Créditos da foto: Um carro distribui propaganda do Partido Popular Alemão em Berlim em 1924, durante a República de Weimar (Bridgeman Images) |
A história nunca se repete seguindo o mesmo roteiro. Será que nossa situação atual se parece em algo à daqueles turbulentos anos 1930 na Alemanha?
Por Fernando Vallespín
Weimar é uma pequena cidade do Estado alemão da Turíngia, muito próxima de outras com óbvias ressonâncias marxistas, como Erfurt, Gota e a hegeliana Jena. No final do século XVIII, quando mal tinha 6.000 habitantes, foi habitada pelos dois grandes escritores alemães, Goethe e Schiller. Lá também passou grande parte de sua vida o músico Franz Liszt. E, como se tivesse um ímã para atrair gênios, foi nesse mesmo lugar que F. Nietzsche morreu, em 1900, e que nasceu o movimento arquitetônico da escola Bauhaus.
Com o tempo, Weimar deixou de ser associada exclusivamente a uma população alemã de afortunado passado artístico e cultural e acabou se tornando uma grande metáfora, o epítome do fracasso da democracia liberal parlamentar. Não em vão, o que nasceu como produto de um impulso otimista de regeneração nacional e democrática acabou nas trevas do nazismo. Por isso, quando hoje em dia falamos da “síndrome de Weimar”, estamos nos referindo às tensões que ameaçam pôr em perigo a estabilidade da democracia liberal − tensões provocadas principalmente pela revitalização do populismo e pela guinada iliberal, quando não autoritária, que verificamos em alguns lugares da Europa.
A grande pergunta é se hoje estamos, de fato, diante de algo que tem uma semelhança inquestionável com esse período entreguerras ou se estamos imaginando coisas. A história nunca se repete seguindo o mesmo roteiro, mas também não precisa cair no fascismo ou no nazismo convencional para que ocorra aquilo que Juan Linz estudou sob a epígrafe de “quebra das democracias”. De fato, há toda uma linha de pesquisa que parece gostar de contemplar o abismo. Livros com títulos do tipo Como as Democracias Morrem (Steven Levitsky e Daniel Ziblatt), Na Contramão da Liberdade (Timothy Snyder), Como a Democracia Chega ao Fim(David Runciman) e muitos outros que nos alertam para o perigo do neopopulismo participam dessa síndrome. Que tem inclusive uma dimensão popular, como percebemos ao ver o sucesso de vendas de As Origens do Totalitarismo, de Hannah Arendt, depois da vitória de Trump. Não é de surpreender que a principal assunto desse livro seja como se pôde cair no nazismo. O temor é compreensível, mas o que não está tão claro é por que sempre temos de voltar os olhos para Weimar, como se esse fosse o inevitável ponto de referência.
Cem anos de Constituição
Na quarta-feira se completa um século desde a aprovação da nova Constituição da República de Weimar. Ela tem esse nome porque foi redigida e aprovada lá, em seu desde então imortal Teatro Nacional, diante do qual há uma bela estátua de Goethe e Schiller entrelaçados. Foi a primeira Constituição democrática da ainda jovem Alemanha, e esse hábito, o de dar nomes de cidades às repúblicas, permanece desde então no país. Depois da guerra se começou a falar da República de Bonn e, após a reunificação, da República de Berlim. Com a Constituição de 1919, o Reich alemão ganhava a forma de república e se organizava como uma democracia parlamentar moderna. Não adiantou muito. As contradições do período colocaram o país em uma espiral de crise econômica, social e política que acabou como já sabemos.
Além da fascinação mórbida por um final tão trágico, o que torna tão atraente esse período é o enorme contraste entre aquelas crises e o extraordinário florescimento das artes, da literatura e do pensamento, uma verdadeira era de ouro germânica que se estendeu à vizinha Áustria. A ela pertencem escritores como Hermann Hesse, Thomas Mann, Alfred Döblin, Bertolt Brecht e Kurt Tucholsky, testemunhas privilegiadas da época. Mas também pintores (Paul Klee e George Grosz, por exemplo), arquitetos (não só os da Bauhaus) e cineastas (Fritz Lang, o autor de Metrópolis, e J. Von Sternberg, cujo filme O Anjo Azul eternizou Marlene Dietrich). No pensamento, como não lembrar de Heidegger, Husserl, Jaspers, Benjamin. Ou do austríaco Wittgenstein.
Que uma sociedade aparentemente tão doente que acabou nas garras do nazismo produza tanta inteligência, tanta variedade de vanguardas e tantas inovações vitais é um dos grandes mistérios do período. Por isso, a razão de seu fracasso como democracia tem sido buscada em problemas psicossociais (a humilhação do sentimento nacional pelo tratado de Versalhes e as indenizações de guerra), econômicos (a hiperinflação e a posterior crise do final dos anos 1920) e sociais (a incapacidade do Estado de fornecer a cobertura social adequada aos mais necessitados).
Abordaremos daqui a pouco as causas mais propriamente políticas. Por enquanto, vamos nos deter na economia, porque o caso de Weimar foi levantado novamente por ocasião da crise de 2008. O próprio Paul Krugman escreveu um interessante artigo no The New York Times nessa mesma época dizendo temer a repetição de Weimar na Grécia. Com isso ele se somava às muitas vozes que geralmente estabelecem uma relação linear entre crise econômica e colapso democrático. De fato, uma interpretação padrão para explicar a ascensão do nazismo parte dessas mesmas premissas. A hiperinflação, primeiro, e a posterior deflação teriam afundado as classes médias, que foram retirando seu apoio à república e se integrando pouco a pouco ao partido nazista. Observe que a mobilidade descendente desse setor social é uma das explicações às quais recorremos para explicar o aumento atual do populismo. Mas isso não chega a convencer, porque a intensidade da deterioração econômica − enorme em Weimar − é importante. Ou porque alguns países onde o populismo se tornou forte − a Polônia, por exemplo − raramente se saíram melhor economicamente.
Não há democracia sem liberalismo, nem sem proteção social
Não, nem Weimar nem o populismo podem ser totalmente explicados sem recorrer a fatores políticos. Ainda mais no caso da malfadada república, porque ela logo se tornaria um extraordinário laboratório no qual atuavam três visões distintas de qual deveria ser o caminho para a modernização. A marxista, mais ou menos inspirada no modelo soviético; a liberal parlamentar difundida pelo “momento wilsoniano” de 1918 e pelo exemplo das ordens políticas dos países mais avançados; e a nacional-autoritária, favorecida em princípio pelo establishment guilhermino, que se transformaria em seguida na visão fascista/nazista do povo como uma massa homogênea que se dilui na vontade do Führer. As instituições de Weimar correspondiam ao segundo modelo, mas amplos setores de sua classe política, assim como da população, não acreditavam realmente em seus pressupostos. Recordemos que, assim que nasceu, o Governo de Weimar teve de enfrentar autênticos processos revolucionários marxistas, como a Revolta Espartaquista em Berlim e a eliminação da República dos Conselhos de Baviera, de inspiração soviética. E havia também a dificuldade de integrar a velha classe dominante guilhermina, que nunca acreditou realmente na democracia e depois confiaria ingenuamente no nazismo como um instrumento controlável para alcançar seus objetivos.
Não se pode dizer o mesmo de nossas democracias. Nelas, sua legitimidade é inquestionável, inclusive pelo populismo, embora este considere que se deveria favorecer a dimensão plebiscitária-participativa em vez dos mecanismos “liberais” de controle do poder ou diluir o pluralismo atrás de um conceito de povo que abrangesse tudo. O objetivo dos populistas é praticar uma política de identidade que pressione na direção da homogeneização nacional e transformar a polarização política em sua principal característica. Mas, atualmente, eles não recorrem à violência nem se baseiam em movimentos de massa ideologizados semelhantes aos da Europa no entreguerras.
O problema de Weimar, e isto sim se assemelha aos dias atuais, é que pouco a pouco começou a se diluir a confiança dos diferentes Governos na capacidade de alcançar um mínimo de governabilidade capaz de resolver os problemas socioeconômicos. Além do tamanho dos problemas de fundo que iam se acumulando, as desajeitadas interferências presidenciais de Hindenburg, a extrema fragmentação do sistema de partidos e as contínuas mobilizações de massa de diferentes tendências provocaram uma desestabilização permanente que afetou a própria legitimidade da democracia. E, como alguns dos principais teóricos da época advertiram, isso obrigava a combater o multiforme iliberalismo com a reivindicação dos valores republicanos como base normativa imprescindível. Uma democracia sem aspirações de justiça social, como apontou Hermann Heller, acabaria quebrando, e essa evidência serviu depois de inspiração para o “pacto social-democrático” do pós-guerra. Aliás, o termo “democracia iliberal”, hoje tão em voga, foi utilizado pela primeira vez neste contexto por Wilhelm Röpke no início dos anos 1930.
A Constituição de Bonn aprenderia depois com todas essas deficiências de construção institucional e apostaria naquilo que Löwenstein qualificou de “democracia militante”. Mas também tiraria da experiência de Weimar sua obsessão pelos déficits orçamentários e pela demonização da inflação.O que nos diferencia de Weimar, sem dúvida, é que soubemos aprender com o desastre. Esperemos que seu exemplo tão invocado contribua para exorcizá-lo completamente.
*Publicado originalmente no El País
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