Têm surgido alguns manifestos ditos democratas com o mesmo objetivo: aglutinar a maioria insatisfeita contra este estado de coisas no qual o país se encontra. Um deles, particularmente, chamou a atenção: o Estamos Juntos. Entre os anjinhos signatários da defesa da democracia estão desde Lobão, Luciano Huck e FHC a empresários outrora afeitos a inflar patos. Verdadeiros paladinos do Estado Democrático de Direito.
Era só o que faltava: um consórcio de golpistas e fascistóides, descontentes com os rumos que o Brasil tomou por culpa deles, decide fundar um movimento de resgate da democracia. O movimento se define: “somos cidadãs, cidadãos, empresas, organizações e instituições brasileiras e fazemos parte da maioria que defende a vida, a liberdade e a democracia”. Sem citar nomes e sem apontar culpados. Alegam defesa da democracia, mas sem mencionar o fascismo, o golpe de 2016, a ponte para o futuro.
Destaca-se o tom isentão e vago do manifesto. De maneira superficial., abordam velhos clichês morais como “combater a corrupção”, “dignidade”, “responsabilidade”, “nação” “projeto comum para o país”, “suprapartidário”, “ética”, “família”, “diversidade”, “meio ambiente”, etc. Só faltam cantar “We are the world/ We are the children/ We are the ones who make a brighter day, so let's start giving”. Nenhuma palavra sobre a precarização das condições da classe trabalhadora, da perda de direitos, da precarização, do desamparo dos aposentados, da Ementa Constitucional 95 que estrangula os serviços públicos. Enfim, nenhuma palavra sobre o desastre das políticas neoliberais pós-golpe de 2016.
Tudo muito impreciso e genérico. Por quê? Para se recompor os mesmos interesses aos quais o bolsonarismo supostamente atenderia, não fosse o recrudescimento autoritário sobre o qual já não se tem controle. O objetivo é retirar Jair Bolsonaro do Palácio do Planalto, mas não a agenda neoliberal de destruição do patrimônio nacional e o fim dos direitos sociais, dentre os quais o Sistema Único de Saúde.
Lula se recusou a assinar o manifesto. Segundo ele, não devemos entrar no primeiro ônibus que passe. Colunistas isentões, envolvidos até o pescoço com a ascensão do bolsonarismo, se apressaram a atacá-lo, acusando-o de egocêntrico, radical, intolerante, egoísta, etc.. Seu receio de entrar no primeiro ônibus que passa é que o PT seja instrumentalizado a serviço de uma farsa para se prosseguir com a agenda guedista sob o mando de alguém mais palatável, mais pasteurizado que Bolsonaro. Esta retirada “parcial” não atende a ele porque nestes manifestos nada se fala sobre retrocessos e direitos dos trabalhadores. Ele teme embarcar num prosseguimento neoliberal com a assinatura dele. Passar um cheque em branco aos próprios assaltantes?
Obviamente, nem todos signatários do manifesto são cínicos e oportunistas interessados em limpar suas reputações, manter seus interesses e preservar o status quo. Muita gente séria endossa o documento. Claro, pois a derrota do fascismo é premente. Mas uma frente ampla para se derrotar o fascismo e se restabelecer o Estado de Direito se compõe com democratas. Não se trata de ser de esquerda ou direita. Trata-se de ser democrata. Se estes oportunistas o fossem, teriam lutado pela democracia quando ela esteve sob ameaça. Não trabalhariam ativamente pelo golpe, não compactuariam com farsas midiáticas e parlamentares, não se omitiriam diante da politização do judiciário e da intervenção partidária na disputa eleitoral, um dos momentos sagrados da democracia. Não bateriam panelas nem inflariam patos. Para estes que capitaneiam esse movimento bom-mocista, Bolsonaro foi um acidente. Mas o projeto que ele representa, não. Defender democracia junto daqueles que contra ela atentaram beira as raias do ridículo. Eleitoralmente, o que se espera disso? Em que pode resultar nos juntarmos às raposas na defesa do galinheiro? Um bolsonarismo de sapatênis, farialimer, que use termos em inglês no meio da frase, que tenha um verniz institucional. Mas que prossiga a agenda de desmonte do Estado, de desmantelamento da proteção social, de supressão de direitos sociais, trabalhistas e previdenciários. Privatista, subalterno, agroexportador e ambientalmente corrosivo. Antipovo, sem projeto de transformação social, de política industrial consistente, de medidas econômicas anticíclicas. A serviço de meia dúzia de pessoas habituadas sempre a ganhar e que recorrem a adversários derrotados em jogos cujas regras adulteraram.
Compreende-se por que tudo é tão vago, sem agenda, sem pauta, sem perspectiva. Um movimento sobre tudo é justamente para ser um movimento sobre nada. Mover-se para que nada se altere. Pacto de elites sem agenda de inclusão é engodo.
A última vez que os democratas embarcaram no primeiro ônibus que passou (ironicamente, contra o aumento na passagem), sabemos como acabou. O movimento foi sequestrado por uma concertação de golpistas cujo final é este no qual nos encontramos. Por isso, cuidado ao pegar o primeiro ônibus que passa. Sobretudo quando conhecemos seu itinerário, seus motoristas e seu ponto final.
Thiago Antônio de Oliveira Sá é sociólogo, professor e doutor em Sociologia
Carta Maior
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