A Constituição brasileira, nossa magna carta, foi violentamente desrespeitada na prisão do ex-presidente
Quando um dia se puder caracterizar a época em que vivemos, o espanto maior será que se viveu tudo sem antes nem depois, substituindo a causalidade pela simultaneidade, a história pela notícia, a memória pelo silêncio, o futuro pelo passado, o problema pela solução. Assim, as atrocidades puderam ser atribuídas às vítimas, os agressores foram condecorados por sua coragem na luta contra as agressões, os ladrões foram juízes, os grandes decisores políticos puderam ter uma qualidade moral minúscula quando comparada com a enormidade das consequências de suas decisões. Foi uma época de excessos vividos como carências; a velocidade foi sempre menor do que deveria ser; a destruição foi sempre justificada pela urgência em construir. A opinião pública passou a ser igual à privada de quem tinha poder para publicita-la. O insulto tornou-se o meio mais eficaz de um ignorante ser intelectualmente igual a um sábio. Mudaram os nomes às coisas para as coisas se esquecerem do que eram. Assim, a desigualdade passou a chamar-se mérito; miséria, austeridade; hipocrisia, direitos humanos; guerra civil descontrolada, intervenção humanitária; guerra civil mitigada, democracia. A própria guerra passou a chamar-se paz para poder ser infinita
Boaventura de Sousa Santos (“A difícil democracia – reinventar as esquerdas”; Editora Boitempo)
Um grito foi tirado do nosso peito: aquele juiz que todos sabíamos ladrão, de ladrão foi chamado. As mentiras dele não sobreviverão à História, lembrou o jovem e brilhante deputado do PSOL do Rio de Janeiro, Glauber Braga, de cuja amizade me orgulho.
Conheci Glauber em sua primeira legislatura, quando ele tinha apenas 27 anos. Um dos mais jovens deputados do Congresso.
FOTO: MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL
Estávamos em Genebra para a Terceira Plataforma sobre Redução do Risco de Desastres das Nações Unidas. Havia vários outros deputados, mas o único que comparecia a todos os eventos – do início ao fim do dia – era ele.
Brilhante, colhia, inquiria e refletia sobre o que aprendíamos com as experiências internacionais.
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Posteriormente, utilizou-as na elaboração do projeto de lei sobre a prevenção e a redução do risco de desastres no Brasil, o primeiro e único aprovado no país – marco essencial para a defesa civil nacional.
Recentemente, já estando eu aposentado, fui convidado por meu amigo Juliano Fiori para participação em evento comemorativo aos 100 anos da ONG inglesa “Save the Children”, juntamente com os professores Henrique Paiva e Camila Braga.
Aproveitei a ida a Londres para visitar aquela que fora a maior livraria do mundo, a Foyles, com seis milhões de volumes. Ali, adquiri O advogado secreto – histórias da lei e da violação dela.
Por oportuno, cito trechos do livro, na minha tosca tradução: “…eu honestamente acredito que a justiça criminal – nas vertentes dela de acusação e defesa das alegações criminais – seja essencial para uma sociedade pacífica e democrática. É quando as pessoas percebem que a justiça lhes é negada que se sentem mais indignadas e cheias de raiva; é nos vãos da injustiça que sentimentos antidemocráticos, subversivos, podem enraizar-se.
Por isso, eu considero o que faço todos os dias não apenas um privilégio, mas uma responsabilidade cívica. E é pelas mesmas razões que o atual estado da nossa justiça criminal deveria terrificar-nos.
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Porque, a despeito dos nobres princípios em que se baseia o sistema, apesar de seu prestígio internacional, sua elaboração intelectual, o sangue, suor e lágrimas despendidos em sua construção, meus poucos anos de exposição à crua realidade ensinaram-me que a justiça criminal está próxima do ponto de ruptura.”
Convém recordar que essas observações são alusivas à justiça inglesa, em que práticas de parcialidade levariam à nulidade do processo e à condenação dos operadores.
À propósito, cito novamente: “O papel do juiz na Corte Real mantém-se estritamente legal; o juiz conduz o júri para a observância da lei; o júri aplica a lei conforme haja fatos delituosos. Em caso de veredito culpado, o juiz sentenciará, mas apenas isso, pois o poder judicante é do coletivo do júri. O juiz não poderá expressar qualquer opinião sobre os fatos de mérito de um caso, mesmo que algo aberto e óbvio.”
Não foi isso o que vimos em Curitiba e as comunicações publicadas pelo The Intercept apenas reforçaram a certeza da gravíssima ilegalidade do que ali ocorreu.
Sobre a imparcialidade do sistema inglês, vale citar: “…a independência do júri com relação ao estado. A assinatura da Magna Carta em Runnymede em 15 de junho de 1215 é frequentemente citada como o marco fundamental dessa autonomia.
… Entre os sessenta e três capítulos inicialmente contidos, os números trinta e nove e quarenta são os dois mais usualmente citados: “Nenhum homem livre será tomado ou emprisionado, ou despido de seus direitos ou posses, ou tratado à margem da lei ou exilado. Nem procederemos com força contra ele, exceto por julgamento totalmente legal de seus pares ou pela lei local. A ninguém venderemos, a ninguém negaremos ou adiaremos direito ou justiça”.
Todo o contrário disso aconteceu no julgamento do presidente Lula em Curitiba, em que a Constituição brasileira, nossa magna carta, foi violentamente desrespeitada.
Já o autor inglês identifica: “…a Magna Carta…sincero reconhecimento real dos direitos das pessoas, plantou as sementes do governo democrático, da aplicação da lei e da liberdade de expressão.”
E aduz, conta a má utilização da lei com fins de política partidária, como aqui aconteceu: “…em uma batalha com o estado a inclusão de um ator independente, não estatal, é necessária para salvaguardar contra a opressão…E assim tem ocorrido em juízos criminais. Não importa a força persecutória, se o júri perceber que algo não está correto – se a acusação parecer opressiva ou injustificada, ou os jurados não compartilharem a aparente crença do juiz na boa fé das testemunhas de acusação, ninguém pode impedi-los de inocentar o acusado.”
Uma lição atualíssima para nós brasileiros: não seria a farsa contra o presidente Lula uma oportunidade – ainda que dramática e trágica – para repensarmos a verticalidade excessiva de todo o sistema de garantias constitucionais em nosso país?”
Este texto não reflete necessariamente a opinião de CartaCapital.
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