaram voluntariamente o aluguel de seus inquilinos. Mas precisamos de ações do governo para cancelar aluguéis e hipotecas sistematicamente, dando a esses bons samaritanos algum alívio pela renda perdida, enquanto nivelam o terreno contra os gigantes proprietários corporativos. Eles sentam em mais de 470 bilhões de dólares em isenções fiscais incluindo alguns bilhões do estímulo contra a covid-19. Eles devem retribuir financiando moradias sociais.

No entanto, tudo começa dando às comunidades de cor e de baixa renda uma chance para permanecerem em suas casas. Devemos ouvir os mais afetados. Já passou da hora de tornar realidade a demanda prática – e transformadora - pelo cancelamento dos aluguéis e das hipotecas.

*Publicado originalmente em 'The Guardian' | Tradução de Isabela Palhares

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