Aquele parecia ser o momento perfeito para fugir da fazenda na qual trabalhava quase igual a um escravo. Talvez não tivesse consciência de que era vítima de um crime, mas se empenhou para a fuga. Seria ótimo se as linhas seguintes contassem sobre alguém que conseguiu escapar e denunciar a agressão, mas esta é, na realidade, uma história sobre morte, desespero e condenação.
Era a década de 2000 na Fazenda Inajá, em São Félix do Araguaia, e os trabalhadores colecionavam marcas no corpo e na alma das agressões sofridas e dos trabalhos desumanos a que eram submetidos. E aquele que, no ímpeto de buscar dias mais dignos, ultrapassou as fronteiras das ordens do capataz, foi morto para servir de exemplo: primeiro, alvejado por tiros e, em seguida, enforcado sob o olhar dos companheiros.
O horror daquele dia não pôde ser medido por palavras, tendo chegado em fotos, depoimentos e termos jurídicos à justiça trabalhista de Mato Grosso. Na denúncia, feita pelo Ministério Público do Trabalho, constaram relatos de torturas e agressões reiteradas a todo um grupo de trabalhadores da fazenda.
Um deles, que viveu para contar a história, narrou as consequências que sofreu ao comunicar sua decisão de ir embora da propriedade. Depois de esperar os três dias que lhe pediram para aguardar, foi levado ao aterro de uma represa e lá, sob a mira de um revólver, obrigado a se deitar no chão.
Ferido a golpes de pontapés e de correntes, foi abandonado à própria sorte, conseguindo fugir para dentro da mata e ali ficar escondido até o dia seguinte, quando foi apanhado novamente para que contasse onde teriam se escondido seus companheiros. Então, dando continuidade às sessões de flagelo, amarraram-no a um caminhão e torturaram-no com um alicate.
As feridas e escoriações em todo o corpo do trabalhador confirmaram a história, atestada também pelo laudo do exame de corpo de delito. Para o médico legista, “[…] houve ofensa à integridade corporal do periciado, as lesões foram causadas por instrumentos contundentes e a agressão foi contínua e cruel”.
Naquelas bandas, a legislação trabalhista parece nunca ter sido respeitada. As carteiras de trabalho não eram registradas, não havia anotações nos livros de registros, os trabalhadores não recebiam salários nem usufruíam dos intervalos mínimos de 11 horas entre uma e outra jornada. Eles eram submetidos a jornadas diárias exaustivas, não dispunham de equipamentos de proteção individual (EPIs), água potável, material de primeiros socorros e abrigo. Os empregados da fazenda contaram que chegavam a dormir por três dias na carroceria de um caminhão.
O juiz da Vara do Trabalho de São Félix do Araguaia chegou à conclusão de que aqueles trabalhadores foram reduzidos a condição análoga à de escravo e, em 2005, condenou o proprietário da fazenda ao pagamento de 1 milhão de reais a título de dano moral coletivo. Além disso, determinou uma extensa lista de obrigações, como o fornecimento de alojamento, instrumentos de trabalho, água potável, entre outros.
O caso foi encaminhado à Secretaria de Inspeção do Trabalho, em Brasília, para incluir o fazendeiro na Lista Suja do Ministério do Trabalho e Emprego, um cadastro público de empregadores que mantiveram trabalhadores em condições análogas à de escravo.
A história ultrapassou as fronteiras de Mato Grosso e foi publicada nos jornais e sites de maior circulação em Mato Grosso, no Mato Grosso do Sul, no Tocantins e no Pará. Um alerta para tanto outros senhores de escravos Brasil afora.
O texto acima faz parte da obra “Foi Assim… Vidas, olhares e personagens por trás dos processos trabalhistas em Mato Grosso”. O livro foi publicado em homenagem aos 25 anos do TRT de Mato Grosso. A história “Morte no Araguaia” é publicada em alusão ao Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, transcorrido nesse domingo (28).
Leia as histórias do livro já publicadas
Informar Jurídico
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