sexta-feira, 28 de julho de 2017

O funk estigmatizado e criminalizado: inconcebível num Estado Democrático de Direito


Foto: Vincent Rosenblatt 


A Constituição Federal de 1988 expressamente disciplina que não haverá restrição à manifestação de pensamento, criação, expressão e informação, sob qualquer forma, processo ou veículo (artigo 220), elencando, ainda, entre os direitos individuais, a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (artigo 5º, IV). É certo, entretanto, que nem mesmo os direitos ditos fundamentais têm caráter absoluto e, nesse contexto, leis e sugestões de lei posteriores pretenderam e pretendem atribuir significações ao estilo musical denominado funk.[1]

Em ordem cronológica, cite-se a Lei estadual nº 3.410/00, resultado da CPI do Funk, instalada no Rio de Janeiro, a qual impôs responsabilidades aos presidentes, diretores e gerentes dos locais onde são realizados eventos e bailes, prevendo, entre outras imposições, a obrigatoriedade de detectores de metal, a presença de policiais militares durante todo o evento e a permissão escrita da polícia. Esta, foi posteriormente revogada pela Lei estadual nº 5.265/08, que estabeleceu normas ainda mais restritivas.[2]

Tais limitações tinham o evidente intuito de impossibilitar e dificultar a realização dos eventos.[3]

Em 2004, a Lei estadual nº 4.264, reconheceu o estilo musical como atividade cultural de caráter popular, atribuindo a responsabilidade e organização a empresas de produção cultural, produtores culturais autônomos ou de entidades e associações da sociedade civil.[4]

Ainda, em 2009, a Lei nº 5.544, de iniciativa do Deputado Marcelo Freixo (PSOL) e Paulo Melo (PMDB), revogou a Lei nº 5.265/08, definindo o funk como movimento cultural e musical de caráter popular, proibindo-se, inclusive, qualquer tipo de discriminação e preconceito social, racial, cultural ou administrativo contra o movimento (artigos 1º e 4º) [5].

Diante da Sugestão Legislativa 17/2017, incitada pelo cidadão Marcelo Alonso, a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado acatou, em 21 de junho deste ano, requerimento de audiência pública para debate acerca da criminalização do funk, cuja relatoria foi incumbida ao Senador Romário (PSB-RJ)[6].

A descrição e os detalhes da ideia legislativa (ideia legislativa nº 65.513, Anexo ao memorando nº 43/17 – SCOM) expressam, ipsis literis:

“É fato e de conhecimento dos Brasileiros difundido inclusive por diversos veículos de comunicação de mídia e internet com conteúdos podre alertando a população o poder público do crime contra a criança, o menor adolescentes e a família. Crime de saúde pública desta ‘falsa cultura’ denominada ‘funk’.(sic)”[7]

E ainda:

“Os chamados bailes de ‘pancadões’ são somente um recrutamento organizado nas redes sociais por e para atender criminosos, estupradores e pedófilos a prática de crime contra a criança e o menor adolescentes ao uso, venda e consumo de álcool e drogas, agenciamento, orgia e exploração sexual, estupro e sexo grupal entre crianças e adolescente, pornografia, pedofilia, arruaça, sequestro, roubo e etc. (sic)[8]”.

A sugestão recebeu apoio de quase vinte e duas mil pessoas[9] e, em pesquisa de opinião no sítio do Senado, recebeu mais de 54% dos votosfavoráveis.[10]

A pretensão de criminalização do gênero musical, que possui uma alta aprovação popular, está atrelada à arte, e representações do belo, enquanto distinção social e à criminalização da pobreza, o que é reforçado negativamente pela mídia.

Pierre Bourdieu, entre seus tantos estudos, demonstrou a existência de uma correlação entre as práticas e preferências culturais, artísticas e estéticas e os níveis de instrução, volume de capital e a herança familiar. E tais predileções têm a capacidade de categorizar, discernir, unir e distanciar pessoas.[11]

Segundo o sociólogo francês, cada campo social é específico em sua socialização, definindo um comportamento, que se impõe, e que dispensa cálculo custo-benefício, o que ele denominou de habitus.[12] Sendo, ainda, relacionais as diferenças e distâncias nos espaços sociais[13], isto é, “elas existem umas em relação às outras, e não de forma absoluta”[14]; para ele:

“O gosto classifica aquele que procede à classificação: os sujeitos sociais distinguem-se pelas distinções que eles operam entre o belo e o feio, o distinto e o vulgar; por seu intermédio, exprime-se ou traduz-se a posição desses sujeitos nas classificações objetivas”.[15]

Pensando por esta perspectiva, não é difícil entender porque expressões artísticas e culturais provenientes das classes populares e por elas difundidas são frequentemente marginalizadas. Em termos de Brasil, uma das manifestações que mais vigorosamente sofre com a estigmatização é o funk.

O funk carioca, conforme leciona Facina, “…tem origem na junção de tradições musicais afrodescendentes brasileiras e estadunidenses. Não se trata, portanto, de uma importação de um ritmo estrangeiro, mas sim de uma releitura de um tipo de música ligado à diáspora africana. Desde seu início, mesmo cantado em inglês, o funk foi lido entre nós como música negra, mais próxima ao samba e aos batuques nacionais do que a um fenômeno musical alienígena”.[16]

Vinculado, sobretudo, à juventude, às favelas e periferias,[17] “o funk é um dos maiores fenômenos de massa do Brasil”[18]. E, muito além de um mero estilo musical, representa, em verdade, um movimento sociocultural, que guarda um sentido político.[19]

Num contexto em que as favelas são homogeneizadas e comumente retratadas como um ambiente do inimigo, um espaço de barbárie, regido pelo tráfico, em que os habitantes são identificados como bandidos, as letras do funk passam a representa-las como espaços heterogêneos e de habitação, enaltecendo seus aspectos positivos.[20]

O funkeiro MC Leonardo, falando sobre o menosprezo e a perseguição ao funk, apresenta a seguinte possível justificativa:

“O funk é associado ao tráfico, ao crime. Para a sociedade, favelado é igual a funkeiro, que é igual a traficante. O funk está ligado à favela, que está ligada ao preto e ao pobre”.[21]

A sugestão legislativa em questão guarda correlação com um dos fundamentos mais reiteradamente utilizados para desdenhar e condenar o movimento em pauta, que é aquele que, destilando intolerância e preconceito, afirma que “o funk é música de bandido, incita à violência, corrompe menores, aumenta o uso de drogas e utiliza mais uma série de afirmações moralistas para defender seu puro e simples banimento”[22].

A visão que grande parte da sociedade tem do funk o associa à “diluição musical, sensacionalismo, exploração sexual, até apologia às drogas e ao crime nos chamados ‘proibidões’. Não são mentiras, mas são meias verdades, pois ficam na mais rasa superfície e elegem jogar foco apenas nos estigmas de sempre. Sob a bandeira da rejeição à precariedade musical de alguns funks, esconde-se a recusa em encarar e compreender as camadas sociais que os produzem”[23].

O funk é a expressão da periferia, que lhe dá vez e voz, suas letras utilizam a linguagem do povo que nela habita, e falam sobre o seu cotidiano, sobre as dificuldades, as mazelas, a discriminação e o preconceito, desigualdades socieconômicas e possibilidade de ascensão, questões raciais, dentre tantos outros assuntos.

Um ponto importante a se elucidar quando se trata do funk é a reiterada alegação de que o ritmo propaga a cultura do estupro e o machismo; não se pretende aqui ignorar que algumas letras, de fato, o fazem. Contudo, em letras de diversos estilos musicais (samba, MPB, rock) também podemos observar essa atitude, vez que o machismo está umbilicado em todas as esferas da sociedade, soando, a condenação apenas a um deles, no mínimo, discriminatória.

Tais ocorrências podem ser pontualmente combatidas, a exemplo a ação civil pública promovida pelo Ministério Público e pela ONG Themis, em Porto Alegre, em razão da música “Um tapinha não dói”[24]. Além do que, atualmente, encontramos diversas mulheres funkeiras levantando a bandeira do feminismo, como Valesca Popozuda e Tati Quebra Barraco.

O que se quer dar ênfase, todavia, é o fato de que a criminalização desse estilo musical, num país com marcado por um racismo estrutural, verificado, inclusive, na composição da população carcerária brasileira, que conta com 622 mil pessoas presas[25], das quais 67% são negras[26] (dados de 2014), demonstra o caráter seletivo do direito penal.

Assim, a pretensão de criminalizar o movimento artístico e sociocultural, por suas origens e estigmas, nos remete a passados próximos ligados ao escravagismo e criminalização de outros gêneros musicais, como ocorreu com o jazz e o samba[27], o que é inconcebível num Estado Democrático de Direito, se é que ainda podemos assim denominar o status vigente.

Adriane Célia de Souza Porto é bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Franca, membro da Comissão de Direitos Humanos da 12ª subseção da OAB/SP, advogada.

Júlia Pupin de Castro é pós-graduanda em Direito Público pela PUC-MG, bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Franca, membro da Comissão de Direitos Humanos da 12ª subseção da OAB/SP, advogada.



[1] PALOMBINI, Carlos. Funk proibido. In: AVRITZER, Leonardo et al. (Org.). Dimensões políticas da justiça. Rio de Janeiro: Record, 2012 (no prelo). Disponível em: <http://www.proibidao.org/justica-e-cultura-funk-proibido/>. Acesso em: 4 jul. 2017. on-line.

[2] Ibid., on-line.

[3] SANCHES, Pedro Alexandre. A luta do funk contra o preconceito. Fórum, 2012. Disponível em: <http://www.revistaforum.com.br/2012/02/08/a_luta_do_funk_contra_o_preconceito/>. Acesso em: 07 jul.2017.

[4] Ibid., on-line.

[5] Ibid., on-line.

[6] CDH fará audiência para debater se o funk pode ser criminalizado. Senado notícias, 2017. Disponível em: <http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/06/21/cdh-fara-audiencia-para-debater-se-o-funk-pode-ser-criminalizado?utm_source=midias-sociais&utm_medium=midias-sociais&utm_campaign=midias-sociais>. Acesso em: 04 jul. 2017.

[7] Anexo ao memorando nº 43/17 – SCOM. Disponível em: <https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=5299757&disposition=inline>. Aceso em: 04 jul. 2017. on-line.

[8] Ibid., on-line.

[9] Ibid., on-line.


[11] ALVES, Emiliano Rivello. Pierre Bourdieu: a distinção de um legado de práticas e valores culturais. Soc. estado. Brasília, v. 23, n. 1, p. 179-184, abr. 2008. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69922008000100009&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 07 jul. 2017. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69922008000100009. p. 180.

[12] ARAÚJO, F. M. de B.; ALVES, E. M.; CRUZ, M. P. Algumas reflexões sobre os conceitos de campo e de habitus na obra de Pierre Bourdieu. Revista Perspectivas da Ciência e Tecnologia. Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 31-40, jan-jun 2009. Disponível em: <http://revistascientificas.ifrj.edu.br:8080/revista/index.php/revistapct/article/view/14/14>. Acesso em: 15 jul 2017. p. 38.

[13] ANTÓNIO, Filipe. Espaço social e a lógica de classes. Sociologando, 2008. Disponível em: <https://sociologando.wordpress.com/2008/04/13/espaco-social-e-a-logica-das-classes/>. Acesso em: 07 jul. 2017.

[14] Ibid.

[15] BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: EDUSP, 2007. p.13.

[16] FACINA, Adriana. “Não me bate doutor”: funk e criminalização da pobreza. In: V ENECULT – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, 5 ed., 27-29 maio 2009, Faculdade de Comunicação/UFBa, Salvador/BA, (Anais). Disponível em: <http://www.cult.ufba.br/enecult2009/19190.pdf>. Acesso em: 06 jul 2017. on-line.

[17] Ibid., on-line.

[18] Ibid., on-line.

[19] COUTINHO, Reginaldo Aparecido. A elevação do funk carioca a patrimônio cultural: cotidiano e embates sociais e identidade em torno da implementação da Lei 5543/2009. Antíteses, Londrina/PR, v. 8, n. 15, p. 520 – 541, jan./jun. 2015. Disponível em:http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses/article/view/20203/16597. Acesso em: 05 jul. 2017. p.521.

[20] LOPES, Adriana de Carvalho. A favela tem nome próprio: a (re)significação do local na linguagem do funk carioca. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, Belo Horizonte, v. 9, n. 2, p. 369-390, 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-63982009000200002&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 10 jul. 2017. http://dx.doi.org/10.1590/S1984-63982009000200002. p. 381-382.

[21] SANCHES, Pedro Alexandre. A luta do funk contra o preconceito. Fórum, 2012. Disponível em: <http://www.revistaforum.com.br/2012/02/08/a_luta_do_funk_contra_o_preconceito/>. Acesso em: 07 jul.2017.

[22] LOPES, Adriana Carvalho; FACINA, Adriana. Cidade do funk: expressões da diáspora negra nas favelas cariocas. In: VI ENECULT – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, 6 ed., 25-27 maio 2010, Faculdade de Comunicação/UFBa, Salvador/BA, (Anais). Disponível em: <http://www.cult.ufba.br/wordpress/24340.pdf>. Acesso em: 06 jul 2017. on-line.

[23] SANCHES, Pedro Alexandre. A luta do funk contra o preconceito. Fórum, 2012. Disponível em: <http://www.revistaforum.com.br/2012/02/08/a_luta_do_funk_contra_o_preconceito/>. Acesso em: 07 jul.2017.

[24] Disponível em: <http://themis.org.br/fazemos/advocacia-feminista/>. Acesso em: 10 jul. 2017.

[25]ALMEIDA, Rodolfo; MARIANI, Daniel. Qual o perfil da população carcerária brasileira. Nexo, 2017. Disponível em: < https://www.nexojornal.com.br/grafico/2017/01/18/Qual-o-perfil-da-popula%C3%A7%C3%A3o-carcer%C3%A1ria-brasileira>. Acesso em: 10 jul. 2017.

[26] Ibid.

[27] RAMOS, Bruno. “Tentativa de criminalizar o funk é histórica”, diz ativista cultural. 28 jun. 2017. Brasil de Fato. Entrevista concedida a Júlia Dolce.


Carta Capital

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