O verso célebre do poeta Allen Ginsberg registrou a injustiça da execução dos operários italianos pela América xenófoba dos anos 20 e de um tipo de processo jurídico vicioso que não deve se repetir no Brasil
Por Léa Maria Aarão Reis 29/05/2020 15:41
Na história cinematográfica, Sacco e Vanzetti é apontado como um dos filmes de maior repercussão no mundo, no ano de 1971, quando foi lançado. Dirigido pelo italiano Giuliano Montaldo no ápice do extraordinário cinema que então se fazia em Roma, seis anos depois o cineasta genovês voltou a se distinguir com a cinebiografia de Giordano Bruno, mas sem igual repercussão.
A legendária história dos dois imigrantes italianos, Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti, que se passou em 1920, numa cidade próxima de Boston, até hoje é um exemplo obrigatório, nos cursos de Direito, de como o sistema jurídico pode ser capcioso quando politiza e trabalha em consonância com convicções ideológicas e interesses do aparato de policiais, promotores, advogados, procuradores e juízes em determinado momento histórico.
O desenvolvimento do julgamento rumoroso dos dois operários, ambos do movimento anarquista, é o tema que ocupa praticamente todo o filme de Montaldo e é também o assunto central do conhecido livro de Howard Fast, de título homônimo ao filme: Sacco e Vanzetti.
Denunciados injustamente por assalto a uma sapataria seguido de homicídio, ambos foram condenados à cadeira elétrica num dos processos mais ignóbeis da história recente do Direito Criminal.
Um caso que mobilizou multidões em protesto, durante as sessões de seu julgamento, nas ruas de cidades americanas, de Paris e Berlim, e foi celebrado por Allen Ginsberg no seu poema central, America*, e em textos de Walter Benjamin.
O filme conta com a bela cantata de Joan Baez apresentada na voz da cantora e compositora beat. Neste tempo de cinema em casa e isolamento sanitário ele pode e deve ser revisitado no Youtube pelos que o assistiram no começo da década dos 70 ou conhecido pelas platéias mais jovens que nunca viram, no cinema, esse que foi um dos casos mais escandalosos de lawfare.
Com ele é possível rememorar o que se passou - e se passa ainda - no processo de Curitiba contra o ex - Presidente Luis Inácio Lula da Silva. O espetáculo de juristas de olho na sua própria estreia no mundo da política e travestidos, ainda quando atuavam nos tribunais, em atores político-partidários.
A emergência da cobertura da pandemia tirou do foco da opinião pública o escândalo conduzido pelo ex-juiz Sergio Moro nos processos contra Lula.
Mas convém não esquecê-lo para que não se repita ''tratar acusados como inimigos, negar a essência do direito de defesa, devassar e humilhar seus advogados e, principalmente, sincronizar processos conforme o ritmo de calendários políticos,'' como declarou esta semana a defesa do ex-presidente. "Há necessidade de o sistema corrigir os erros do passado," alerta o advogado Cristiano Zanin Martins. Todos esses ''erros'' estão lá, no filme que narra a história dramática dos italianos.
Em Carta Maior, 'Sacco e Vanzetti' ganhou um texto republicado do site Justificando assinado pelos advogados Cidânia Locatelli, professora de Direito Trabalhista e Diego Augusto Bayer, professor de Direito Penal: "Julgamentos Históricos: Sacco e Vanzetti, condenados pela ira do capitalismo norteamericano".
''Mas quem eram estes dois italianos?'' indaga o texto. ''Sacco era filho de camponeses pobres italianos, emigrou para a “América” aos 17 anos. Viveu períodos de grandes dificuldades. Passou fome, viveu o desemprego e trabalhou em diversas fábricas. Era um sapateiro que participou da Federação Socialista Italiana e da prática sindicalista anarquista.
Bartolomeu Vanzetti gostava de estudar. Emigrou para os Estados Unidos aos 20 anos e, segundo suas próprias palavras, na América viu “ todas as brutalidades da vida, todas as injustiças e as depravações em que se debate tragicamente a humanidade”. Estudou Bakunin, Marx, Kropotkin, Gorki, Mazzini, Tolstoi, Leopardi, Darwin. Tornou-se um convicto anarquista e importante liderança no movimento operário.''
A intimidação explícita desde as investigações policiais e a detenção da dupla foi a marca infâme do processo até mesmo quando outro homem ter admitido, tempos depois, a autoria dos crimes.
Como nos manuais fascistas há sempre a necessidade de se imputar crimes em grupos da população tidos como inimigos da democracia, Sacco e Vanzetti foram taxados de anarquistas, sindicalistas, mafiosos, socialistas e comunistas E registrados na polícia como adversários (convenientes) naquele momento da vida nos Estados Unidos.
''América para os americanos'' eram os dísticos impressos nas faixas de protestos de multidões, nas ruas, que num primeiro momento e conduzidas pela mídia manipuladora pediam punição para os imigrantes.
No tribunal, o filme de Montaldo mostra a simulação viciosa do crime supostamente cometido. As objeções impertinentes da promotoria procurando gerar confusão, e o juiz aceitando-as prontamente. O jogo de cartas marcadas.
Entrevistamos o ator Ricardo Cucciola, (no papel de Sacco), em Roma, em 1971, quando ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes. Um ator engajado e concentrado no seu papel na vida real. Um Gian Maria Volonté jovem e cheio de energia e indignação interpretou Vanzetti.
Sacco e Vanzetti foram eletrocutados na cadeira elétrica em 23 de agosto de 1927. Não receberam o perdão que o governador do estado poderia ter concedido. Nem antes da execução nem o perdão póstumo, o que segundo as autoridades de plantão seria abonar a inocência dos trabalhadores.
Meio século depois, o então governador de Massachussets, Michael Dukakis, reconheceu oficialmente que os dois companheiros não receberam um julgamento justo e promulgou o Dia em Memória de Sacco e Vanzetti.
Aqui, devemos esperar 50 anos para a anulação dos processos de Curitiba?
*''America, Sacco e Vanzetti não podem morrer'', Allen Ginsberg.
Carta Maior
Nenhum comentário:
Postar um comentário