sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Bacurau é aqui e quem nasce em Bacurau é… a gente


Temos um filme completamente necessário neste momento de censura velada

A cena inicial do espaço sideral sugere que está começando mais um clássico da ficção cientifica. Mas a intenção não era falar sobre ETs ou a grandiosidade da terra, e sim de uma pequena cidade do sertão, prestes a sumir do mapa, chamada Bacurau.   

O filme, que leva o nome da cidade, já pode ser considerado uma obra-prima brasileira. Talvez a mais comentada e aguardada dos últimos tempos. O longa de Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho acabou de estrear e surpreende (entra tantas cosias) pois parece prever um futuro, que tem se tornado cada vez mais presente.
Completamente necessário neste momento de censura velada (ou nem tanto), na qual expressões culturais e artísticas vêm sendo podadas com frequência, o filme, que começou a ser escrito no início desta década, ao contar a história da tal cidade fictícia, conta a nossa história atual.
Ele faz isso de forma sutil (às vezes também nem tanto) e inventiva, do jeito que o cinema tem que ser – e que há tempos eu não via. É entretenimento, diversão, critica. Faz rir, chorar e pensar. Com uma contextualização imagética absurda (por horas perturbadora) e trilha emocionante, a poética do filme está em toda parte (assim como a ironia e o sarcasmo).
Sem medo de (ser) misturar vários gêneros – como suspense, ficção, terror e faroeste – imprime um gênero único. Apesar de comentarem sobre referências a Mad MaxStar Wars e até comparações a seriados como Black Mirror e Years and Years, além de trabalhos de outros diretores (cheguei a ler: “Obra-prima nacional no melhor estilo Tarantino”), eu acho que o que acontece nas telas só poderia ter sido feito no Brasil. Com a nossa cultura, criatividade e habilidade para misturas.
Começa difícil, lento, meio que sem história (eu pensei: meu deus, um Roma brasileiro), mas depois entendi que a intenção era provocar um desconforto capaz de transmitir as peculiaridades de se viver ali. Conforme vai evoluindo e novas camadas vão se apresentando, eu comecei a entender a relação do filme com política, sustentabilidade, o sistema capitalista selvagem patriarcal que vivemos, o Brasil (e o mundo) além do sertão.


FOTO: DIVULGAÇÃO

A pequena comunidade local vive de forma bem unida. Talvez como uma reação por ser esquecida por seus governantes. O prefeito, rejeitado por todos, faz a linha que só aparece quando precisa de votos, e no mais contribui para o sucateamento da educação e desmonte do sistema de saúde. Tem uma conduta ética reprovável, como mostram algumas passagens (desde a doação de comida fora da validade até a relação agressiva com uma profissional do sexo e o envolvimento com o “crime”). Infeliz coincidência com nossa vida real atual.
As críticas e alfinetadas à nossa condição de “colonizados” estão em várias partes. No estrangeiro que entra no museu e coloca um objeto na sacola (e me fez pensar no tanto que eles levaram de nós). No diálogo preconceituoso de um gringa que chama uma mulher branca de negra – uma generalização por ela ter nascido no Brasil. E todas as vezes que o branco aparece em posição de superior (opressor).
E acima de tudo no banho de sangue que promovem na cidade, que eu relacionei imediatamente ao sangue que corre nas veias dos processos produtivos que muitos de nós conhecemos. Nas vítimas do sistema capitalismo que mantemos. Nas mortes que acontecem ao longo de todo processo, de forma intencional, porém, sem a necessidade de atirar.  
Eu senti a violência apresentada como uma alegoria ao dilaceramento e aniquilação de corpos que são rejeitados e apagados a todo momento, de forma já natural para muitos. E também na forma que estupramos a natureza e extraímos seus recursos. O brutal impacto disso tudo já é percebido na seca e na falta de água na cidade (como já temos hoje em vários lugares do Brasil).
O filme me mostra o quão tudo a nossa volta é um reflexo do que somos. Em uma das cenas, uma mulher pergunta: “- Quem nasce em Bacurau é o que?” “- É gente”. Eu diria, “é a gente”. E o filme traz todos nós, com as dores e delicias do ser. Dá voz e visibilidade ao nosso povo – o nordestino, o negro, a mulher, a puta, o trans. Os personagens são incríveis. Ambíguos e divertidos.




Ali ninguém é somente mocinho ou bandido. Todo mundo pode ser salvador e vilão. A médica que cura as pessoas é alcoólatra. O justiceiro caçado pelas autoridades é amado pelo povo. Como nós, os personagens são raivosos e melancólicos. Doces e fortes. Bem humorados e sofridos. O filme me mostra o quanto somos luzes e sombras. Todos somos nós, com nossas incoerências e polaridades.
Apesar de tanto horror, somos o povo que tem orgulho do “museu da cidade”. No duelo final, “os brancos” acabam se matando. A diversidade vence o corporativismo e o capitalismo miliciano. E isso despertou um otimismo em mim. Sobre a eficácia da colaboração apesar das diferenças. Da união de todos contra o “inimigo” comum. Do sucesso da organização como forma de sobrevivência.
Ninguém sai impune de Bacurau. A catarse é geral. No final do filme, uns choram comovidos com nosso cenário político. Outros pelas vítimas que fazemos diariamente (e nunca tinham se dado conta). Tem gente que aplaude de pé. Muitos se mostraram orgulhosos por quem somos. Tem gente que gargalha. Gente que não entende nada. Mas sente que precisa “procurar saber”. Isso é cinema. Isso é o Brasil.


Este texto não reflete necessariamente a opinião de CartaCapital.

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