Funcionários temem a privatização completa e quem se insurge publicamente contra as mudanças fica sujeito a processos administrativos
Nos quatro cantos do Brasil, qualquer pai ou mãe que tente hoje completar a carteira de vacinação de um bebê pelo Sistema Único de Saúde voltará para casa frustrado. Postos de saúde amargam, há pelo menos três meses, a falta da vacina pentavalente, que garante a proteção contra doenças comuns – e fatais – como difteria, tétano, coqueluche, infecções de garganta e hepatite B. O abastecimento falha desde julho, quando o governo suspendeu a compra de produtos de um laboratório indiano, depois que lotes foram reprovados nos testes de qualidade. São necessárias três doses da imunização até os 2 anos de idade. Seriam necessários 6,6 milhões de porções para repor a vacina, mas não há disponibilidade imediata no mundo. Tampouco previsão de quando os estoques voltarão ao normal.
A importação da pentavalente é financiada pelo fundo rotativo da Organização Pan-Americana da Saúde. Mas houve tentativas de produzi-la no Brasil. Há dois anos e meio, o Ministério da Saúde anunciou um repasse ao Instituto Butantan de 54 milhões de reais para a produção de biológicos, entre eles a pentavalente. Nenhuma dose foi produzida até aqui – o Butantan afirma que o convênio foi assinado, mas não houve a transferência da verba. Ao longo dos anos, a cartela de vacinas do instituto público paulista diminuiu paulatinamente. Não quer dizer, porém, que o Butantan tenha ficado menor. Ao contrário, segue em franca expansão. Em setembro, a cúpula do instituto foi à China assinar uma carta de intenções para desenvolver outro tipo de pentavalente, para o rotavírus, em parceria com uma empresa asiática, a BravoVax, e outra americana chamada ExxellBio. A intenção é abastecer esses mercados, bastante afetados pela doença. Ao contrário daquela que rareia no estoque do SUS, essa vacina para o rotavírus não é oferecida pela rede pública. E nas clínicas privadas custa 250 reais a dose.
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A pesquisa aplicada que fez a fama da instituição centenária, disseram vários funcionários a CartaCapital sob anonimato, tem sido direcionada às novas demandas institucionais da entidade: a parceria com empresas privadas e a venda de produtos. O complexo que abriga a sede do instituto, na Zona Oeste de São Paulo, passa por reformas grandiosas. No início do ano, o Butantan pediu empréstimo de 1,8 bilhão de reais ao BNDES para investir em um moderno centro de produção, capaz de colocá-lo entre os grandes fabricantes do mundo. Caso se concretize, será erguido por lá um prédio de 52 metros de altura e sete linhas de produção de diferentes vacinas.
Há cerca de dez anos, o Butantan deixou de produzir as vacinas BCG (dada a recém-nascidos) e a ImunoBCG, destinada a pacientes com câncer de bexiga. O monopólio da produção foi repassado à Fundação Ataulpho de Paiva, organização social carioca. Como no caso da pentavalente, a compra foi suspensa pela má qualidade do produto. Houve episódios similares de falta do remédio. Hoje, a caixa com duas ampolas da ImunoBCG custa 650 reais.
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De lá para cá, a vacina contra a gripe tornou-se o carro-chefe da produção do Butantan. Além de abastecer o Ministério da Saúde, o instituto espera oferecer outros 60 milhões de doses para o Hemisfério Norte no ano que vem. Outra parceria importante foi firmada com a americana Merck, nos EUA, para o desenvolvimento da vacina da dengue e pode render mais de 100 milhões de dólares ao instituto.
“O Butantan joga com o medo das epidemias e consegue os recursos. Quando aquele surto some, ninguém cobra o que foi feito com o dinheiro”, diz um pesquisador veterano do instituto que preferiu não se identificar. A falta de transparência resultou na saída do diretor Jorge Kalil, por conta de gastos exorbitantes com o cartão corporativo. Kalil foi afastado em 2017, quando veio à tona uma auditoria feita dois anos antes pelo Tribunal de Contas da União. A investigação identificou, além dos gastos inexplicáveis, a construção de um laboratório de hemoderivados nunca inaugurado e salários duplicados – 50 funcionários recebiam tanto pelo Instituto Butantan quanto pela fundação homônima, segundo o relatório. Kalil foi substituído pelo atual diretor-presidente, Dimas Tadeu Covas. Hoje, a fundação controla um orçamento anual de 1,8 bilhão de reais por ano. Os salários dos empregados não concursados pagos pela fundação continuam, no entanto, fora do alcance da fiscalização.
Confusão entre público e privado
As funções do Hospital Vital Brasil, referência no atendimento às vítimas de animais peçonhentos, estavam em vias de ser transferidas ao Hospital Emílio Ribas. O processo emperrou em meio à grave crise que essa segunda entidade enfrenta. O Butantan também quer de volta o terreno onde funciona o Centro de Saúde Escola Samuel Barnsley Pessoa, referência no atendimento aos moradores do bairro. Agora, os funcionários temem que o instituto caminhe para a privatização completa. Quem se insurge publicamente contra as mudanças, dizem, tem sido objeto de processos administrativos. Recentemente, uma médica da instituição foi alvo de um processo disciplinar depois de comentar o caso do Vital Brasil nas redes sociais.
Nem todos veem com bons olhos a mistura entre público e privado na saúde. É o caso do pesquisador Isaías Raw, à frente do Instituto e da Fundação Butantan por quase duas décadas, que em 2011 veio a público contra a compra da divisão bioindustrial do instituto por uma farmacêutica americana. Ele resumiu essa visão no ano passado, em uma longa entrevista à Folha de S.Paulo. “Quando você faz um produto em que o único comprador é o governo, você não pode fazer uma parceria com uma empresa privada, pois esta, ao pôr o dinheiro, quer tirar o lucro. Se você tem uma fundação sem fins lucrativos, não pode ter um sócio cujo objetivo seja ganhar dinheiro.”
O maior produtor de vacinas do Brasil sonha em se tornar um dos grandes da big pharma mundial. Os pesquisadores e funcionários pedem, porém, que não seja esquecida a missão centenária do instituto: pesquisar, desenvolver, fabricar e fornecer produtos e serviços para a saúde da população.
Repórter de CartaCapital
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