domingo, 3 de maio de 2020

A nova classe trabalhadora


''O que a pandemia e seus efeitos devastadores revelam a respeito de nossa realidade social,'' escreveu Slavo Zizek sobre o insólito Primeiro de Maio vivido pelo mundo


Por Redação Carta Maior                                                                                        03/05/2020 13:07

Com a pandemia do coronavírus o mundo já mudou. Só não percebe quem não quer. Uma das pontas da radical mudança é o reconhecimento urgente da nova realidade que repercute diretamente na vida cotidiana, social, econômica e política. É tempo de aceitar que a classe trabalhadora organizada, emblema do ''chão de fábrica'' de antes, os operários do mundo industrial, essa envelheceu, encolheu e seus descendentes são os trabalhadores da Gig Economy, a expressão inglesa que aponta para a Economia de Serviços. Economia uberizada praticada por aplicativos, não regulamentada, porém regulada por algoritmos. A uberização, como a ela se referem os brasileiros.

Restou o trabalho (muito mais trabalho) sem rede de proteção previdenciária e um deserto de empregos como se conhecia até aqui: poucos empregos.

Não é gratuito que dois documentários recentes produzidos no Brasil tenham esmiuçado essa nova Economia. Vidas Entregues, curta-metragem de 20 minutos escrito e dirigido por Renato Prata Biar e produzido pela Escola de Cinema Darcy Ribeiro é um deles. O filme é centrado na dura rotina dos entregadores de comida de aplicativos - iFood, Rappi, Uber - que trabalham de bicicleta por sua própria conta e risco. Uma resposta ao discurso hipócrita e falsamente otimista dos economistas neoliberais que elegeram rapazes e moças sem emprego fixo e decente, que muitas vezes precisam parar de estudar, como indivíduos empreendedores.

GIG: a uberização do trabalho é um média metragem que denuncia os efeitos da GIG economy e procura explicar a grande oferta de trabalhadores acionados via aplicativos de celular. Estreou no Canal Brasil e está disponível no site do canal Globonews e da Now. É produzido por um grupo da ONG Repórter Brasil (Carlos Juliano Barros, Caue Angeli e Maurício Monteiro), e alerta para os baixos rendimentos dos que trabalham com plataformas digitais, a falta da aplicação de leis trabalhistas, consequente aumento da desigualdade social e as condições precárias de trabalho que estão se estendendo a diversas atividades profissionais.

Desde entregadores de comida em bicicletas e motos até professores de aulas particulares, jogadores de competições de futebol de várzea, produtores de som, web designers, locutores, faxineiras, empregadas domésticas diaristas, e também - na realidade - cabeleireiros, manicuras, barbeiros, passeadores de cachorros, e todos serviços delivery aos quais as classes médias e a alta burguesia das grandes cidades brasileiras se adaptaram, rapidamente, durante o último mês de confinamento e dificuldade de acesso direto a esses especialistas.

E há também um dos filmes da Trilogia do Estado de Bem-Estar Social do cineasta britânico Ken Loach (analisada em A pandemia do capitalismo em filmes, em Carta Maior) o imperdível Você não estava aqui.

Diversos pensadores se debruçam sobre o tema e estudam, em várias áreas, as consequências da nova economia que já mostra a que veio em todas sociedades do planeta e fez por escancarar o aprofundamento imoral da desigualdade de classes criada pelo capitalismo pós-2008.

David Harvey, Giorgio Amgabem, Bruno Latour, Nikolaj Schultz, Slavo Zizek, Alain Badiou, Byung-Chul Han e o ativista camaronês Achille Mbembe, autor da Crítica da Razão Negra que, mais radical, vai além quando fala da ampliação da biopolítica para a necropolítica. Ou seja, a realização do poder coercitivo, já não por meio da gestão de corpos vivos (decreto e gestão, por exemplo, de quarentenas e isolamentos sociais), mas por meio da morte: necro, em grego, significa morte.

David Harvey, por exemplo, de 85 anos, geógrafo e professor da Universidade de Nova Iorque e um dos principais especialistas da teoria marxista, fala sobre as novas tecnologias e o novo saber se incorporando à máquina:

''Eles deixam de residir no cérebro do trabalhador, e o trabalhador é empurrado para a margem, tornando-se um mero apêndice da máquina, mero cuidador de máquinas. Toda a inteligência e todo o saber que antes pertenciam aos trabalhadores e conferiam a eles um certo monopólio de poder frente ao capital, agora desaparecem. O capitalista, que antes precisava das habilidades do trabalhador, agora se livra dessa limitação, e a habilidade é incorporada à máquina. O conhecimento produzido pela ciência e pela tecnologia é canalizado para a máquina, e a máquina se torna a 'alma' do dinamismo capitalista.''

Slavo Zizek, por sua vez, por ocasião do recente lançamento do livro Pandemia: covid 19 e a reinvenção do comunismo, escrito por ele em plena epidemia global, registrou o Primeiro de Maio insólito de sexta-feira passada, na sua coluna permanente do blog da Editora Boitempo (tradução de Artur Renzo) com o texto O dia do trabalhador em um mundo viral.

''Talvez tenha chegado o momento de darmos um passo atrás em nosso foco exclusivo na epidemia do novo coronavírus e nos perguntarmos o que a pandemia e seus efeitos devastadores revelam a respeito de nossa realidade social,'' observa Zizek.

''A primeira coisa que chama a atenção é que, em contraste com o lema barato de que “estamos todos no mesmo barco”, as divisões de classe explodiram. No andar mais baixo (da nossa hierarquia social) há aqueles tão destituídos que o vírus em si não constitui o problema principal (refugiados, pessoas enredadas em zonas de guerra). Enquanto estes ainda são em larga medida ignorados pela nossa mídia, somos bombardeados por celebrações sentimentais aos enfermeiros na linha de frente da luta contra o vírus – a Força Aérea Real inglesa chegou inclusive a organizar um desfile aeronáutico em homenagem a esses profissionais da saúde. Mas os enfermeiros são apenas a parte mais visível de toda uma classe de trabalhadores do cuidado explorados – ainda que não da mesma maneira que a antiga classe trabalhadora do imaginário marxista clássico é explorada. Nas palavras de David Harvey, eles constituem uma “nova classe trabalhadora”.

“A força de trabalho que se espera que cuide dos números cada vez maiores de doentes, ou forneça os serviços mínimos que permitem a reprodução da vida cotidiana é, via de regra, altamente generificada, racializada e etnicizada. Essa é a ‘nova classe trabalhadora’ que está na linha de frente do capitalismo contemporâneo. Seus integrantes precisam suportar dois fardos: eles são os mais expostos ao risco de contrair o vírus ao realizarem seus trabalhos, e ao mesmo tempo os mais propensos a serem demitidos sem nenhuma compensação por conta das medidas de contenção econômica introduzidas pelo vírus. A classe trabalhadora contemporânea nos Estados Unidos – composta predominantemente de afro-americanos, mexicanos e mulheres assalariadas – se encontra diante de uma escolha terrível: entre sofrer contaminação no processo de cuidar das pessoas e manter abertos formas-chave de provisão (tais como mercados de alimentos), ou desemprego sem benefícios (tais como atendimento à saúde).”

''É por isso que na França explodiram revoltas nas periferias pobres situadas ao norte de Paris onde moram as pessoas que servem aos ricos. Nas últimas semanas, Singapura também vem registrando um aumento vertiginoso nas infecções de coronavírus em dormitórios de trabalhadores estrangeiros.''

“Singapura abriga cerca de 1.4 milhões de trabalhadores migrantes provenientes em larga medida do sul e sudeste asiáticos. Na condição de faxineiros, cuidadores domésticos, trabalhadores de construção e trabalhadores manuais, esses migrantes são essenciais para manter a cidade em funcionamento – mas são ao mesmo tempo algumas das pessoas mais mal pagas e mais vulneráveis da metrópole.”

''Essa nova classe trabalhadora sempre esteve aqui; a epidemia apenas a tornou mais visível. Peguemos o caso da Bolívia: embora a maior parte da população boliviana seja indígena ou de etnia misturada, até a ascensão de Evo Morales essa enorme parcela da sociedade era efetivamente excluída da vida política, reduzida a uma maioria silenciosa do país que realiza seu trabalho sujo nas sombras. O que aconteceu com a eleição de Morales foi o despertar político dessa maioria silenciosa que não se encaixava na rede de relações capitalistas. Ainda não eram proletários no sentido moderno, permanecendo imersos em suas identidades sociais tribais pré-modernas – foi assim que Álvaro García Linera, o vice-presidente de Morales, descreveu a sina dessa população.''

“Na Bolívia, os alimentos eram produzidos por agricultores indígenas, as casas e as construções eram erguidas por trabalhadores indígenas, as ruas eram limpas por indígenas, e a elite e as classes médias delegavam a eles o cuidado de seus filhos. No entanto, a esquerda tradicional parecia alheia a isso, ocupando-se apenas com os trabalhadores na indústria de larga escala e deixando de atentar para sua identidade étnica.”

''Para designar essa classe, Bruno Latour e Nikolaj Schultz cunharam o termo “classe geo-social.” Muitos desses sujeitos não são explorados no sentido marxista clássico de trabalhar para os detentores dos meios de produção; a exploração se dá na forma pela qual se relacionam com as próprias condições materiais de suas vidas: acesso a água e ar puro, saúde, segurança…Mesmo não trabalhando para empresas estrangeiras, a população local é explorada quando seu território passa a ser utilizado para agricultura de exportação ou mineração intensiva; são explorados no simples sentido de serem privados do uso pleno do território que propiciava a manutenção de seus modos de vida. Pegue o caso dos piratas somalis: eles recorreram à pirataria porque sua costa marítima estava completamente exaurida de peixes por conta das práticas de pesca industrial realizadas por companhias estrangeiras, lá. Parte do seu território foi apropriado pelos países desenvolvidos e utilizado para sustentar o nosso modo de vida.''

''Latour propõe substituir, nesses casos, apropriação de “mais-valor” por apropriação de “mais-existência”, onde “existência” se refere às condições materiais da vida.''

''Então descobrimos agora, com a epidemia viral, que mesmo com as fábricas paralisadas, a classe geo-social de cuidadores precisa continuar trabalhando – e parece apropriado dedicar este Primeiro de Maio a eles ao invés de à classe trabalhadora industrial clássica. Eles são os verdadeiros super-explorados: explorados quando trabalham, visto que seu trabalho é em larga medida invisível, e explorados inclusive quando não trabalham; explorados não são apenas através do que fazem, como também em sua própria existência.''

''O sonho eterno dos ricos é o de um território totalmente separado dos locais poluídos em que vivem e circulam as pessoas comuns – basta lembrar de blockbusters pós-apocalípticos como Elysium (2013, dirigido por Neil Blomkamp), que se passa no ano de 2154 em uma sociedade na qual os ricos vivem em uma gigantesca estação espacial enquanto o resto da população vive em um planeta Terra que parece uma enorme favela latino-americana. À espera de algum tipo de catástrofe, os ricos estão adquirindo refúgios na Nova Zelândia ou renovando bunkers nucleares da Guerra Fria nas Montanhas Rochosas, mas o problema com a epidemia viral é que não é possível se isolar completamente – tal como um cordão umbilical que não pode ser totalmente rompido, é inevitável um vínculo mínimo com a realidade poluída.''

A Boitempo segue na apresentação do livro de Zizek: ''Uma pandemia global assola o planeta. Com a brusca mudança na rotina de bilhões de pessoas, vivemos em um momento em que o maior ato de responsabilidade é se manter distante daqueles que amamos. Em treze ensaios de escrita rápida, afiada e bem-humorada, a obra destrincha diferentes aspectos do surto provocado pelo novo coronavírus: filosóficos, psicanalíticos, políticos, sociais, econômicos, ecológicos e ideológicos.

Escrito com seu conhecido estilo irreverente e o gosto do autor por analogias da cultura pop (Tarantino, Hitchcock e H. G. Wells flertam com Marx, Hegel e Lacan nestas páginas), esse livro fornece fotogramas concisos e provocativos da crise à medida que ela se alastra e engole todos nós. Para apresentar a ousada tese que atravessa os ensaios que compõem esta obra, %u07Di%u07Eek não se furta de travar um debate direto com outros intérpretes contemporâneos da crise causada pela covid-19, como Giorgio Agamben, Byung-Chul Han, Alain Badiou e Bruno Latour, entre outros.''

E lembra que o autor abriu mão dos direitos autorais da obra, que serão revertidos à organização internacional Médicos Sem Fronteiras, dedicada a oferecer ajuda médica e humanitária a populações em situações de emergência em todo o planeta. O prefácio é assinado pelo psicanalista Christian Dunker.




Carta Maior

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