terça-feira, 5 de maio de 2020

O Brasil está nas mãos do demônio e é único na sua desgraça





Tudo se parece com uma encenação da Commedia Dell’Arte. Estamos abandonados ao nosso destino



Ocorreu-me o Teatro degli Zanni, na sexta-feira 24 assistia ao pronunciamento do presidente da República em resposta às acusações de Sérgio Moro, o ministro da Justiça de saída do governo. Estava perfilada a trupe do gabinete bolsonarista, poderia dizer mesmo os Zanni reunidos no Palácio do Planalto. Foram personagens de uma forma da Commedia dell’Arte que brilhou em Veneza com suas variadas interpretações. A linguagem que empregavam era absolutamente incompreensível, nela apenas se distinguia uma referência a uma misteriosa Filibustacchina, melhor especificada como La Filibustacchi. O resto era insondável, mas os trejeitos das figuras no palco encantavam o público.

A tradição teatral é notável em Veneza, onde mais tarde pontificou Carlo Goldoni, responsável, entre outras peças, por uma magistral intitulada Arlequim Servidor de Dois Amos. Fez sucesso no mundo inteiro ao longo da década de 1950, levada pelo Piccolo Teatro de Milão com a direção do rival de encenações importantes de Luchino Visconti, Giorgio Strehler.

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Arlequim era um ator especializado no cumprimento do papel, ginasta e dançarino, no caso da primeira encenação chamava-se de sobrenome Moretti. Era Arlequim para toda a vida, este seria seu desempenho para sempre. De Pequim a Nova York, de Paris a Beirute, de Madri a São Paulo, a peça encantou as plateias. Aqui foi apresentada no Teatro Santana, pequeno para um espetáculo tão imponente. A prefeitura não percebeu a importância daquela exibição e não lhe garantiu o palco do Teatro Municipal. É estranho porque, na época, São Paulo organizava ali temporadas de ópera inesquecíveis, com a presença das vozes mais famosas.
Já na apresentação dos Zanni no Palácio do Planalto, ao lado de Jair Bolsonaro figurava uma singular personagem, talvez um Arlequim às avessas, de camisa preta e terno cinza-escuro naquela tonalidade conhecida como fog londrino. Não passava de uma espécie de Champollion dos surdos, mas se manifestava com gestos e expressões faciais que faltaram ao monocórdio Bolsonaro, a seu modo presença útil de diversos pontos de vista. Plantado atrás do orador, Onyx Lorenzoni parecia incumbido da tarefa de sugerir o texto, enquanto o ministro Guedes distinguia-se pelo uso exclusivo da máscara e por peculiares calçados, indefinidos entre pantufas, sapatilhas especiais escolhidas a de- do em nome da importância do evento, ou as próprias meias. Escolha atenta de um ministro em vias de fritura.
A pantomima dos Zanni governamentais, sem descurar os exercícios ginásticos do novo ministro da Saúde para depositar a cabeça sobre o ombro direito, teria entusiasmado Veneza no século 17. Mais forte do que a conveniência do enredo, o jogo do destino. A situação criada pelas acusações do ex-Torquemadazinho de Curitiba assume as feições de um desfecho impecável para o desastre precipitado pela Lava Jato, começo de um entrecho concluído pela exposição previsível da demência presidencial, da mediocridade provinciana de um ex-ministro da Justiça que, na qualidade inaceitável de juiz, decide trair todas as regras mais comezinhas do direito, para ganhar a notoriedade de quem condena sem provas, impunemente, o ex-presidente petista, com o apoio delirante da mídia nativa a serviço da casa-grande.
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A tramoia criminosa liberada pela atuação de Moro deságua exatamente na entronização das duas personagens agora em fatal desacordo. Este momento demonstra o quanto o Brasil é único na sua desgraça. Pretendia evitar referências ao país que me hospeda desde quando ainda era uma esperança de futuro. Não faltou no País quem enxergasse em Bolsonaro um Mussolini ou um Hitler, certamente esquecido de que a Alemanha dos tempos nazistas contava com a presença de Heidegger, Hannah Arendt, Thomas Mann, Hermann Hesse e por aí afora, sem contar Bertolt Brecht, que partira para evitar a perseguição, enquanto a Itália dos tempos fascistas ostentava Pirandello, Eugenio Montale, Salvatore Quasimodo, Benedetto Croce e Antonio Gramsci. Croce fechou-se em sua casa napolitana e somente saiu dela quando Mussolini caiu. Gramsci foi preso por 11 anos e, enfim, morreu sem recuperar a liberdade. Cito nomes mais ou menos ao acaso, se mencionasse todos que me vêm à mente tomaria todo o espaço desta edição.
Aqui se fala no risco de impeachment a rondar o atual presidente, enquanto, como era de se esperar, surja quem esteja disposto a enxergar em Moro um salvador da pátria. Avulta a evidente tibieza do Congresso e da Suprema Corte, poderes da República que jamais poderão se redimir de sua participação em uma série de golpes que acabam por explicar a situação atual e o medo atávico do povo brasileiro, como sempre incapaz de reação. Bolsonaro, Moro e o próprio país são únicos aos olhos do mundo civilizado e democrático. Somos condenados pela nossa história, por um passado de escravidão e uma colonização predatória.
Confesso que esperava por uma manifestação de repulsa do Partido dos Trabalhadores e do próprio Lula, alvejado a despeito do seu bom governo. Tudo se fez para que Lula não se reelegesse em 2018, com uma vitória de favas contadas, para o conforto da minoria rica sequiosa de um mando sem riscos e de Tio Sam.
A partir daí o Brasil vive um clima político totalmente irregular que invalida tudo o que acontece, conforme um projeto destinado a favorecer os donos do dinheiro, da terra e das manadas, enquanto o País prima por ser campeão mundial da má distribuição da renda.

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