O ensaio de Kristen Ghodsee aponta que o capitalismo gera relacionamentos de espírito transacional. Mulheres, para sobreviver, colocam o corpo. Homens, poder e dinheiro. Resultado? Insatisfação.
Por Lorena G. Maldonado 30/08/2020 13:23
O capitalismo é ruim para todos, diz a intelectual americana Kristen Ghodsee, mas especialmente para as mulheres, e suas vidas íntimas. A autora do livro “Por que as mulheres gostam mais do sexo no socialismo” mostra já no título de sua principal obra o que descobriu em seus estudos como etnógrafa e investigadora de temas sobre a União Soviética e demais países do Leste Europeu. Após décadas analisando o que aconteceu com as mulheres durante o período final da Guerra Fria e os anos de transição do socialismo para o capitalismo, ela decidiu se enfocar em como a mudança no modelo econômico afetou a felicidade e os orgasmos femininos. Sua satisfação emocional foi alterada? Seu número de parceiros? Para bem ou para mal? Para mais ou para menos?
Na verdade, Ghodsee não é nostálgica: ela se limita a apontar que há aspectos do socialismo que devem ser resgatados. É claro que não são todos. Porém, é importante entender que ela descreve o cenário ideal dentro daquilo que define como “o socialismo quando desenvolvido corretamente”, o que aconteceu em certos momentos de várias das experiências da Europa oriental na segunda metade do Século XX. Segundo ela, esse socialismo correto “leva à independência econômica das mulheres, além de melhores condições de trabalho, maior equilíbrio entre vida profissional e pessoal, e graças a tudo isso se tem um sexo melhor”.
Teoria da economia sexual
Sua tese analisa (mas não necessariamente concorda com) a “teoria da economia sexual”, uma polêmica tese publicada em 2004 que propunha que “sexo é algo que os homens adquirem das mulheres, seja com recursos monetários ou não, e que o amor e o romantismo são meros véus cognitivos que os humanos usam para disfarçar a natureza transacional de nossas relações pessoais”.
Seus autores são Roy Baumeister e Kathleen Vohs, que aplicam a disciplina econômica ao estudo da sexualidade humana. Eles afirmam que o sexo é “uma mercadoria controlada pelas mulheres”, porque elas têm menos desejo sexual e podem administrá-lo melhor, exigindo uma compensação dos homens em troca de relações sexuais.
Outra ideia controversa dentro dessa teoria é que “não é o patriarcado o responsável por humilhar as mulheres promíscuas, mas sim as outras mulheres que as castigam por venderem o seu sexo a preços muito baixos e, assim, baixar o preço de mercado”.
Seguindo essa lógica, o preço do sexo seria mais baixo nas sociedades progressistas, nas quais o acesso à vida política e econômica foi aberto às mulheres. Mulheres emancipadas – com oportunidades educacionais e trabalho remunerado – têm diante dos olhos outras formas de atender às suas necessidades básicas. Não são mais obrigadas a depender de nenhum homem ou pensar neles como maridos-provedores: podem mudar de parceiro sexual, ter mais relacionamentos buscando sua satisfação, e não precisam estar vinculados a nenhum, se quiserem.
Outros fatores que desvalorizam o sexo são a disponibilidade de anticoncepcionais e o aborto legal. “Quando o sexo traz o risco da maternidade, as mulheres exigem um preço muito mais alto para ter acesso a seus corpos, no mínimo, um compromisso sério e, se possível, o casamento”, escreve Ghodsee.
A culpa (de tudo) é deles
O problema é a leitura misógina dos dados. Por exemplo, a direita estadunidense usou este estudo para culpar as mulheres pelo mau desempenho dos homens. “Se o preço do sexo é baixo, eles não têm incentivo para fazer algo melhor (…) quando o preço do sexo é muito alto, os homens desesperados encontram incentivos para sair e procurar trabalho, ganhar dinheiro e fazer algo de lucrativo, o que tornará mais fácil para eles o acesso à sexualidade ao longo da vida, com apenas uma mulher, através do casamento”. Economistas homens também acreditam que, em culturas onde há mais homens do que mulheres, eles são mais empreendedores.
A autora de mentalidade feminista acaba concordando com a teoria da economia sexual, mas apenas dentro dos limites do sistema de livre mercado. Não é “natural”, de forma alguma, mas uma resposta a uma forma concreta – capitalista – de organizar a sociedade. Ela argumenta que “embora não saibam disso, os teóricos da economia sexual chegam a aceitar uma velha crítica socialista do capitalismo: que ele mercantiliza todas as interações humanas e reduz as mulheres a bens móveis”. Isso pode ser observado mais claramente no caso das mulheres que procuram um marido rico, e também nas prostitutas. Os teóricos socialistas, por sua vez, acreditam que a independência econômica das mulheres e a propriedade coletiva dos meios de produção “libertariam as relações pessoais dos cálculos econômicos”.
Proposta de Kollontai
A socialista e feminista russa Aleksandra Kollontai – a primeira mulher na história a ocupar um cargo no governo de uma nação – se rebelou contra essa mercantilização. Ela escreveu: “no que diz respeito às relações sexuais, a moral comunista exige, antes de mais nada, o fim das relações baseadas em considerações financeiras. A venda de carícias destrói a noção de igualdade entre os sexos”. É preciso lembrar que ela não defendia a promiscuidade, o hedonismo ou o amor livre: no fundo, ela era bastante conservadora quando se tratava de sempre relacionar sexo e amor, mas acreditava firmemente que destruindo o vínculo entre sexualidade e propriedade, “os homens e as mulheres teriam relacionamentos mais autênticos e significativos”.
Lenin e seus camaradas não se interessaram por essa revolução e acabaram mandando Kollontai para a Noruega, em missões diplomáticas. Ou seja, a tiraram do país, para que ela não incomodasse muito. Embora as pesquisas da época indiquem que grande parte da juventude soviética apoiava a visão de Kollontai, o conservadorismo tradicional da cultura camponesa russa, junto com os conselhos da puritana classe média, destruiu o plano da intelectual e política feminista.
Recordemos também que, naquela época, não havia acesso a anticoncepcionais. As mulheres não conseguiam controlar sua fertilidade. Os homens fugiam de suas responsabilidades de apoio, apesar das boas intenções que mostravam nos tribunais. O estado soviético chego a criar uma rede de orfanatos para cuidar de crianças sem família, mas era um projeto muito caro. Com o tempo, todas as ideias de Kollontai foram ridicularizadas e rejeitadas.
Quando Stalin chegou ao poder, não mudou essa relação. As mulheres continuaram a se dedicar à gestação e à criação dos filhos gratuitamente, mas também a trabalhar fora de casa “para contribuir para a ascensão da União Soviética como potência industrial”. “Alguns conservadores norte-americanos adorariam muitas das políticas de Stalin: ele proibiu o aborto novamente, promoveu a abstinência até o casamento, sufocou o debate público sobre sexualidade, perseguiu gays e exaltou padrões tradicionais de gênero dentro do casamento heterossexual”.
As duas Alemanhas
Essa mesma tendência também foi observada na Alemanha Oriental e na Alemanha Ocidental. “Com o início da Guerra Fria, a aliança entre Stalin e as potências ocidentais foi fraturada. A Alemanha Oriental foi deixada do lado soviético da Cortina de Ferro e sob um governo de partido único. A divisão da Alemanha oferece um interessante experimento natural sobre os direitos das mulheres e a sexualidade”, escreve a autora. Enquanto a Alemanha Ocidental abraçou o capitalismo – com seus papéis tradicionais de gênero e seu modelo de casamento monogâmico e burguês – o Oriente, “com seu objetivo de emancipar as mulheres, combinado com a escassez de mão de obra, incorporou-as em massa para a força de trabalho”.
Isso gerou mulheres autônomas e independentes que, caso se sentissem insatisfeitas com seu parceiro sexual, poderiam trocá-lo por outro, por não necessitarem dele financeiramente. As mulheres da Alemanha Ocidental não tiveram tanta sorte e tiveram que se acostumar com a frustração erótica. Os pesquisadores da Alemanha Oriental se esforçaram para “mostrar que seus compatriotas gostavam de sexo cada vez com mais frequência”. Em 1988, Kurt Starke e Ulrich Clement realizaram o primeiro estudo comparativo de experiências sexuais avaliadas pelos próprios entrevistados entre estudantes do sexo feminino de ambas as Alemanhas. Resultados: as mulheres alemãs orientais “gostavam mais de sexo e relataram uma taxa mais alta de orgasmos por relacionamento do que as ocidentais”. O mesmo aconteceu com a sincronização entre mulheres e homens, como mostrou um estudo posterior, em 1990.
*Publicado originalmente em 'El Español' | Tradução de Victor Farinelli
Carta Maior
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