sábado, 2 de novembro de 2019

Na briga de chineses X americanos, o perdedor é o operário

(Divulgação)

"Os turnos são de 12 a 14 horas de trabalho – muitas vezes incluídos aí os dias de sábados -, a falta de procedimentos de segurança física no manejo das máquinas é permanente. Os acidentes de trabalho são frequentes. E, se na GM os operários recebiam 29 dólares por hora de trabalho, agora, na Fuyao passam a ganhar um salário achatado de 12 U$"



Na Fuyao Glass America, a fábrica chinesa de vidros para automóveis, em Ohio, a luta foi como lucrar à maneira local ou ao modo do grande investidor oriental

O filme é ambíguo, transparece boas intenções dos autores - embora de raiz capitalista -, mas não escamoteia o ponto de vista do embate entre operários chineses e americanos trabalhando juntos no chão de uma fábrica que faliu em Ohio, em 2008, fechada pela General Motors, e reaberta há cinco anos pelos novos donos, os chineses da Fuyao, montadora de vidros automotivos. O tema é curioso, serve como reflexão sobre a ferocidade das atuais relações de trabalho – ou sempre foi assim? – e, sobretudo, das ações frouxas dos sindicatos, agora, nesse universo também dominado (como nos outros mundos) pela Era das Consultorias.

Por isto, vale a visita a Indústria Americana (American Factory), esse filme do casal documentarista Julia Reichert e Steve Bognar, aclamado no Festival de Sundance deste ano. Foi comprado pela Netflix que por sua vez se uniu, comercialmente, à empresa Higher Ground Productions, de Barack e Michelle Obama, para a sua exibição e para a produção de outros trabalhos cinematográficos.

Vencedor do prêmio de direção em Sundance como Melhor Documentário produzido nos Estados Unidos, o filme de Reichert e Bognar apresenta a rotina inicial da Fuyao, na periferia da cidade de Dayton, localizada no nordeste do país. Próxima de onde os dois cineastas vivem, ela fica no chamado Cinturão da Ferrugem.

Operários vindos da China (em geral para ocupar cargos de monitores e supervisores na linha de produção) passam a trabalhar lado a lado com experientes ex-empregados americanos da GM, que voltaram a ser contratados, dessa vez pelos orientais. O confronto entre as duas culturas e as duas ideologias extremas (?) mergulha a narrativa dos cineastas no investimento de um bilhão de dólares do fundador da Fuyao Glass America, Cho Tak Wong, que pareceu ser desastroso num primeiro momento. Mas desde o ano passado a fábrica começou a dar os gordos lucros planejados.

No primeiro momento da narrativa, num discurso para seus novos funcionários, em uma das suas primeiras viagens mensais aos EUA, Wong relembra o óbvio: ‘’ Quando se está em Roma faça como os romanos, ’’ se referindo à necessidade de adaptação de seus compatriotas aos costumes e, em particular, aos hábitos de trabalho dos americanos. Demagogia.

A curiosidade de uns pelos outros, dos chineses pelo famoso way of life americano, e dos americanos pela promessa que os primeiros personificam como preciosas oportunidades econômicas para a região, logo no início do empreendimento une a todos. Ao menos nas tardes de churrasco e de pescaria de carpas.

Mas na linha de produção os problemas aparecem além dos mal entendidos resultantes do desconhecimento dos dois idiomas falados no ambiente. Os intérpretes não dão conta de todos os diálogos travados.

É no relato desses estranhamentos que o filme é mais esperto, mais agudo, mais divertido – e mais objetivo.

Os turnos são de 12 a 14 horas de trabalho – muitas vezes incluídos aí os dias de sábados -, a falta de procedimentos de segurança física no manejo das máquinas é permanente. Os acidentes de trabalho são frequentes. E, se na GM os operários recebiam 29 dólares por hora de trabalho, agora, na Fuyao passam a ganhar um salário achatado de 12 U$.

O que fazer? Para os americanos, aceitar as novas condições para não retornar ao inferno do desemprego. Torcer – e trabalhar duro - para a fábrica dar certo. Para os muitos chineses que deixaram as famílias para trás, convocados que foram para dar vida a mais um sucesso econômico do seu país, a rotina patriótica passa a ser voltar à China e visitar parentes uma ou no máximo duas vezes ao ano e a expectativa de atingir, em Dayton, os mesmos níveis de produção de vidro das unidades da Fuyao na China.

Para ambos, meia hora apenas ao dia para engolir sanduíches ou bolinhos de arroz.

Chineses encaram americanos acostumados a trabalhar oito horas por dia com fins de semana livres, como “preguiçosos”. ‘’Conversam demais no trabalho, ’’ eles reclamam.

O cenário perturbador de tentativas de integração de histórias pessoais e de culturas tão díspares é ainda mais desestabilizado quando entra em cena a perspectiva de implantação de um núcleo do sindicato United Auto Workers dentro da Fuyao.

Os executivos da empresa reagem. Contratam uma consultoria para convencer os operários das desvantagens de se organizarem – dentre elas o pagamento de imposto sindical, que pesará no orçamento dos que festejam, durante uma assembleia (vê-se isto no documentário) o aumento de um dólar a mais no salário mensal. Impedir a sindicalização é um esforço tanto dos executivos americanos como dos colegas chineses.

No final da luta das duas faces do capital versus capital mostrada em Indústria Americana, o espectador acompanha as divagações líricas do patrão Cho Tak Wong, enquanto ele acende incensos a Confúcio e perambula pelos terraços de seu palácio, na China. ”Pensando bem, ’’ diz ele, ‘’ eu prefiro a China pobre da minha juventude”.

Deve ter esquecido os sete milhões de chineses que morreram de fome antes da Grande Marcha de Mao e deve festejar a Era da Automação que bate à porta. Ela é o fecho final do documentário.


Carta Maior

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