terça-feira, 19 de junho de 2018

Cinco mil km na Transiberiana e a viagem no tempo à Rússia de Putin

por Flávio Ricardo Vassoler* 
publicado 16/06/2018 00h20, última modificação 15/06/2018 13h28 




Uma guia turística no Expresso Transiberiano, um pregador nas ruas de Moscou e a revisão histórica no país do século XXI 

Ainda não havia rumores sobre a construção de um centro empresarial a dois quilômetros do Kremlin, com arranha-céus que destoam radicalmente da área histórica da capital 

Em agosto de 2017, ministrei um curso de história e literatura russa a bordo do Grande Expresso Transiberiano. O trem partiu de Ulan-Bator, capital da Mongólia, entrou em território russo pela cidade de Ulan-Ude, capital da República da Buriátia, singrou a imensidão da Sibéria por mais de 5 mil quilômetros, cruzou a fronteira eurasiana na cidade de Ekaterimburgo e, ao fim e ao cabo, chegou em Moscou. Nestas duas últimas cidades – 24 horas distantes uma da outra a bordo do trem –, vivenciei os fragmentos narrativos relatados a seguir. 

Ninguém governa sem culpa?

Com gestos vivazes, a guia turística Natália Radtchenko me explica que a Catedral do Sangue Derramado, no coração de Ekaterimburgo, foi erigida, após o fim da União Soviética, “sobre as ruínas da casa do comerciante Ipatiev, onde, em julho de 1918, os algozes bolcheviques fuzilaram o czar Nicolau II e sua família. Assim, a Igreja Ortodoxa Russa batizou essa catedral com o sangue inocente dos Romanov. Ademais, Nicolau II e seu filho Alexei foram canonizados após o fim do ateísmo soviético”. 

– Natália, posso lhe fazer umas perguntas? 

– Pois não. 

– Com o atraso e a fome que devastavam a Rússia antes da Revolução de 1917, será que os Romanov eram tão inocentes quanto reza a hagiografia histórica pós-soviética? 

(Natália faz um Pelo-Sinal da Santa Cruz, à maneira ortodoxa, para iniciar o meu processo de excomunhão.) 

– De fato, Natália, o fuzilamento dos Romanov foi uma ação bastante questionável capitaneada por Lenin. Mas, ora, quando é que transformações históricas radicais não ceifaram vidas humanas? A república moderna não foi disseminada com a guilhotina dos franceses? A abolição da escravatura não se viu profundamente municiada pela guerra civil nos Estados Unidos? 

Ora, ainda que discordemos visceralmente de Lenin, é preciso dizer que há pressupostos históricos para sua medida draconiana: se as tropas monarquistas resgatassem os Romanov em meio à guerra civil que as contrapunha aos bolcheviques, os czaristas teriam uma bandeira e tanto para impulsionar a reação à Revolução de Outubro, não? É por isso, Natália, que o revolucionário francês Saint-Just sentenciou que “ninguém governa sem culpa”. 

(Natália beija um ícone com a imagem do Cristo Ortodoxo junto à lapela de sua blusa, para prosseguir com meu processo de excomunhão.) 

– Uma última pergunta, Natália: será que, a exemplo do que ocorreu com São Nicolau II, a Igreja Ortodoxa Russa canonizará Vladimir Putin, quando o novo czar deixar o trono da Presidência após a morte? 

(Natália me fulmina com os mesmos olhos que fuzilaram os Romanov.) 

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Bode expiatório

Morei em Moscou entre 2008 e 2009, para fazer um curso de língua russa na RUDN, a Universidade Russa da Amizade dos Povos, e para realizar parte de minha pesquisa de mestrado sobre a obra de Fiodor Dostoievski. De volta à cidade, Moscou me parece bem mais capitalista. 

Há oito anos se discutia a remoção da múmia de Lenin do mausoléu na Praça Vermelha, mas ainda não havia rumores sobre a construção de um centro empresarial a meros 2 quilômetros do Kremlin, com arranha-céus que destoam radicalmente do estilo dos prédios aristocráticos na área histórica da capital. (Será possível imaginar Moscou como uma sucursal eslava de Chicago?) Há oito anos não havia estátuas equestres dos czares Alexandre III e São Nicolau II cerrando fileiras com os bustos de Karl Marx e Lenin. 

E eis que, nas imediações do agourento prédio da KGB, ao lado de um busto de São Alexei Romanov, filho de Nicolau II, vejo uma roda ao redor de um velho de barba bíblica. Os fiéis parecem hipnotizados pela pregação eslavófila a clamar pela “Grande Rússia comandada por Putin! Sim, agora voltamos a ter orgulho da nossa pátria! E em verdade lhes digo que a União Soviética só caiu porque seus líderes não eram russos autênticos: Lenin era judeu, Kruchev, ucraniano, e que dizer do georgiano Stalin?” 

Entorpecido pela pregação eslavófila, não consigo deixar de levantar a mão para pedir a palavra. Contrariado, o velho me olha com desconfiança e apruma o ouvido com a mão direita em concha. 

– Senhor pregador, o que o senhor disse sobre os líderes soviéticos forasteiros (e potencialmente traidores) me deixou pasmo e me lembrou de algo... Uma vez, em Berlim, eu ouvi um bêbado nazista latir que Hitler só não conseguira exterminar todos os judeus porque ele próprio era... judeu. 

(O velho pregador me fulmina com olhos de inquisidor.) 

– E mais: há pouco, eu ouvi algo de um mendigo, senhor pregador, algo que me fez pensar sobre a sua Grande Rússia... A algumas quadras daqui o pobre diabo gritava que, na época da União Soviética, todos tinham dinheiro, mas não havia nada nas lojas. Agora há de tudo nas lojas, mas ninguém tem dinheiro... 

(O velho e os fiéis me fulminam com olhos de quem, enfim, encontrou um bode expiatório.) 

*Flávio Ricardo Vassoler é doutor em Letras pela USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). Traçará um retrato da Rússia moderna durante a Copa do Mundo 

Carta Capital




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