Venceram, mais uma vez, o medo, em que se baseia todo o arcabouço e o calabouço do fascismo
“No ventre de Maria
Deus se fez homem.
Mas, na oficina de José
Deus também se fez classe.”
Pedro Casaldaliga.
As classes, cientes de si, saíram às ruas no último domingo.
De forma inteligente, em horários diversos, nas várias capitais, animando-se reciprocamente, na medida em que as belas imagens dos encontros democráticos percorriam as telas da nação.
Venceram, mais uma vez, o medo, em que se baseia todo o arcabouço e o calabouço do fascismo.
Os times de futebol foram essenciais para a convocação cidadã, demonstrando que a essência da boa política é a cultura, como Gramsci bem percebera.
A propósito, em “Dias e noites de amor e de guerra”, Eduardo Galeano nos narra: “Há anos, em Kiev, me contaram por que os jogadores do Dínamo tinham merecido uma estátua.
Contaram uma estória dos anos da guerra.
Ucrânia ocupada pelos nazistas. Os alemães organizam um jogo. A seleção nacional de suas forças armadas contra o Dínamo de Kiev, formada pelos operários da fábrica de tecidos: os super-homens contra os mortos de fome.
O estádio está lotado. As arquibancadas se encolhem, silenciosas, quando o exército vencedor mete o primeiro gol da tarde; se acendem quando o Dínamo empata, estalam quando o primeiro tempo termina com os alemães perdendo por 2 a 1.
O comandante das tropas de ocupação envia seu assistente aos vestiários. Os jogadores do Dínamo escutam a advertência:
– Nosso time nunca foi vencido em territórios ocupados.
E a ameaça:
– Se ganharem, serão fuzilados.
Os jogadores voltam ao campo.
Poucos minutos depois, terceiro gol do Dínamo. O público acompanha o jogo em pé, e em um único longo grito. Quarto gol: o estádio vem abaixo.
De repente, antes da hora, o juiz dá por terminado o jogo.
Foram fuzilados com as camisetas, no alto de um barranco.”
Que bela homenagem do nosso Galeano aos jogadores, às torcidas e ao público amante do futebol, quando simples, humilde e popular.
Na atualidade brasileira, cabe homenagear um dos dirigentes da Gaviões da Fiel que perdeu o emprego, por ter participado e liderado o ato antifascista e anti-racista na Paulista. De fato, os fascistas ainda têm poder, mas não por muito tempo, a se considerar justamente as últimas manifestações democráticas, antifascistas e anti-racistas.
Lembremos sempre com Galeano, na mesma obra citada, o que ocorrera no Chile após a vitória de Allende, que se aplica aos anos de Lula e Dilma no Brasil: “Mas os donos do poder, que tinham perdido o governo, conservavam as armas e a justiça, os jornais e as rádios.”
Nossa América Latina, tão irmã, tão igualmente sofrida e carente de libertação.
Por isso, as manifestações de domingo último são significativas: até as redes de comunicação hegemônicas tiveram de render-se a elas e transmiti-las.
Venceu a coragem dos jovens, pois, como bem assinalou Galeano, na obra em apreço: “A censura triunfa de verdade quando cada cidadão se converte no implacável censor de seus próprios atos e palavras.
A ditadura converte em cadeias os quartéis e as delegacias, os vagões abandonados, os barcos em desuso. Não converte também em cárcere a casa de cada um?”
Com efeito, o que parecia um obstáculo intransponível, a quarentena, tornou-se momento de acumulação, como a água que antes precisa preencher o buraco que a obstaculiza, para voltar a correr livremente.
Com Willian Shakespeare, lembremos que: “Nenhum ser existe sobre a terra, por mais vil que seja, que não faça à terra algum bem.” Serve a analogia para o período de isolamento social e a necessária reflexão sobre a liberdade, que dele resultou.
Pois como Galeano tão bem recorda: “Não se esgota na lista de torturados, assassinados e desaparecidos a denúncia dos crimes de uma ditadura. A máquina domestica para o egoísmo e a mentira. Para se salvar, ensina a máquina, você terá de se fazer hipócrita ou sacana. Quem esta noite te beija amanhã te venderá.”
Não é o individualismo o fruto podre da ditadura, que estamos tentando vencer?
Para melhor ilustrar os nossos dias de fascismo, bem casam as palavras de Galeano sobre a ditadura que a Argentina então atravessava: “…se exorta as crianças a denunciar os professores. Na Argentina, a televisão pergunta: ‘O senhor sabe o que seu filho está fazendo nesse momento?”
E acrescenta: “Por que não figuram nas páginas de crimes e escândalos o assassinato da alma por envenenamento?”
Em homenagem aos jovens e às jovens que desafiaram o medo neste fim de semana, concluo com mais uma atualíssima reflexão de Galeano sobre o fascismo, que ele entende “máquina” e o ódio dela pela juventude: “A máquina acossa os jovens: os tranca, tortura, mata. Eles são a prova viva de sua impotência. Os expulsa: os vende, carne humana, braços baratos ao estrangeiro.
A máquina, estéril, odeia tudo que cresce e se move. Só é capaz de multiplicar as prisões e os cemitérios. Não pode produzir outra coisa que presos e cadáveres, espiões e policiais, mendigos e desterrados.
Ser jovem é um delito. A realidade comete esse delito todos os dias, na hora da alvorada; e também a História, que cada manhã nasce de novo.
Por isso a realidade e a História estão proibidas”.
Estavam, já não estão mais.
Diplomata aposentado, foi secretário socioeconômico do Instituto Ítalo-Latino Americano; vice-presidente do Comitê Consultivo do Fundo Central de Emergências da Organização das Nações Unidas (ONU) e representante, alterno, do Ministério das Relações Exteriores no extinto Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).
Carta Capital
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