A criptomoeda é um exemplo extremo de uma onda especulativa capaz de superar a da década passada, inclusive nas consequências
Jemima Kelly/Reuters/Latinstock
A alta pode durar mais um tempo. Mas o colchão que aparou a queda de 2008 deixou de existir
Em uma quinzena de especulação desvairada, a cotação da Bitcoin disparou de 6 mil dólares (em 13 de novembro) para mais de 11 mil (em 29 de novembro). A notícia é tanto mais alarmante quando se considera seu valor intrínseco, absolutamente nulo.
Um título de uma sociedade anônima embute a expectativa de receber juros ou dividendos. Uma moeda fiduciária, o compromisso de um governo de aceitá-la em pagamento de impostos e outras obrigações.
Uma barra de ouro, o valor do uso do metal em joias ou componentes eletrônicos. Mas, quando se trata de uma Bitcoin, o único respaldo à sua cotação de mercado é a esperança do portador de encontrar alguém mais otário.
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Como a maioria das chamadas criptomoedas, ela foi concebida por uma ideologia anarcocapitalista, como um sistema capaz de dispensar a fiscalização de governos para a prática do comércio por meio de uma rede descentralizada, na qual cada nó funciona como um cartório e possui uma cópia do mesmo livro-razão criptografado (chamado blockchain) com base no qual se autenticam e verificam todas as transações da rede mundial.
Se o sistema provou algo, foi que o Estado e a moeda tradicional são muito mais eficientes. O processamento depende de um método de “mineração” pelo qual um cálculo abstruso, hoje viável apenas a computadores sofisticados com alto consumo de energia, é necessário para pôr em circulação cada unidade adicional de “moeda”.
Cada transação com Bitcoin desperdiça hoje 275 quilowatts-hora – o consumo mensal de eletricidade de uma família de classe média – e seu processamento exige um tempo imprevisível, mas tipicamente mais de uma hora, enquanto uma compra com cartão de crédito gasta apenas 0,01 kWh e é confirmada em segundos. O sistema já consome mais energia do que um país de médio porte como o Marrocos ou a Irlanda e se tornou um problema ambiental nada desprezível.
Ao mesmo tempo, ter um algoritmo cego e obtuso como única autoridade para garantir, administrar e estabilizar a Bitcoin a torna extremamente volátil, praticamente inútil para sua função teórica de moeda, ou seja, meio de troca, denominador de preços e reserva de valor. Seu uso em compras e vendas normais, movido muito mais pela ideologia do que pela conveniência, é insignificante. O uso ilegal – inclusive lavagem de dinheiro, narcotráfico e financiamento do terrorismo – é, supõe-se, muito mais importante. Mas o grosso das transações é pura especulação.
O fato de um “ativo” tão estrambótico tornar-se alvo de tamanha jogatina a ponto de uma unidade valer mais do que um carro novo e seu valor total de mercado atingir 180 bilhões de dólares – superior ao de empresas como a GE, a Boeing, a Disney ou o Citigroup – é sinal de um problema ainda mais sério.
O capital especulativo está se acumulando sem encontrar aplicação na produção ou mesmo na circulação mais eficiente de mercadorias. A Bitcoin é apenas o sintoma mais extremo, assim como o foram as tulipas no século XVII (no auge, certos bulbos valiam 20 anos de salário de um operário), a Companhia dos Mares do Sul no XVIII, o Encilhamento no XIX, as empresas pontocom no fim do XX ou os derivativos sobre hipotecas subprimeem 2006 e 2007.
O índice entre os preços das ações e os lucros esperados nas bolsas estadunidenses gira historicamente em torno de 16,7. Os auges especulativos das bolsas costumam atingir 25 ou mais, após os quais costumam se seguir quedas prolongadas, às vezes abruptas.
Os roaring twenties partiram de uma base de 4,8 para um pico de 32,6 às vésperas do súbito colapso de 1929, de onde despencaram para 5,6. A era da euforia com a globalização neoliberal e a revolução da informática saiu de 6,6 no primeiro governo Ronald Reagan para o recorde ainda mais impressionante de 44,2 no ano 2000, após o qual caiu por degraus, enquanto governos procuravam ajudar o mercado financeiro com o afrouxamento de regulamentos e fiscalização até a farra acabar na crise do subprime, que derrubou o índice para 13,3.
Nos anos seguintes, voltou a subir e hoje passa de 30,9. Os ativos mais notoriamente supervalorizados incluem a indústria automobilística, o entretenimento, as finanças, os imóveis e a tecnologia.
Cinco empresas desse último setor – Facebook, Apple, Amazon, Netflix e Alphabet (ex-Google) – respondem por 31% dos ganhos do mercado nos primeiros oito meses de 2017. Um exemplo notável é a Tesla: produziu 75 mil carros em 2016, mas o valor de mercado da empresa superou em agosto os 60 bilhões de dólares, tanto quanto aquele da BMW, que fabricou 2,5 milhões no mesmo ano. Ainda que suas inovações tecnológicas em relação às montadoras tradicionais façam jus a um prêmio, é difícil justificar que uma valha 800 mil dólares por automóvel montado e outra 24 mil.
Embora a alta continuada desde 2010 seja uma das mais prolongadas da história, o movimento ascendente ainda pode continuar por mais tempo, talvez alguns anos. Mas a altitude já está acima do razoável e a capacidade dos Estados nacionais de amortecer a queda é hoje muito menor do que era na primeira década do milênio.
O resgate do sistema financeiro após a crise de 2008 os deixou endividados e seus desdobramentos na forma de desemprego e cortes de gastos sociais fez crescer partidos contrários à ordem neoliberal e fragilizou politicamente os governos ocidentais e ainda mais sua cooperação internacional.
Da próxima vez, haverá menos dinheiro e menos disposição de usá-lo – e os governantes que insistirem em fazê-lo correrão o risco de ser sucedidos por radicais de direita ou de esquerda.
Carta
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