A história sempre é contada pelos vencedores. E ainda, pelas elites.
Quando vemos entrevistas, artigos, livros sobre o Golpe Militar de 31 de março, ou 1º de abril, nem sobre a data existe consenso, são mostradas opiniões e teses de intelectuais, jornalistas e acadêmicos de maneira geral, ou de remanescentes dos vencedores, como Jarbas Passarinho, por exemplo. Só que a grande maioria da inteligentsia tomou conhecimento dos fatos através dos livros, dos filmes, ou os presenciou do alto de seus gabinetes, ou dos bares da moda, pelo que muitos eram designados ironicamente como “esquerda festiva”...
Destarte, não existe interesse das classes dominantes e sua elite, em ouvir a opinião daqueles do “andar de baixo”: operários e camponeses. Nesta passagem dos 40 anos do Golpe vimos na mídia, por exemplo, opinião do Serra que na época presidia a UNE, de vários acadêmicos da ocasião ou de hoje, mas ninguém do CGT, ninguém das Ligas Camponesas de Sapê ou das do Julião. Claro que estudantes, intelectuais, jornalistas, tiveram seu papel, mas quem impulsionava de verdade a luta eram os operários, e os camponeses das Ligas e, foi exatamente em função de sua participação e da adesão radical de alguns setores militares, que o golpe foi dado. Os golpistas nunca falaram em “república estudantil” ou “república de intelectuais”. Eles acusavam e temiam uma “república sindicalista” ou o “comunismo”. Ou seja, o proletariado e o campesinato. No primeiro momento do golpe, a “mão de ferro” dos “gorilas“ caiu pesada sobre essas duas classes sociais. Feitas essas considerações vamos aos fatos.
Quando a pressão popular, e internacional, cresceu no sentido do ingresso do Brasil na Segunda Grande Guerra, no início dos anos 1940, Vargas foi forçado a renunciar ao seu “namoro” com o fascismo, findando por declarar guerra aos países do Eixo. Em troca, ganhou dos EUA o financiamento da Siderúrgica de Volta Redonda, ano Estado do Rio. Sua nova senda nacionalista foi, porém, interrompida pelo golpe militar de 29 de outubro de 1945, e retomada com seu retorno ao governo em 1950, como se dizia então, “nos braços do povo”.
No interregno, ajudou a eleger o Mal. Dutra em 1946, cujo governo “torrou” em bugigangas de plástico o grande saldo de divisas acumulado pelo país nas transações internacionais durante a Guerra. O Brasil chegou a importar “bibloquês” e “io-ios”, brinquedos simplórios de plástico. Seu “feito maior” foi render-se à “guerra fria” e caçar os mandatos dos parlamentares comunistas recém eleitos e colocar o PC na ilegalidade, com o apoio entusiasta dos “democratas”.
Em 1951, com Osvaldo Aranha no Ministério da Fazenda, Vargas instituiu o controle cambial e a “taxa de defesa do café”. O controle cambial significava diferentes taxas para conversão do dólar, segundo a importância da importação para a economia; o diferencial obtido destinava-se ao BNDE criado naquela oportunidade como instrumento do desenvolvimento. A taxa de defesa do café incidente sobre o café exportado (nosso principal produto de exportação naquele tempo) tinha semelhante destinação. Em função da luta popular encabeçada pelos comunistas, “O petróleo é nosso”, Vargas findou por criar a Petrobrás e, encaminhar a instituição da Eletrobrás que se deu tempos depois. Porém, o capital internacional com os EUA à frente, financiou e estimulou toda a sorte de provocações e agitações de seus agentes internos liderados por Carlos Lacerda, jornal O Globo, Estadão, e outros, que redundou no suicídio de Vargas em 1954 e na interrupção momentânea do desenvolvimentismo. O Mal. Lott, então Ministro da Guerra, afastou militarmente os golpistas, colocou o presidente do Senado Nereu Ramos na presidência da República, e garantiu não só as eleições de outubro de 1955 como a posse e o mandato de Juscelino.
Com Juscelino, o desenvolvimentismo retornou, porém, sem o acentuado cunho nacionalista da era Vargas, em que pese o ato de rompimento com o FMI no Palácio do Catete, com a presença das lideranças nacionalistas e de Luiz Carlos Prestes, secretário geral do PC. O Plano de Metas de seu governo incluía o capital estrangeiro, notadamente as montadoras de veículos. Coincidentemente, a partir de 1956, o Partido Comunista deixou de priorizar a luta armada e o sindicalismo paralelo, passando a atuar nas entidades sindicais existentes. Gradualmente, foi afastando delas a pelegada e assumindo a hegemonia do movimento sindical. Daí por diante, a participação do movimento sindical na política, em aliança com o campesinato e os trabalhadores rurais foi num crescendo – e se radicalizando acentuadamente – até março de 1964. Criados nesse processo os Conselhos Sindicais (estaduais) que culminaram com o CGT – Comando Geral dos Trabalhadores (de nível nacional), e o PUA – Pacto de Unidade e Ação que envolvia as categorias de ponta da época.
Nesse contexto, os estudantes da UNE foram intensificando e radicalizando sua atuação. Por inspiração dos comunistas e nacionalistas criadas a Frente de Mobilização Popular que envolvia as entidades populares (associações de amigos de bairros, de empresários, estudantis, nacionalistas, etc.) e a Frente Parlamentar Nacionalista. No campo, o advogado Francisco Julião criou as Ligas Camponesas em Pernambuco, e o camponês comunista João Pedro Teixeira (assassinado pelos latifundiários antes do golpe) a Liga Camponesa de Sapê, na Paraíba, esta mais atuante e radical. De outro lado, o comunista Lindolfo Silva, fundou a ULTAB – União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil, que mais tarde se transformaria na CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores Agrícolas, da qual foi, também, seu primeiro presidente.
Mas a coisa não parou. Toda essa ebulição arrastou os militares: primeiro foram os sargentos do exército com seu movimento rebelde em Brasília; depois a Associação dos Cabos e Soldados do Exército passou a atuar política e declaradamente no cenário nacional, a exemplo dos sargentos. Posteriormente, foi a vez dos marinheiros, com a sublevação de sua Associação ocorrida pouco antes do golpe militar (e depois da reunião dos sargentos no Automóvel Clube do Rio de Janeiro a qual Jango compareceu), sob o comando do Cabo Anselmo, mais tarde denunciado como provocador e agente da CIA. Em 1962, ocorreu a cisão do Partido Comunista, que redundou no Partido Comunista Brasileiro, liderado por Prestes, e no Partido Comunista do Brasil, sob a liderança de João Amazonas.
Desde 1958 os comunistas defendiam as chamadas Reformas de Base: Reforma Agrária, Reforma Urbana, Reforma Bancária, Reforma da Educação. Limitação das Remessas de Lucro ao Exterior, Política Externa independente, defesa da indústria nacional, etc., além do restabelecimento de relações diplomáticas e comerciais com a URSS e países socialistas e defesa da Revolução Cubana. Tais bandeiras foram sendo gradualmente aprovadas nos diversos encontros e congressos sindicais que se sucederam no período, mas o presidente João Goulart só aderiu a elas tardiamente, no célebre comício do dia 13 de março, há 18 dias do golpe militar.
O capital nacional aderiu a parcela dessas propostas que mais consultavam seus interesses, e integrou a Frente de Mobilização Popular, e apoiou as Reformas e o governo Jango até, mais ou menos o 3º trimestre de 1963. Com a radicalização do movimento que, diga-se de passagem, estava longe de se refletir nas amplas massas trabalhadoras da cidade, e principalmente do campo (esta maioria da população naquela época), a burguesia nacional foi se afastando. Parte dela aderiu ao golpe de estado então tramado por latifundiários e empresários ligados ao capital estrangeiro, com apoio dos militares direitistas e da chamada grande imprensa, e parte foi neutralizada.
Para a maioria da esquerda e dos nacionalistas o processo caminhava para a vitória, mesmo baseado apenas nas elites do movimento sindical e popular. Aliás predominavam, de um lado, a idéia golpista defendida por Brizola e seus “Grupos dos 11”, que preconizavam o fechamento do Congresso e a realização das Reformas de Base “na lei ou na marra”, tudo com base num suposto “dispositivo militar” de Jango comandado pelo gal. Assis Brasil. Esse “dispositivo” não passava de uma miragem... e derreteu como sorvete ao sol nos dias do golpe. Além do anticomunismo e combate à corrupção, outra bandeira forte era o respeito à disciplina, que isolou e desarmou os militares nacionalistas e da esquerda, facilitando drasticamente a ação golpista...
Nunca se fez tanta greve junta na história do Brasil. Por exemplo, em 1963 a Estrada de Ferro Leopoldina parou por 13 vezes, mais de uma greve por mês. Mas, durante as paralisações, os ferroviários iam pescar. Não havia o entendimento, por parte das lideranças, de que greve não era férias nem feriado. Havia que convocar os trabalhadores para realizarem manifestações nas ruas, para entender o sentido mais profundo do movimento, o que não acontecia. Os comunistas e a esquerda mais radical padeciam na ocasião do mal chamado “ilusão de classe”. Que consistia em acreditar num processo de desenvolvimento social e político sem recuos. Por isso, não contavam com a hipótese – e nem chagaram a perceber quando aconteceu – da burguesia desembarcar da chamada “Frente Única”. Acreditavam piamente no “dispositivo militar” de Jango que talvez nunca tivesse existido. Uma das provas dessa ilusão foi Prestes fazer manchete no jornal comunista “Novos Rumos”, já às vésperas do golpe: “Se os golpistas botarem a cabeça de fora, nós as cortaremos”. Não conseguíamos ver nosso isolamento político, nossa distância das grandes massas urbanas e rurais, e a iminência do golpe militar.
Fomos pegos de surpresa diziam certas lideranças comunistas, nacionalistas e da esquerda em geral. Surpresa essa causada pelo entendimento errôneo da dialética como um processo de desenvolvimento que avançava sempre, e não comportava recuos. Mas o avanço da sociedade comporta recuos sim, porque o desenvolvimento não se dá em linha reta, mas em espiral. Ao menos esse era o entendimento dos clássicos do marxismo que a vida, e a história do Brasil em particular, teimam em comprovar com insistência.
A “ilusão de classe” predominante de um lado, misturada com o esquerdismo infantil de outro, impediu as forças democráticas e progressistas de se oporem com êxito ao golpe de 64. Sequer permitiu uma resistência relativamente organizada mesmo que fraca. Os bolsões de revolucionários, patriotas e democratas que ousaram se levantar naquela ocasião, foram esmagados ou tiveram que bater em retirada, porque, na última hora e sem estar minimamente preparados para a ocasião, não possuíam as mínimas condições para resistir efetivamente.
Em outras condições, se a esquerda e os nacionalistas houvessem cuidado de organizar, conscientizar e mobilizar as grandes massas pelo menos desde 1958, abdicando das ilusões ou do golpismo certamente a história de 64 seria contada de outra maneira. Mesmo com muito sangue, numa luta prolongada contra a direita nacional apoiada pelo fuzileiros navais norte-americanos, talvez houvesse sido possível derrotar o golpe militar, e realizar as reformas de base que, 40 anos depois, continuam aí, na ordem do dia.
Trabalhadores, camponeses e estudantes, estamos vivendo uma segunda oportunidade, quase meio século depois de realizar as transformações econômicas e sociais que o Brasil reclama, pela oportunidade única de havermos colocado um operário na presidência da República. Agora muito mais, porque a concentração de riqueza e renda de um lado e a miséria do outro, dispararam como nunca nesses anos todos. Qual o segredo para realizarmos tais transformações? Ontem, como hoje, sem o apoio militante e organizado, sobretudo organizado e conscientizado, das grandes massas trabalhadoras da cidade e do campo, elas não acontecerão. Espero que nossos companheiros que estão no governo e fora dele, e na direção dos partidos de esquerda compreendam isso. Porque será muito duro esperar mais 40 anos para isso...
José Augusto Azeredo
Consultor Sindical
joseaugusto@astecainforma.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário