terça-feira, 15 de outubro de 2019

Bem-vindas as rebeliões



Um fantasma percorre a América do Sul… não, não se trata do comunismo, mas sim da reação popular aos canalhas que se instalaram no poder para consolidar um sistema econômico e político concebido em Washington. Até mesmo o chileno Sebastián Piñera – que preside o país que foi berço desse modelo, e é o único desses mandatários na lista das maiores fortunas da Forbes – reconhece que os problemas do neoliberalismo estão encubando rebeliões em diversos lugares.


Por Juan Pablo Cárdenas

Vários países do nosso continente estão em plena efervescência social. Os protestos nas ruas do Equador, da Argentina, do Peru, do Brasil e de outras nações têm em comum o repúdio às políticas econômicas neoliberais, à corrupção dos dirigentes políticos e dos conhecidos abusos empresariais.

Depois de várias décadas vivendo o mais selvagem processo de restauração do capitalismo, o balanço das consequências feito pelas organizações sociais mostra um cenário desolador, com uma alta concentração da riqueza, o aprofundamento da inequidade social e, consequentemente, a consolidação de problemas como o narcotráfico e a delinquência comum. O grande detonador destas convulsões são o crescimento da pobreza, os processos migratórios e a sem-vergonhice dos governos e dos parlamentos, que supostamente representam os cidadãos.

Ademais, também devemos considerar a perda das nossas soberanias nacionais, a apropriação por parte dos investidores estrangeiros das jazidas de minerais, dos recursos energéticos, dos bosques, das fontes aquíferas, além da administração dos principais recursos financeiros e da forma na qual as mais poderosas empresas manejam as decisões políticas, subornando os nossos governantes, respaldados pelos abusivos tratados de livre comércio, que são consentidos por nossos próprios governos, e pelos nossos grandes meios de comunicação – também controlados pelo poder econômico.

O Chile não escapa desse mal-estar generalizado, embora isso esteja mais nítido e de forma mais radical em alguns países vizinhos. O fracasso do sistema previdenciário de capitalização individual, o colapso da educação pública administrada por privados, os abusos das grandes empresas, dos laboratórios farmacêuticos e o enorme encarecimento dos bens e serviços fundamentais estão levando às ruas centenas de milhares de chilenas e chilenos, desde estudantes até aposentados, passando pelos ativistas do meio ambiente e organizações meio-ambientais preocupadas pela forma como nossa energia continua dependente do carvão, e sobre como nosso meio ambiente vai sendo depredado em nome da usura, e graças à impunidade judicial dos que poluem. E paradoxalmente, o presidente que permite essa depredação da natureza, e que despreza a regulação fiscal dos negócios, recebe um questionável prêmio internacional.

Não há dúvida de que as principais caras e sobrenomes do grande empresariado latino-americano, se estivessem em países que levam a sério os temas ambientais, teriam condenação perpétua pelos milhões de hectares de bosques nativos que destruíram em favor de plantações mais lucrativas; ou pelos dejetos tóxicos que deixam em suas minas, seja no Deserto do Atacama ou na Floresta Amazônica, e sem se preocupar com a proximidade de povoados e cidades que existem perto desses depósitos de rejeitos – locais que já convivem com problemas como a falta de água para a agricultura ou a propagação irreversível de doenças perigosas. Situações que vêm sendo denunciadas insistentemente, sem que os governos façam algo para frear estas novas e nefastas intromissões colonialistas.

Através destas ações criminosas e ecocidas, as empresas conseguem lucro suficiente também para financiar seus próprios políticos, candidatos ou partidos inteiros que recebem suculentas propinas. Essa falta de probidade é transversal, atinge a direita, o centro e a esquerda, todos sujeitos a esses abjetos propósitos.

O que diferencia o Chile de outras nações irmãs é que, neste país, o movimento social continua traumatizado pelo que sofreu na ditadura pinochetista. Ainda está fresca a memória do que foi a repressão militar, sem contar o efeito da propaganda dos governos que sucederam o do tirano, que visava inibir a ação de descontentamento, devido à possibilidade de as Forças Armadas saírem novamente dos quarteis, ameaçando derrubar a ordem estabelecida. Uma campanha de terror que foi muito efetiva para conter a raiva social, mas que, cedo ou tarde, promete romper as barreiras do medo.

Embora devamos considerar, também no caso chileno, o estado de languidez dos nossos referentes sindicais, a desativação programada, por parte do Estado, do conjunto de organizações que surgiram para combater o regime militar, e a falta de sintonia com as demandas populares que foi tomando conta dos partidos políticos, convencidos pela teoria do “fim das ideologias” e mais preocupados em parecer algo do que em fazer coisas. Um pragmatismo que substituiu a consistência moral dos servidores públicos.

Contrário aos temores que ainda se expressam em nossa sociedade, a mobilização dos chilenos deve levar em conta o que outros países têm mostrado em termos de protestos. No Peru, ex-presidentes corruptos foram julgados e presos. Na Argentina está havendo uma drástica mudança na preferência política dos eleitores. No Brasil, a imprensa democrática tem mostrado como alguns juízes e promotores pressionaram empresários brasileiros a reconhecer suas propinas e outras falcatruas. Finalmente, no Equador, em questão de dias, o povo foi capaz de colocar em xeque o seu governo pelo atrevido aumento no preço dos combustíveis, em um país que tem enormes reservas de petróleo.

No Chile, entretanto, o mal-estar se expressa através dos meios de comunicação éticos, e por aqueles que só agora se convencem de que não podem seguir manipulando eternamente a consciência da cidadania, mentindo e ocultando os fatos. Mas devemos lamentar essa espécie de conformismo que ainda se constata nas próprias vítimas dos abusos econômicos, do encarecimento dos preços do transporte público, dos medicamentos e diante da renúncia flagrante do governo em impulsar reformas que melhorem salários e aposentadorias, ou de reduzir a jornada de trabalho e avançar com projetos que levem a uma institucionalidade mais democrática, com obstáculos à perpetuação dos políticos no governo ou no Congresso Nacional, e onde o Legislativo se tornou somente um trabalho – desejado por muitos, já que é um dos melhor remunerados do país, e até os deputados mais promissores da esquerda estão sujeitos a terem suas consciências afetadas pelas mudanças em seu poder aquisitivo.

Como sempre, o caminho para superar as injustiças deve ser o da mobilização do povo. Ou seja, exercendo dissidência, resistência popular, com aquele poderoso e legítimo recurso da desobediência civil, para impedir os abusos. Num país em que governistas e opositores já não mostram diferenças substantivas, não basta com as marchas programadas e outras liturgias sociais, que costumam ser infiltradas, pelos oportunistas de sempre, que depois terminam sendo defensores do voto nos mesmos de sempre nas eleições.

Um caminho é resistência popular e espontânea contra a violência institucionalizada, consagrada por uma Constituição ilegítima em sua origem (imposta pela ditadura) e em seu conteúdo. Resistência ativa também em ações de boicote a empresas, indústrias e bancos que promovem a delinquência de terno e gravata. Claro que o ímpeto juvenil e estudantil para acompanhar os trabalhadores, que são discriminados e abusados pelos poderosos, também é de vital importância. Que seja bem vindo aqui este espírito, que já está se propagando pelo resto do continente.

*Publicado originalmente em other-news.info | Tradução de Victor Farinelli

Carta Maior

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