Suas canções foram a trilha sonora do seu país nos anos 70, e agora o músico e compositor de 'El derecho de vivir em paz' é relembrado no Chile de Sebastián Piñera e volta a ser a trilha musical do documentário 'Massacre no estádio'
Não há
indicação cinematográfica mais adequada, esta semana, do que recomendar
assistir (ou rever) o filme da Série Documental, da Netflix, intitulado
Massacre no estádio, de 64 minutos. Há 46 anos o emblemático compositor e
cantor chileno Victor Jara era assassinado no Estádio Nacional de Santiago. No
último fim de semana, mais uma imagem emocionante de homenagem a ele foi
divulgada*, com a jovem soprano Ayleen Jovita Romero rompendo, de modo
pungente, o silêncio do toque de recolher imposto pelo presidente Sebastián
Piñera, e emocionando os vizinhos que a acompanharam, espontaneamente, cantando
e tocando em seus instrumentos El derecho de vivir en paz, uma das mais belas e
conhecidas canções de Jara.
Confluindo
para a poderosa presença daquele que é um dos ícones artísticos e políticos
mais fortes do continente, símbolo da luta contra as ditaduras sul-americanas e
trilha sonora do seu país nos anos 70 – lembrado como amálgama de Martin Luther
King com Bob Dylan -, registre-se que o estádio de sinistra lembrança da
ditadura Pinochet, no ano passado, recebeu um novo nome que procura
reabilitá-lo; hoje ele se chama Estádio Victor Jara.
‘’É um
dos maiores assassinatos do século 20 não solucionados. É muito importante
sabermos os detalhes do que aconteceu. Jara lutou contra a injustiça e pagou o
preço mais alto ”, relembrou Bono Vox , o líder do U2, durante show em
Santiago, há dois anos.
Junto com
cerca de cinco a seis mil homens e mulheres sequestrados e levados à força
pelas forças armadas chilenas para o estádio do horror, Jara foi torturado
durante quatro dias, e espancado e metralhado com mais de 90 balas por oficiais
do exército de Pinochet antes de morrer. Suas mãos foram praticamente
decepadas, mas ainda assim ele conseguiu rabiscar uns poucos versos de sua
última composição numa pequena agenda de um companheiro de martírio que estava
ao seu lado – este episódio é registrado no filme pelo homem.
La
Cancion inacabada foi o titulo que sua viúva, Joan, deu à pequena letra da
música do marido, um talentoso rapaz de origem rural muito pobre, de sorriso
cativante, aura magnética, amado pelos chilenos e amigo próximo de Salvador
Allende.
Jara foi
preso logo após o bombardeio ao palácio de La Moneda, dentro da Universidade de
Santiago. Trabalhava na Faculdade de Comunicação, mesmo local onde conhecera a
mulher, de origem britânica. Duas horas antes do ataque ao Moneda saiu de casa
para a universidade e não retornou nunca mais.
Joan
Alyson Turner - seu nome de batismo, antes de adotar o sobrenome Jara - é o
pilar do minucioso doc e muito bem produzido, de autoria do jovem Bent-Jorgen
Perllmutt. Hoje, ela está com 92 anos. Dedicou toda sua vida à memória do
compositor e a descobrir, com o auxílio de grupos que trabalham com Direitos
Humanos, nos Estados Unidos e na Europa, quem o matou.
“Uma
canção de Victor Jara era mais perigosa do que 100 metralhadoras. Era um
artista que tinha uma ligação espiritual bastante particular com o povo”,
atesta um dos depoentes do emocionante documentário, outro que foi prisioneiro
no estádio.
“Basta de
músicas que não dizem nada. Que nos divertem por um momento e nos deixam
vazios. Começamos a criar um novo tipo de canção”, discursava o compositor nos
seus shows para camponeses e para a classe média.
E
enfatizava: ‘’ É importante a aliança dos estudantes com os trabalhadores. ’’ A
sua composição Oração para um trabalhador é uma das mais emblemáticas na sua
obra.
O
documentário se dá em três instantes. Na abertura, um clip de filme antigo de
Jara tocando uma de suas músicas, Te recuerdo Amanda - Eu lembro de você,
Amanda.
O
primeiro tempo traz filmes históricos do Chile de Allende e registros de Nixon
e Harry Kissinger (hoje ambos reencarnados em Trump e Mike Pompeo) conspirando
para derrubar de qualquer modo o primeiro presidente socialista do continente
eleito pelo voto. Jara surge jovem, cheio de vigor, alegre e expansivo,
cantando, e na sua vida cotidiana com a mulher e a família.
Na
segunda parte, o horror revisitado não apenas com documentos em imagens
históricas, mas também com depoimentos de homens e mulheres que estiveram
presos no Estádio Nacional, e com advogados e ex-recrutas do exército, na
época, e hoje idosos, todos negando sua participação nos crimes cometidos.
E, por
fim, a luta de Joan Jara e de seus advogados, nos EUA, para denunciarem o
principal suspeito do assassinato do artista, o ex-oficial do exército Pedro
Barrientos, que quando da redemocratização do Chile tratou de se refugiar em
Daytona Beach, na Flórida, adquiriu nacionalidade norte-americana – é claro - e
lá vive até hoje, livre e solto. Não retorna ao Chile onde o espera um processo
e a prisão.
O
documentário inclui entrevistas com advogados da família Jara e depoimentos de
vários dos que foram detidos com ele no Estádio Nacional. Eles narram os
últimos dias de vida do cantor e os dias que se seguiram à sua morte.
Barrientos
fala sobre o crime e nega firmemente sua participação nele. É visto fazendo um
teste de detector de mentiras enquanto narra sua experiência.
Todos os
personagens, entrevistas e a trilha musical, composta pelo pianista Camilo
Salinas, do grupo de música folclórica Inti Illimani, remetem à história
militar do Chile dos anos 70.
Mas é
impossível, revistando o documentário, dissociar os acontecimentos da época com
os fatos da revolta que se desenrola hoje no país. Uma das letras de Jara
lembradas no filme, ‘’... Vamos nos libertar da miséria...’’, continua mais que
atual.
Em uma
das últimas imagens, já bem idosa, Joan arremata: ‘’O Chile foi uma tragédia
coletiva. Mas nunca alguém chegou a pedir perdão pelo que fez. ’’
Como
lembrete, retornando à mesma luta que agora ganha novo rosto nas ruas chilenas:
o Estádio Victor Jara acolherá, no próximo dia 23, os dois times de futebol
mais estimados da América do Sul. O argentino River Plate e o brasileiro
Flamengo. Nesse cenário de lembranças tão poderosas, eles vão disputar a final
do campeonato batizado de Copa Libertadores da América.
*Vídeo no
youtube:
Assista ao trailer:
Carta Maior
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