domingo, 8 de dezembro de 2019

O ódio ao outro


Palimpsesto do discurso O ódio ao índio proferido em 18 de novembro de 2019 por Álvaro Garcia Linera, vice-presidente da Bolívia no exílio



Como uma espessa névoa noturna, o ódio se espalha pelos bairros das tradicionais classes altas e médias urbanas do Brasil. Seus olhos transbordam de raiva. Eles não gritam, cospem; eles não reivindicam, eles impõem. Suas canções não são de esperança ou fraternidade, são de desprezo e discriminação contra o vulnerabilizados e os progressistas. Com seus carros de luxo, se reúnem em seus clubes e nas universidades particulares e caçam aqueles que ousaram tirar seu poder. No campo, eles se organizam hordas motorizadas 4×4 com capangas para caçar os líderes do MST. Nas ruas, agridem LBGTs, espancam, ameaçam e ordenam que saiam de seu território. Em Ipanema, na Avenida Paulista e em Brasília, organizam manifestações para reafirmar a supremacia racial. A mulher é sua vítima favorita, de maneira recorrente, agridem uma deputada federal defensora dos Direitos Humanos

Em São Paulo, eles suspeitam de suas empregadas e não falam quando elas trazem a comida para a mesa; no fundo temem-nas, mas também as desprezam. Depois, saem às ruas para gritar, insultam Lula e todos aqueles que ousaram construir a democracia intercultural com igualdade. Quando são muitos, portam a bandeira nacional com raiva visceral e ameaçam aqueles que gostariam de extinguir da face da terra.

O ódio racial e o desprezo aos pobres é a linguagem política dessas classes tradicionais. De nada servem seus títulos acadêmicos, viagens e fé porque no final tudo se dilui diante da malignidade atávica. No fundo, a estirpe imaginada é mais forte e parece aderir à linguagem espontânea da pele que odeia, aos gestos viscerais e à sua moral corrompida.

Tudo explodiu em 2014, quando Dilma venceu as eleições com pequena diferença de pontos. Foi o sinal que as forças regressivas aguardavam, desde o corrupto candidato da oposição liberal, às forças políticas ultraconservadoras e a inefável classe média tradicional. Dilma venceu novamente, mas por pouca diferença, estava mais fraca – era hora de passar por cima dela. O perdedor não reconheceu sua derrota e o Congresso tinha maioria conservadora.

Os militares começaram a sitiar as instituições, tutelando o STF, a grande mídia fomentava o ódio, os fundamentalistas religiosos idem. A senha justiceira atacava políticos, forças policiais acuavam reitores. Uma dilatada noite de facas longas foi desencadeada e o fascismo ampliava sua sombra mortal.

As forças policiais não se esforçavam para conter os filhos da classe média, mas tinham a capacidade para reprimir qualquer manifestação progressista. As forças armadas e o judiciário não hesitaram em encarcerar o Presidente Lula para impedi-lo de concorrer e quebrando assim, a ordem constitucional. Eles fizeram o possível para tentar anulá-lo mantendo-o preso por 580 dias e ameaçando prendê-lo novamente a qualquer momento.

Para fragilizar os trabalhadores uma reforma das leis trabalhistas e o aumento do desemprego. Para reprimir e ameaçar a oposição bastou liberar o ódio racial e de classe.

A pergunta que todos devemos responder é: como importantes segmentos classe média tradicional foram capazes de incubar tanto ódio e ressentimento contra o povo, levando-a a abraçar um fascismo racializado, centrado no negro e no pobre como inimigo? Como fez para irradiar suas frustrações de classe para a polícia e Forças Armadas e ser a base social dessa fascistização, dessa regressão estatal e degeneração moral?

Foi o rechaço à igualdade, o rechaço aos próprios fundamentos da democracia substantiva.

Nos 14 anos de governo da coalizão progressistas as principais medidas tiveram como característica a tentativa de equalização social, a redução abrupta da pobreza extrema, extensão de direitos para todos (acesso universal à saúde, educação e proteção social), política de cotas na universidade, nova narrativa nacional em torno da soberania econômica, redução das desigualdades econômicas, valorização do salário mínimo e acesso aos serviços públicos. O consumo cresceu, ampliou-se o mercado e as possibilidades de emprego e renda permitindo a muitas pessoas ter sua casa própria e melhorar sua atividade profissional. Mas o processo de democratização dos bens sociais mediante a construção da igualdade material levou a uma rápida desvalorização dos capitais econômicos, educacionais e políticos possuídos pelas classes médias tradicionais. Se antes um sobrenome notável ou o monopólio dos saberes ou o conjunto dos vínculos parentais típicos da classe média tradicional lhes permitia acessar posições na administração pública, obter créditos, licitações de obras ou ingresso nas universidades públicas, hoje o número de pessoas que luta pela mesma posição ou oportunidade reduziu as chances de acessar esses bens.

É, portanto, um colapso do que era característico da sociedade tradicional, da cor e das posições de classe como capital, ou seja, do fundamento imaginado da superioridade histórica da classe média branca sobre as classes subalternas, porque no Brasil a classe social é apenas compreensível e visível sob a forma de hierarquias socioeconômicas. O fato de os filhos desta classe média terem sido a força de choque da mobilização reacionária é o grito violento de uma nova geração que vê como a herança do sobrenome e da pele desaparece diante da força da democratização dos bens. Embora exibam bandeiras da democracia entendidas como voto, na verdade se rebelaram contra a democracia entendida como equalização e distribuição da riqueza. Por isso o transbordamento de ódio, a abundância de violência, porque a supremacia racial e de classe é algo que não se racionaliza; se vive como impulso primário do corpo, como uma tatuagem primitiva na pele. Portanto, a possibilidade fascista não é apenas a expressão de uma revolução fracassada, mas, paradoxalmente, também nas sociedades pós-coloniais, o sucesso de uma democratização material alcançada.

Isso explica porque 70% dos presos são pretos e pobres, e porque 60.000 vidas são extintas a cada ano para proteger e garantir privilégios.

O ódio, porém, só pode destruir; não é um horizonte, não é mais que uma primitiva vingança de uma classe histórica e moralmente decadente, que demonstra que por detrás de cada liberal medíocre se agarra um golpista consumado.


Antonio David Cattani é Professor Titular de Sociologia


Carta Capital

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