quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

No Oriente Médio é a hora dos incendiários



por Antonio Luiz M. C. Costa — publicado 14/12/2017 00h11, última modificação 13/12/2017 12h02

Bin Salman falha em virar o jogo no Iêmen e Trump põe a estratégia saudita a perder ao reconhecer Jerusalém como capital de Israel


MUSA AL SHAER/afp

Palestinos iniciam protestos contra os EUA e Israel que ninguém sabe até onde podem chegar. E houthis comemoram a morte de Saleh, que acirra a já trágica guerra civil do Iêmen


Dezembro começou com mais um fracasso do herdeiro saudita Bin Salman ao cooptar o ex-ditador iemenita Ali Abdullah Saleh. E como se não lhe bastasse esse tropeço, o reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel por seu suposto aliado Donald Trump deu-lhe uma rasteira da qual será ainda mais difícil se erguer – e que pode mudar toda a história do Oriente Médio. Mas comecemos pelo Iêmen.

A partir de fevereiro de 2011, os protestos da Primavera Árabe abalaram a longa ditadura de Saleh, que governava o norte do Iêmen desde 1978 e a ele reuniu o Iêmen do Sul com a unificação de 1990. Um ataque com foguete ao palácio presidencial feriu-o gravemente em junho, foi operado em Riad, voltou e, graças à mediação das monarquias do Golfo, escapou ao risco de julgamento e prisão e renunciou em fevereiro de 2012 em favor de Abdrabbuh Mansur Hadi, seu vice (e representante do Sul no governo) desde 1994.

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Hadi foi confirmado como presidente em uma eleição sem oposição, mas os houthis, movimento-base nas empobrecidas comunidades xiitas do Norte, rejeitaram o modelo federativo favorável ao Sul desejado por Hadi e se rebelaram em 2014. Após alguns meses de tentativa de partilha de poder, Hadi renunciou no início de 2015 e retirou-se para Áden, sua cidade natal no Sul. Ali repudiou a renúncia e anunciou que retomava o poder, contando com o reconhecimento dos países do Golfo, do Ocidente e da ONU.

Fugiu ou foi arrastado pouco depois para Riad, onde se tornou um fantoche e virtual prisioneiro. As milícias e os restos do exército iemenita por ele teoricamente liderados estão às ordens dos sauditas, tropas dos Emirados guardam o Porto de Áden, fotos de seus emires decoram os prédios de seu suposto governo e bandeiras do antigo Iêmen do Sul substituíram as nacionais.

Essas forças combatem o governo houthi com o apoio de bombardeios e bloqueios navais sauditas e dos Emirados, armados e abastecidos pelos EUA, Reino Unido e aliados europeus, enquanto o povo iemenita enfrenta os quatro cavaleiros do Apocalipse: guerra, morte, fome e epidemias. São até agora 10 mil mortos por combates, 2 mil pelo cólera e talvez 50 mil pela fome, além de mais de 3 milhões de refugiados e mais de 3 milhões de crianças subnutridas.

Ao intervir na guerra civil em março de 2015, Bin Salman, então ministro da Defesa saudita, contava com uma vitória rápida e prestigiosa. Entretanto, a guerra arrasta-se há mais de dois anos e meio com custos crescentes para o reino e ganhos gratuitos para seu arqui-inimigo Irã, que, apesar de ser acusado de patrocinar e comandar os houthis, lhes dá pouco mais que apoio humanitário e ganha crédito e lealdades ao denunciar os crimes de guerra dos sauditas e aliados.

Existe um contrabando de armas para os houthis através de Omã, país neutro, cuja alegada origem iraniana não foi provada, mas a própria existência da rota mostra a incapacidade dos sauditas de se impor a seus vizinhos do Golfo. Quanto a Saleh, viu na rebelião dos houthis, que combatera em seus anos de poder, uma chance de voltar ao comando e instruiu as tropas a ele leais no Norte do Iêmen a facilitar a tomada da capital pelos rebeldes.

O Conselho de Segurança da ONU puniu-o com proibição de viagens e congelamento de ativos e seu filho e herdeiro Ahmed foi posto em prisão domiciliar nos Emirados, onde era embaixador, desde o início da guerra civil. Mesmo assim, em 2016, Saleh formalizou a aliança com os houthis e dividiu cargos em seu governo.


(Foto: Hani Al-Ansi/dpa/fotoarena)

Bin Salman julgou que a solução era descartar o inútil Hadi e comprar Saleh com a promessa de entregar o poder a ele e seu filho em troca de uma facada nas costas dos houthis. E Saleh acreditou poder cumprir sua parte da transação. Enganaram-se. As forças de Saleh abriram fogo contra os houthis em 29 de novembro e em 2 de dezembro o líder apareceu em seu canal na televisão iemenita para proclamar seu rompimento com a “loucura” dos houthis e sua disposição de “virar a página” com os sauditas. Entretanto, mesmo com apoio aéreo de Riad, suas forças levaram a pior. Em dois dias, os houthis controlaram a maior parte da cidade. 

Na segunda-feira 4, após ter a casa destruída em bombardeio dos houthis, Saleh tentou fugir para Marib, controlada por forças pró-sauditas. Foi morto quando seu veículo foi atingido por um disparo de bazuca (segundo a liderança houthi), ou liquidado em seguida por atiradores houthis ao tentar fugir a pé (segundo os partidários de Saleh). Deputados e quadros de médio escalão do seu partido foram presos e receia-se que sejam executados.

Das respectivas prisões domiciliares, Hadi pediu a união dos iemenitas contra os houthis e Ahmed Saleh jurou vingança: “Vou liderar a batalha até o último houthi ser expulso do Iêmen”. Entretanto, a capital é dos rebeldes e os dispersos partidários de Saleh terão dificuldades para se reagrupar sem uma liderança presente. A guerra não parece mais próxima de terminar e Bin Salman e seu aliado e equivalente nos Emirados, Bin Zayed, ficaram em maus lençóis.


(Foto: SAUL LOEB/afp)

Ambos têm de lidar, ainda, com a inconsequência de seu maior aliado: Donald Trump. Apesar das advertências em contrário dos aliados árabes, da União Europeia, do Vaticano, da China e da Rússia, o presidente dos EUA anunciou na quarta-feira 6 que reconhece Jerusalém como capital de Israel e mudará para lá sua embaixada. O suposto mediador isento da questão palestina entrega o grande prêmio a Israel antes mesmo de o jogo começar. Para ele, é “reconhecer a realidade”, mas para o resto do mundo, tratava-se de mudar essa realidade injusta. 

A decisão agrada enormemente aos israelenses e ao lobby sionista nos EUA e enfurece todos os povos muçulmanos. Para a Arábia Saudita e seus satélites, é um desastre diplomático. Sua estratégia conduzia a uma aproximação gradual de Israel até a formação de uma aliança explícita contra o Irã, mas pressupunha um acordo prévio entre Israel e Palestina. A posição oficial dos sauditas era de que a normalização das relações dependia do retorno de Israel às fronteiras de 1967, o que incluiria devolver toda Jerusalém Oriental (inclusive a cidade histórica) aos palestinos.

Na prática, sabe-se que os sauditas pressionavam Mahmoud Abbas e a Administração Palestina em Ramallah a aceitar um Estado Palestino simbólico, formado por pequenos territórios dispersos e um subúrbio de Jerusalém, em troca de uma polpuda injeção de petrodólares para comprar a boa vontade de seus partidários e a resignação de seu povo.

Ao pôr o carro à frente dos bois, a Casa Branca deixa o governo de Riad ante a escolha de repudiar tanto o aliado oficial em Washington quanto o extraoficial em Tel-Aviv ou ser apontado como traidor pelos povos árabes a quem pretendia liderar, inclusive o seu próprio. Cairo, Amã e Abu Dabi, entre outros, estão ante o mesmo dilema.

O potencial desestabilizador dessa manobra não deve ser subestimado. O crescimento explosivo do fundamentalismo islâmico começou em 1990, quando Riad autorizou o Pentágono a usar bases sauditas para atacar o Iraque de Saddam Hussein. Bin Laden acusou a Casa de Saud de aliar-se aos infiéis e conspurcar o solo sagrado da pátria de Maomé.

Para evitar a rebelião dos fundamentalistas contra a monarquia, o então rei Khalid pediu aos EUA para retirar suas bases, transferidas para Catar, Bahrein e Emirados e fechou os olhos ao financiamento da Al-Qaeda por boa parte da elite saudita. Qual será a reação dos Bin Laden de hoje à sua cumplicidade tácita com Israel, para não falar de aliança aberta, à custa da entrega de Jerusalém a um Estado que financia e corteja fundamentalistas judeus decididos a demolir as mesquitas sagradas para reconstruir o Templo de Salomão?

O regime saudita não é hoje mais sólido que no tempo da Guerra do Golfo, muito pelo contrário. O crescimento da população, combinado com a queda do preço do petróleo, obrigou o governo a restringir os serviços gratuitos de educação, saúde e energia, dos quais seus súditos se acostumaram a desfrutar. A juventude descobre o mundo exterior pela internet e está inquieta pelo desemprego e pela repressão.




Bin Salman e Bin Zayed se uniram na manobra que acabou com a morte violenta de Saleh. E agora terão de enfrentar a fúria dos árabes e demais muçulmanos contra o ato de seu aliado Trump (Foto: afp)

A elite está no mínimo dividida desde as prisões em massa ordenadas pelo príncipe Bin Salman, para não falar do assassinato no dia seguinte do príncipe Bin Muqrin ao tentar fugir do país em um helicóptero, conforme denúncia de seu irmão. O xá do Irã parecia mais firme no poder quando a revolução islâmica o depôs. A Primavera Árabe de 2011 deixou claro que os árabes também são capazes de se rebelar e, se as aflições econômicas não bastavam, Trump lhes deu um motivo mais nobre.

Enquanto isso, os dois maiores rivais dos sauditas pelo controle do Oriente Médio, o presidente turco Recep Tayyip Erdogan – que ameaçara previamente romper relações com Israel se os EUA dessem esse passo – e seu colega iraniano Hassan Rohani disputam entre si quem liderará com mais veemência a indignação do mundo muçulmano.

O Catar, apoiado por ambos em seu confronto com Bin Salman e Bin Zayed, esfrega as mãos. Uma década de esforços de articulação e propaganda dos sauditas e seus aliados fundamentalistas para sectarizar a política árabe contra o “crescente xiita” corre pelo ralo, enquanto o Hezbollah recupera a reputação heroica que teve ante os povos árabes ao resistir com sucesso ao ataque israelense de 2006 e o Hamas volta a crescer de estatura à custa da Fatah e outros grupos mais moderados. Aprendiz de feiticeiro, Bin Salman foi atropelado por um incendiário ainda mais poderoso e leviano e terá de viver com as consequências. Ou morrer por causa delas.


Carta Capital



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