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As relações entre política, igrejas e prisões no Estado de São Paulo
O tema desta Insurgência já foi abordado aqui em ao menos outras três oportunidades. Em termos gerais, junto com as colegas Valdirene Daufemback e Camila Nunes Dias, que assinam as colunas anteriores sobre as relações entre Igrejas e prisões ou Igrejas, prisões e política, temos destacado feixes de entrelaçamentos e significados que estas relações produzem dentro e fora dos cárceres brasileiros.
O ponto de partida para voltar ao assunto agora é a aprovação, pela Assembleia Legislativa de São Paulo, do Projeto de Lei 390/2017, que “Institui no âmbito dos estabelecimentos carcerários das Comarcas do Estado de São Paulo, a possibilidade de remição de pena pela leitura”.
De autoria dos Deputados Gilmaci Santos , Milton Vieira , Sebastião Santos e Wellington Moura, todos do Partido Republicano do Brasil, ligado à Igreja Universal do Reino de Deus, o Projeto traz consigo algumas preciosidades, com destaque para o parágrafo único do Artigo 2º, que diz que “Sendo a Bíblia a obra literária escolhida, esta será dividida em 39 livros segundo o Velho Testamento e 27 livros integrantes do Novo Testamento, considerando-se assim a leitura de cada um destes livros como uma obra literária concluída”.
É de causar arrepios o uso descarado da legislação penal como instrumento de conversão religiosa, transformando um direito conquistado a partir de inúmeros movimentos ligados à promoção dos Direitos Humanos para as pessoas privadas de liberdade, em mecanismo de arregimentação de novos fiéis para as doutrinas cristãs, sobretudo se considerarmos tratar-se de pessoas expostas às vulnerabilidades próprias do ambiente prisional, em que a busca pela liberdade se transforma no maior incentivo à preservação da vida e da consciência individual. Ou seja: para as pessoas presas, encontrar mecanismos de progressão de regime e conquista da liberdade torna-se um imperativo e é nesta perspectiva que a remição de pena – pelo trabalho, pelos estudos e, mais recentemente, pela leitura – tem sido utilizada para promover estratégias de “reintegração social”.
Não questiono aqui, de forma alguma, o direito à remição: pelo contrário, considero que nas prisões paulistas, atualmente, os projetos mais transformadores, na perspectiva das pessoas presas, que são realizados, são, justamente, os projetos de incentivo à leitura. O que o PL faz, no entanto, é atribuir a um livro exclusivo da doutrina cristã um valor superior aos demais no que diz respeito à conquista da liberdade, principal aspiração de quem se encontra preso.
Além disso, a remição de pena pela leitura, embora recente, não tem início com o projeto ora aprovado. Seu percurso inclui a Recomendação Nº 44, de 26 de novembro de 2013, do Conselho Nacional de Justiça, que “dispõe sobre atividades educacionais complementares para fins de remição da pena pelo estudo e estabelece critérios para a admissão pela leitura”. Inclui ainda parecer favorável à adoção da remição de pena pela leitura, emitido pelo Superior Tribunal de Justiça, em 2015, a partir de ação movida no âmbito do Tribunal de Justiça Militar de São Paulo. Inclui, por fim, o Projeto de Lei do Senado n° 513, de 2013 – AGENDA BRASIL 2015, que alterou a Lei de Execução Penal e previu, dentre as novas disposições, o mecanismo da remição de pena pela leitura.
Dessa forma, o que a Assembleia Legislativa de São Paulo fez agora, motivada pela bancada da Igreja Universal, foi inserir a pauta religiosa no seio da legislação da execução penal paulista, contrariando, uma vez mais, o caráter laico e secular do Estado.
Mas não é só isso. O instituto da remição de pena tem sido, em todo o Brasil, instrumentalizado como mecanismo de controle penal e produção de privilégios no cotidiano da gestão prisional e o PL da Igreja Universal reforça essa característica que marca a Administração Penitenciária em todo o país. E como isso se dá? Volto ao PL 390 para esclarecer:
Artigo 4º – A participação do preso será sempre voluntária.
1º – Podem participar todos os presos da unidade que tenham as competências de leitura e escrita, necessárias para a execução das atividades e da elaboração do trabalho final, consistente em resenha da obra literária, objeto do estudo.
Artigo 5º – A seleção dos presos e a orientação das atividades serão feitas por comissão, nomeada e presidida pelo Diretor da unidade carcerária.
Artigo 6º – Formada a turma de participantes, a comissão promoverá Oficina de Leitura, na qual os cientificará da necessidade de alcançar os objetivos propostos para que haja a concessão da remição de pena.
Perceba-se que o direito instituído pela lei é, em princípio, universal, ou seja, deve ser garantido a todas as pessoas em privação de liberdade. Na sequência, porém, a universalidade do direito é subordinada à discricionariedade da gestão prisional, uma vez que sua execução fica subordinada aos critérios de seleção dos participantes pela equipe dirigente de cada estabelecimento e, ainda, à disponibilidade de vagas nas oficinas de leitura.
Ocorre, portanto um processo de ressignificação e subordinação do Direito aos nunca transparentes critérios da Segurança Penitenciária, o que, por sua vez, conta com a complacência também do Poder Judiciário. Assim, estabelece-se um consenso de que o direito à remição não é universal e essa ressignificação é justificada, nas práticas cotidianas, por lacunas legais e operacionais: a lacuna legal é dada pela necessidade de instituir a comissão responsável pela leitura e aprovação das resenhas; a lacuna operacional é dada pela necessidade de que a equipe dirigente dos estabelecimentos organize e remeta as resenhas e listas com contagem da remição para aprovação pela Vara de Execução Criminal.
Assim, o consenso envolve o Judiciário – preocupado com as formas de controle dos beneficiários -, os órgãos da Administração Penitenciária – preocupados com a forma de operacionalizar o direito – e a burocracia penitenciarista– que, em última instância, regula, no cotidiano, a forma de acesso ao direito, tornando necessário selecionar os beneficiários para:
1) que não ocorram fraudes nos mecanismos de controle, ou seja, criando estratégias, ou melhor, técnicas de governamento, que atendam às expectativas/exigências do Judiciário, além de não gerar novo excesso de demandas aos Cartórios e Varas de Execução com um número elevado de processos de pedido para concessão do benefício;
2) que não ocorram atividades, no interior dos estabelecimentos prisionais, que coloquem “em risco” a segurança das unidades, o que implica em permitir o deslocamento de um mínimo de pessoas entre os ambientes prisionais e a entrada de um mínimo de pessoas e objetos externos, sejam facilitadores de leitura, sejam os livros necessários;
3) que haja, no convívio entre as pessoas presas, um fluxo de seleção prévia dos participantes das atividades de leitura, processo este que é de baixa governança pela gestão prisional e que tem por finalidade assegurar que as pessoas selecionadas não causarão problemas à Administração Penitenciária.
A presença do Estado, portanto, opera a ressignificação da lei. E se dá em consonância com suas ausências: ausência de capacidade operacional do próprio Judiciário para processar razoavelmente uma quantidade elevada de pedidos de benefícios, ausência de recursos materiais e humanos para ofertar, segundo o caráter universal da lei, as atividades pertinentes ao benefício da remição.
Por fim, a relação perversa entre política, Igreja e prisão encontra seu ponto mais sarcástico no próprio PL recém-aprovado, que prevê, dentre seus artigos, que “participará da Oficina de Leitura, sempre que possível, o escritor, que tenha indicado a obra para leitura, ou que seja o autor do livro, objeto de estudo”.
Agora sim, podemos esperar: Jesus Cristo está voltando.
Felipe Athayde Lins de Melo é Doutorando e mestre em Sociologia pela UFSCar. É membro do Laboratório de Gestão de Políticas Penais
Carta Capital
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