Créditos da foto: Nancy Isenberg, autora de 'White Trash: The Ignored 400 Years of American Social Class History' (Reprodução)
''Tornar impossível que brancos e negros criem uma aliança de classe tem sido uma constante na história dos EUA", assinala a autora de "White trash: os ignorados 400 anos de história das classes sociais estadunidenses''
Por Javier Biosca 01/11/2020 14:47
Uma extensa investigação levou Nancy Isenberg, escritora e professora de história na Uniservisade Estadual de Luisiana, a concluir que os EUA ocultaram deliberadamente a própria história de suas classes sociais; que o mito do “sonho americano” não existe; e que os EUA “replicaram a ordem aristocrática” europeia que foi rejeitada em suas origens porque a mobilidade social do país “depende do que você herda dos seus pais ao invés de ter serviços sociais que façam com que seja uma questão de mérito”. Seu trabalho está compilado no ensaio “White trash: os ignorados 400 anos de história das classes sociais estadunidenses”.
Por que os EUA ocultaram deliberadamente a história de suas classes sociais?
Creio que parte do problema é que nos EUA prestamos muita atenção, inclusive hoje em dia, na celebração do nosso nascimento como país independente. Todas as nações-Estado criam mitos do que representa seu governo e o seu país e o nosso mito é que foi fundado na rejeição ao sistema de classes que existia na Europa. Rejeitar a aristocracia, os títulos, a monarquia. Tomar essa identidade política implicava que sempre havia uma tensão na hora de discutir questões de classe no país.
Embora haja uma tentativa de negar a classe, – ligada ao mito de que os EUA são a terra das oportunidades e que todo mundo pode experimentar a mobilidade social, o que não é verdade - toda hora ela emerge e se converte em parte do debate político. Inclusive a Guerra Civil é sobre raça e classe. Com o New Deal e a Grande Depressão tanta gente ficou sem trabalho que de repente já não podiam mais utilizar a lógica de que são os preguiçosos que não trabalham. Prontamente tiveram que reconhecer que os EUA não somente experimentaram uma mobilidade ascendente, como também experimentaram mais mobilidades descendentes. Para os estadunidenses, esse é um tema realmente difícil de abordar.
Você diria que o “sonho americano” existe para a classe trabalhadora branca dos EUA?
As pessoas que apoiam Donald Trump não adoram o presidente, mas sim o espaço que ele criou no qual repentinamente há de se prestar atenção na classe trabalhadora branca. Subitamente eles têm um defensor. Têm um espaço nos meios de comunicação onde tinham sido ignorados anteriormente.
A maioria das pessoas que votou em Trump em 2016 não acredita no mito da meritocracia – trabalhe duro e será recompensado. Na prática, esse mito não se aplica. Pouco mais de um terço dos estadunidenses chega a ter diploma universitário. A ideia de ir à universidade, algo que realmente muda suas rendas, não se aplica a eles. Também têm medo de perder seus status ao invés de poder ascender, que é o objetivo dos Democratas. Não acreditam na ideia do profissional formado porque sabem que isso não será alcançável para eles e provavelmente nem para seus filhos. O que querem é ser recompensados com um retorno aos empregos mais estáveis da classe trabalhadora que desapareceram porque todos os levaram para outros países.
É difícil entender como essas pessoas chegaram a votar e se tornar seguidoras convencidas de Trump em 2016 se, como você disse, o presidente está tão distante delas e não se identifica com seus interesses.
Vivemos em um mundo de ideologia e as pessoas nos EUA pensam que têm mais mobilidade social que em qualquer outro país do mundo, o que não é verdade. Está provado estatisticamente. Países como a Suécia e a Dinamarca têm mais mobilidade social porque fornecem assistência social. Nesse país, a família média tem que contribuir com 50% de sua riqueza para seus filhos. Replicamos a ordem aristocrática porque tudo depende do que a pessoa herda dos pais ao invés de termos serviços sociais que façam com que isso seja uma questão de mérito. Mas a maioria dos estadunidenses sabe muito pouco sobre sua história e repete diversas vezes o mito [do “sonho americano”].
Nossa divisão de classe é tão extrema que não é uma democracia real. No Congresso são todos milionários. Essa é realmente uma das coisas que mudou substancialmente. Incialmente em nosso país, se você estava no Congresso, não ganhava muito dinheiro. Em 1817 decidiram aumentar os salários para 16 dólares. O problema, então, é que você tinha que ser rico para trabalhar no Congresso. Mas agora fomos ao extremo oposto, no qual toda essa gente está vinculada a grupos de lobby, gastam uma fortuna em suas campanhas e estão totalmente fora de contato com a sociedade. Passam a maior parte do tempo no telefone tentando arrecadar dinheiro.
Quando essa gente elegeu Trump, também estavam rejeitando o Partido Republicano. Estavam cansados da política de sempre. Outra coisa que Trump faz que as atrai e que foi uma das chaves do seu sucesso é a forma com que ele fala. Gostam que ele fale de maneira grosseira, na cara... e confundem isso com autenticidade. É muito triste que os estadunidenses aceitem isso, mas infelizmente isso é algo que remonta ao século 19. No século 19, os políticos da elite iam ao interior e transmitiam suas mensagens para o povo pobre que vivia nos barracos. E por um momento tinham que falar seu idioma. Mas assim que iam embora, não tinham nenhuma obrigação de apoiar nenhuma política que os beneficiassem realmente.
Por que a interseção de classe e raça que resulta na “escória branca” é tão importante? O que os diferencia do resto da classe trabalhadora desse país?
Eu acredito que isso é muito importante. Vou enfatizar duas grandes tendências que sucedem na história dos EUA sobre a interseção de raça e classe. A primeira é que as elites sulistas frequentemente manipulavam a tensão entre os brancos pobres e os afro-americanos pobres. Na Guerra Civil, por exemplo, quando a Confederação era um governo muito elitista, inclusive pensaram em negar o direito ao voto aos brancos pobres. Temiam profundamente que o povo branco pobre apoiasse Lincoln porque ele prometia a Lei de Terras – permitir a pequenos agricultores o acesso a terras do governo – e a concessão de terras aos sem-terra. Por isso, as elites sulistas trataram de atrair os brancos pobres. O que fizeram durante a Guerra Civil foi dizer a eles que se apoiassem Lincoln perderiam seu status e se tornariam iguais a escravos. Sempre exploraram essa tensão.
Isso também aconteceu quando o movimento populista no fim do século 19 mobilizou os interesses dos negros da classe trabalhadora e dos brancos pobres sulistas da classe trabalhadora. As elites sulistas romperam essa aliança e se asseguraram de que os brancos pobres estavam alinhados com outros brancos da elite ou da classe média. Essa sempre foi uma tensão incômoda. Tornar impossível que brancos e negros criem uma aliança de classe tem sido uma constante na história dos EUA. Essa é a única tensão que se repete na história dos EUA. Mas tiveram pessoas que romperam essa dinâmica, como Martin Luther King.
As pessoas se esquecem que MLK dizia que é necessário abordar a raça e a classe. Não se pode presumir que as pessoas e suas vidas estejam definidas por só uma variável. A sociedade é complexa. No entanto, os meios de comunicação sempre querem simplificar as coisas e acabam se tornando discos arranhados. Nesse sentido, a maior parte do foco dessas eleições é simplesmente falar do nacionalismo branco o tempo todo que, embora reflita uma parte do eleitorado de Trump, não reflete o todo.
Estamos em um dilema no qual não conhecemos o passado e no presente existe uma hierarquia de opressões. Essencialmente temos que dizer sempre que a raça está no centro de tudo, quando na verdade pode ser a raça e a classe. Não se perde nada em dizer isso e não entendo por que os jornalistas têm essa espécie de dogma. Dizem: “raça, raça, raça”. E logo se perde o panorama geral. Esquecem que a raça e a classe podem operar em uníssono para oprimir certos grupos de maneiras diferentes. A classe importa tanto quanto a raça no que diz respeito à fonte dessa opressão.
Porque você diz que as origens da “escória branca” remontam à colonização britânica? Como esse sistema sobreviveu até hoje?
O [Reino Unido] queria se desfazer dos pobres no “novo mundo”, que não era a terra da liberdade, era o contrário. O “novo mundo” era basicamente um asilo para pobres para aliviar a pressão econômica sobre a Grã-Bretanha. A razão pela qual a linguagem para se referir a essas pessoas persistiu até hoje tem a ver com a persistência dos pobres das zonas rurais. São os pobres mais invisíveis, mas em certo sentido têm muita influência política, especialmente no sul, pela forma injusta com que se contam os votos e a forma como funciona o colégio eleitoral.
Essa divisão entre o urbano e o rural segue vigente até hoje. Muitas das pessoas que vão aos comícios de Trump se identificam com um personagem rural: a forma com que usam os chapéus de trabalho, a forma com que usam as calças e camisetas “de cowboy”. Estão invocando uma espécie de identidade antiga de estadunidenses rurais.
*Publicado originalmente em 'El Diario' | Tradução de Isabela Palhares
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