sexta-feira, 5 de julho de 2019

Desenhando a 'Vaza Jato': qualquer semelhança é mera coincidência

Créditos da foto: (Jennifer Glass/Divulgação)

A arte de Oswald de Andrade e José Celso Martinez Corrêa e um hipotético julgamento de causa trabalhista desvelam o significado dos fatos envolvendo os recentes vazamentos de diálogos entre o ex-juiz Sérgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol

(...) você sabe, há um momento em que a burguesia abandona a sua velha máscara liberal. Declara-se cansada de carregar nos ombros os ideais de justiça da humanidade, as conquistas da civilização e outras besteiras. Organiza-se como classe. Policialmente. (Abelardo, O Rei da Vela, 1933)

Escrita por Oswald de Andrade em 1933, montada e dirigida por José Celso Martinez Corrêa em dois momentos distintos da história brasileira, a peça O Rei da Vela traz duríssima crítica às nossas elites por meio de seus personagens. Um deles, Abelardo I, o agiota, ao enfatizar que somos “parte de um todo ameaçado, o mundo capitalista”, reconhece que há um momento em que a burguesia, “cansada de carregar nos ombros os ideais de justiça da humanidade”, abandona sua velha máscara liberal e se organiza como classe. Policialmente. Mas por que teria lembrado desse episódio? Mera coincidência?

O texto que segue não é acadêmico. O que pretende é “desenhar” o significado dos fatos envolvendo os recentes vazamentos, pela The Intercept Brasil, de alguns diálogos estabelecidos entre o ex-juiz da causa, responsável pelos processos da Lava Jato em Curitiba até 2018, hoje ministro Sérgio Moro, e o procurador Deltan Dallagnol, membro do Ministério Público, cuja incumbência é denunciar, acusar, enfim, buscar trazer aos autos do processo provas robustas, evidências dos delitos que compõem o libelo, para que aquele juiz, que se presume seja isento, as analise e, a partir delas, julgue.

Assim, analogicamente, por meio de suposto caso concreto (os exemplos podem ser outros), trato de mostrar a gravidade do conteúdo desses vazamentos, repudiando a tentativa da construção da ideia de que essas conversas, verdadeiras estratégias definidas passo a passo entre o juiz julgador e o acusador, e muitas concretizadas nos autos, são “normais”, “naturais”, corriqueiras, não sendo, por isso, reprováveis.

Aliás, essa busca de naturalização é inaceitável, mesmo porque tamanha trama evidenciada não é nada normal, ao contrário. Essencialmente política, ela macula os processos em que tais fatos tenham ocorrido. Para que minha indignação seja compreendida em sua profundidade, parto de um suposto caso concreto. Pensemos no cenário de uma reclamatória trabalhista. Algo para mim bastante familiar. Afinal, fui juíza do trabalho por cerca de trinta anos e me aposentei na condição de desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, RS.

A partir desse cenário e o ressignificando (na suposição a ação é trabalhista e não penal), temos a seguinte situação: um trabalhador, supostamente lesado em seus direitos, foi despedido sem pagamento das parcelas decorrentes da despedida, as chamadas “parcelas rescisórias”. A alegação foi de falta grave. Não houve pagamento do adicional incidente sobre o FGTS (vulgarmente chamado de indenização ou “multa”). Não foram entregues as guias para levantamento do Fundo e, tampouco, foi dado o aviso prévio. O décimo terceiro salário e as férias proporcionais não foram pagas. Como a despedida ocorreu depois de novembro de 2017, na vigência da chamada “reforma trabalhista”, sequer houve assistência do sindicato à rescisão do contrato. O trabalhador, negando a justa causa e sentindo-se lesado, procurou o advogado do sindicato que ajuizou a ação.

Pois bem, ocorre que o juiz julgador, alguns dias antes da audiência, recebeu em seu gabinete um dos sócios da empresa, acompanhado do empregado que atuaria como preposto na audiência designada e do advogado. Nessa reunião, conversaram sobre o processo e o juiz, que presidiria a audiência, combinou com a empresa e seu advogado, isto é, com quem despediu o trabalhador, as estratégias da defesa. Opinou, sugeriu, discutiu quais as melhores provas, quais testemunhas que seriam ouvidas, quais as perguntas que seriam feitas ao preposto e às testemunhas. A audiência se desenrolou tal como combinado previamente. Provas requeridas pelo autor foram indeferidas. E a sentença proferida, depois de ouvidas as testemunhas sugeridas naquela reunião prévia, foi de improcedência, sendo negados os direitos buscados na ação. A convicção do juiz foi externada: a falta foi grave.

Porém, algo não combinado aconteceu. Os diálogos entre juiz-julgador e sócio da empresa, acompanhados pelo preposto e pelo advogado patronal, foram gravados. Não se sabe por quem. Posteriormente, indignado ou, mesmo, sentindo-se culpado, encaminhou o material ao Ministério Público do Trabalho, ao advogado do reclamante, à Corregedoria Regional e ao CNJ.

A pergunta que se faz é: quais as consequências para o processo? Seria ele válido e regular? O que pensaria Abelardo, o agiota? Talvez respondesse calmamente: as realidades não se conectam e as gravações são ilegais. Ou, atento às indagações e com a sabedoria dos que conhecem os desejos da ordem pecuniária, diria com seu olhar maroto: qualquer semelhança é mera coincidência.

Magda Barros Biavaschi é desembargadora aposentada do TRT4, pós-doutora em Economia do Trabalho pelo IE/UNICAMP e pesquisadora no CESIT/IE/UNICAMP

*Publicado originalmente no Brasil Debate

Carta Maior

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