segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Inaê Macedo, 36 anos: A professora

Publicado em: setembro 24, 2017


A professora Inaê Macedo | Foto: Maia Rubim/Sul21


Fernanda Canofre

Por poucos dias, Inaê Macedo teria nascido dentro de uma escola. A mãe, professora do Estado, filha de uma lavadeira e um pedreiro, uma das primeiras da família a ter diploma, trabalhou até perto da data de tê-la e voltou à classe logo após seu nascimento. As fraldas de Inaê eram trocadas em cima da mesa da sala dos professores. O primeiro par de sapatinhos vermelhos ela ganhou de um ex-aluno da mãe. Crescendo dentro da escola, entre a caixa de giz e a pilha de provas que a mãe carregava para cima e para baixo, ela resolveu se tornou professora.

Inâe fez o curso de magistério na Escola Ildo Meneghetti, na Restinga, em Porto Alegre, onde leciona há 12 anos. Assumir uma sala de aula, em uma escola pública, com todos os poréns de ser professora no Rio Grande do Sul, nunca foi fácil. “Como em toda carreira, não é fácil. tu lida com vidas de famílias. hoje mesmo a avó de uma aluna veio aqui dizer que ela não estava vindo porque havia entrado água na casa, estava tudo molhado, ela não tinha roupa para vir”, conta ela. “Gera uma angústia gigantesca saber que tu quer atender, auxiliar, mas não tem por onde”.

A rotina de Inaê, geralmente, se desdobra em três turnos. Atendendo as duas filhas, de 7 e dois anos, a casa, a escola e, de madrugada, quando todo mundo já está na cama, preparando as aulas e provas do dia seguinte, para recomeçar tudo outra vez. A atual situação do estado, que já parcelou salários de servidores 21 vezes desde 2015, virou um peso extra.

“É bem desgastante psicologicamente, emocionalmente. Eu tenho duas filhas, com esse salário parcelado, é barra. As contas não vêm parceladas e continuam chegando. Eu tive que pedir empréstimo no banco, que te auxilia naquele momento, mas depois tem que pagar. E aí, tu vai fazendo outras tarefas para complementar a renda”, diz.





Em 2015, o anúncio do recém-eleito José Ivo Sartori (PMDB) de que adotaria parcelamentos de salário, virou um gatilho para ela. Problemas psicológicos e físicos por causa da profissão não são raros entre professores, mas, como acontece com todo mundo, Inaê achou que a vez dela ainda tardaria.

“Eu não sabia para onde correr, não tinha condições. Tenho muitos colegas que se afastaram por algum tempo por estarem com desgaste, que estão tomando medicação, que tiveram síndrome do pânico. Eu tive depressão profunda. Ainda estou em tratamento. (…) Eu cheguei no limite. Foi difícil. Tem colegas que se afastam e não conseguem mais voltar. Ou, quando voltam, não conseguem retornar à sala de aula. Ficam em desvio de função, porque não tem condições de ficar em sala de aula”.

Mas antes do governador, que conseguiu uma licença-médica este mês por estar “estressado”, a sobrecarga emocional vem, especialmente da rotina da profissão. A escola onde Inaê leciona foi arrombada 22 vezes até que a Secretaria Estadual de Educação (Seduc) decidiu colocar um segurança privado no local. Em um dos furtos, levaram a balança de precisão do laboratório de Química, que ela tinha acabado de comprar, com o próprio dinheiro, para ajudar os estudantes. Além disso, os próprios alunos, já não são mais os mesmos. Se antes os sonhos deles se baseavam em bombeiros, biólogos marinhos e médicos, hoje, vez ou outra ela tem de ouvir alguém dizendo “dono de boca”.

“Acho que tem muito a ver com a nossa sociedade de consumo, que se preocupa com ostentar e ter. A gente está perdendo. Eles pensam assim: professora, a senhora estudou, estudou, estudou e o que a senhora tem? Eu tenho conhecimento e eles não sabem dar valor a isso. Eles querem o tênis de marca, a roupa de marca. O caderno de papel não corresponde mais às expectativas deles”, avalia a professora. “Como eu trabalho com a questão de anos iniciais, com os pequenos, eu noto muito a questão da indisciplina. Aumentou muito. A estrutura da família influencia muito no perfil do aluno, se vai ser comprometido com a escola, estudar, como vê o professor”.

Somado à cabeça, o corpo também começou a cobrar a conta. Durante um ano inteiro, ela teve problemas nas cordas vocais, pelo tempo em que passava em sala de aula tentando se comunicar com mais de 30 crianças. Depois, veio o problema no ombro, pelo braço erguido o dia todo escrevendo no quadro negro. A mãe desenvolveu tendinite durante as décadas de profissão. Um colega circulava na sala com tipoia no braço, por recomendações médicas.

“Eu tinha colega aqui nessa escola que era professor de Química e se exonerou para ser azulzinho (guarda de trânsito). Ele já era professor há 8 anos. Mas não conseguia mais pagar as contas”. Ela mesma já pensou em trocar de profissão, mas diz que lembra dos alunos e volta atrás. “Porque eu tive professores que mudaram a minha vida. Tinha um professora, Rosângela, que me ajudou muito. Quando eu tinha que falar em público eu chorava, era muito tímida e ela me ajudou. Essa paixão [por ensinar] vem disso também”.

O contraponto das dificuldades, Inaê diz que está em toda vez que vê um dos alunos começando a ler ou fazendo algo que aprendeu na escola. Ou ao encontrar na rua, um aluno dizendo que arrumou emprego ou passou na UFRGS. Ou passar no caixa do supermercado e ouvir um ‘oi, psora’.


Foto: Maia Rubim


“Eu tenho muito orgulho de ver um aluno como caixa de supermercado, porque há duas semanas, perguntei pra outra criança, irmão de um ex-aluno meu, como ele estava. Ele esquivou na resposta. Depois, descobri que o V., que foi meu aluno, está traficando. Isso pesa. Eu fico pensando no que é que faltou? Onde que a gente não observou que tinha que acolher essa criança?”, questiona.

A filha mais velha já fala que também quer ser professora e pega os livros para brincar. Inaê diz que a entende. Assim como a mãe, a menina também está crescendo dentro da escola. Ao ouvir falar na reforma da Previdência, que projeta um futuro onde ela terá de estar dentro de sala de aula, aos 70 anos, tentando controlar uma turma de 40, a professora perde um pouco do otimismo. Mas ainda não está pronta para desistir. Ela já pensou em mudar de profissão algumas vezes, mas sempre há algo que a puxa de volta aos alunos.

“São os filhos dos trabalhadores e futuros trabalhadores. Se não der estrutura para eles nas escolas, para onde eles vão correr? É por isso que vemos aí os presídios lotados”.


Sul 21

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