terça-feira, 25 de agosto de 2020

Renda básica universal nos EUA e o caso do Alasca

Créditos da foto: Aldeia esquimó Inuit no Alasca (Getty Images / Jim Simmen)

Graças aos dividendos do fundo permanente no estilo Renda Básica Universal, o Alasca tem "uma taxa de pobreza muito menor", diz economista


Por Matthew Rozsa                                                                                      24/08/2020 16:11

A pandemia ergueu o espectro de milhões de norte-americanos lutando contra o desemprego nos próximos anos, um processo que a automação já havia iniciado anos atrás. Isso poderá acelerar o apelo de longa data de ativistas, líderes empresariais e políticos como Andrew Yang para promulgar uma renda básica universal (ou RBU) - uma proposta amplamente aceita de um programa social universal que tem apoiadores em todo o espectro político.

A premissa da RBU é bastante lógica, talvez mais sensata neste momento político: por que o sustento de alguém deve ser prejudicado devido a fatores econômicos ou desastres fora de seu controle? Se algo como uma pandemia ou um colapso de Wall Street pode destruir vidas inocentes, o governo não deveria instalar um programa que as proteja? E mesmo se não tivéssemos crises econômicas cíclicas, as pessoas que perdem seu sustento por causa do progresso tecnológico, como a automação, não deveriam receber algo melhor do que um futuro de pobreza?

Com uma renda básica universal, o governo forneceria uma certa quantia de dinheiro, a cada ano a cada cidadão, para que ninguém caísse abaixo da linha de pobreza. A quantia envolvida em uma RBU varia dependendo da proposta - por exemplo, o empresário Andrew Yang baseou sua campanha presidencial este ano em um projeto chamado "dividendo de liberdade" de US$ 1.000 por mês - mas o conceito subjacente é sempre o mesmo: proteger as pessoas dos caprichos da nossa economia e garantir uma proteção financeira.

A renda básica universal tem precedentes. Outros países experimentaram a ideia, incluindo o Canadá. Mas mesmo aqui nos EUA, um estado, o Alasca, tem uma versão em pequena escala da RBU. É conhecido como Fundo Permanente do Alasca.

"O Fundo Permanente do Alasca foi criado em 1976 para investir uma parte das receitas do petróleo nas gerações futuras", disse Stephen Nuñez, pesquisador-chefe sobre renda garantida no Instituto Jain da Família, ao Salon por e-mail. "Em 1982, eles começaram a pagar o Dividendo do Fundo Permanente do Alasca anualmente a todos os residentes permanentes do Alasca (incluindo crianças)."

Ele disse que, embora o valor varie ano a ano, um pagamento de US$ 1.000 a US$ 1.250 é o valor habitual.

Contra-argumentos à RBU incluem alegações de que eles podem impedir as pessoas de trabalhar. Mesmo assim, Ioana Marinescu, da Universidade da Pensilvânia, indicou à Salon um artigo que ela escreveu em coautoria em 2018 com Damon Jones, da Universidade de Chicago, que mostrava que o Fundo Permanente do Alasca "não tem efeito sobre o emprego".

Conforme detalhado no artigo, o fundo foi criado por uma série de razões, entre elas "para garantir que a receita corrente fosse em parte preservada para os futuros residentes". O fundo é administrado pela Corporação do Fundo Permanente do Alasca, e em novembro foi avaliado em US$ 65,8 bilhões. Desde 1982, o dividendo é distribuído aos habitantes do Alasca "na forma de Dividendo do Fundo Permanente do Alasca", que consiste em "aproximadamente 10% dos retornos médios do fundo durante os últimos 5 anos, distribuídos igualmente entre os inscritos do ano corrente." Seu valor nominal varia de US$ 331 em 1984 a US$ 2.072 em 2015. O pagamento excedeu consistentemente o valor de US$ 1.000 desde 1996.

Para se qualificar como beneficiário, a pessoa deve ter residido no Alasca por pelo menos um ano inteiro e não ter sido presa por algum crime durante o ano anterior.

“Uma pesquisa representativa dos residentes no Alasca conduzida em março e abril de 2017 mostra que os dividendos são populares e significativos para eles”, escrevem Marinescu e Jones. "por exemplo, 40% dos entrevistados disseram que os dividendos anuais fizeram uma grande ou uma razoável diferença em suas vidas nos últimos cinco anos, enquanto apenas 20% disseram que não fizeram diferença. Curiosamente, os habitantes do Alasca também foram questionados sobre como os dividendos afetam os incentivos e a disposição para trabalhar: 55% relataram nenhum efeito, 21% um efeito positivo e 16% um efeito negativo. Assim, a maioria dos habitantes do Alasca informa que o dividendo tem pouco ou nenhum efeito sobre o trabalho."

Karl Widerquist, professor de filosofia da Universidade de Georgetown – Qatar com doutorado em teoria política e economia, confirmou ao Salon que o fundo foi bem-sucedido.

"Se uma família empobrecida de quatro pessoas recebe US$ 8.000, isso não é o suficiente para viver por um ano, mas é o suficiente para fazer uma diferença enorme", explicou Widerquist ao Salon por e-mail. “Nos primeiros 20 ou 30 anos do programa, o Alasca foi um dos estados economicamente mais igualitários e o crescente [Dividendo do Fundo Permanente] foi provavelmente uma das razões. Isso ajudou o Alasca a manter uma taxa de pobreza e uma disparidade de pobreza muito mais baixas do que seriam se ele não existisse."

Mouhcine Guettabi, professor da University of Alaska Anchorage, explicou ao Salon que "o Dividendo do Fundo Permanente afeta o Alasca de várias maneiras, muitas das quais ainda não entendemos. Sabemos pela pesquisa que reduziu a pobreza, não aumentou a criminalidade, é responsável pela redução da obesidade infantil e que sua distribuição não fez com que as pessoas saíssem do mercado de trabalho”.

Guettabi observa que o programa tem enfrentado dificuldades à medida que as receitas fiscais diminuem nos últimos anos. “Nos últimos anos, ao invés de usar a fórmula histórica, os pagamentos foram definidos pelo legislativo em um valor menor para equilibrar o orçamento”, acrescentou.

As opiniões de Guettabi foram repetidas pelo deputado estadual do Alasca Jonathan Kreiss-Tomkins, um democrata, que disse ao Salon por e-mail que "a criação do Fundo Permanente foi uma das decisões mais prudentes do Alasca. O Fundo Permanente converte efetivamente a riqueza pontual do petróleo em riqueza financeira renovável. Como disse Jay Hammond [o governador que supervisionou a criação do fundo] (estou parafraseando), em vez de um poço de petróleo que eventualmente secará, o Fundo Permanente é um poço de dinheiro que bombeará para sempre."

Kreiss-Tomkins acrescentou: "Infelizmente, quando o Alasca passou a lutar com enormes déficits orçamentários, o dividendo - quão grande ou pequeno - se tornou o centro do debate. E como as pessoas em diferentes lados do debate sobre ele não conseguem chegar a um acordo, o principal do próprio Fundo Permanente pode ser gasto. Efetivamente, o Fundo Permanente pode sofrer um dano colateral à medida que o debate sobre o orçamento do Alasca e o Dividendo do Fundo Permanente continuarem."

Obviamente, o fundo do Alasca não é necessariamente um equivalente perfeito a uma Renda Básica Universal que poderia funcionar em nível nacional. Mesmo em sua forma mais generosa, não oferece aos residentes dinheiro suficiente para se sustentarem inteiramente por conta própria. O conceito subjacente de uma verdadeira RBU é que ela faria mais do que meramente complementar as receitas existentes; ela seria suficiente para que cada beneficiário se sustentasse, mesmo que estivesse desempregado, tanto para poupá-lo da pobreza quanto para permitir que mentes inovadoras realizassem seu potencial sem se deixar limitar pela necessidade de desperdiçar a maior parte de suas vidas simplesmente tentando sobreviver.

Um "fundo permanente" para toda a nação

O exemplo do Alasca prova que dar dinheiro aos cidadãos com as receitas fiscais - principalmente impostos sobre o petróleo, no caso deles - é mais do que viável. Então, poderia uma versão mais robusta do modelo do Alasca ser adotada em todo o país? Os críticos dizem que uma RBU pode levar as empresas a aumentar seus preços, desincentivar o trabalho ou ser suficiente [sic] para erradicar a pobreza.

"Essa é uma boa pergunta", disse Nuñez a Salon quando questionado sobre a possibilidade de os preços subirem à medida que mais pessoas tivessem dinheiro. "Uma versão disso que você provavelmente ouve com frequência é que os proprietários de imóveis vão estragar tudo. Eu não acho que seja razoável. Quando as pessoas implementaram o seguro social, a pobreza na verdade diminuiu para os idosos - nem todos os proprietários aumentaram o aluguel no valor exato do seguro social."

Quando questionado se a RBU desincentivaria as pessoas de trabalhar, Widerquist argumentou que aconteceria exatamente o oposto: a renda básica deixaria as pessoas livres para decidir que tipo de trabalho é melhor para elas. Isso distingue a RBU de outros programas de bem-estar: o seguro-desemprego exige que você esteja desempregado. O Seguro Social exige que você seja aposentado. O Seguro de Invalidez da Previdência Social exige que você seja deficiente.

“Em todas essas formas, o sistema existente desestimula o trabalho, porque você tem que ficar fora do trabalho ou manter sua renda baixa para obtê-lo”, explicou Widerquist. “A renda básica não desincentiva o trabalho porque é um pagamento único. Você recebe, seja rico ou pobre. Agora, os impostos podem desencorajar o trabalho. Isso pode funcionar no sentido que mais um pouco de trabalho se torne menos atraente, mas a renda básica em si não faz o que a tributação faz."

Em vez disso, ele ressaltou que "a renda básica lhe dá a liberdade e o poder de rejeitar o trabalho. Se as condições de trabalho são péssimas e os salários realmente ruins, isso desincentiva o trabalho. Se eles lhe dão um bom emprego e um bom salário, a renda básica o desestimula de aceitá-lp?"

Por sua análise, Widerquist sentiu que as pessoas que argumentam que a RBU desincentivaria o trabalho realmente argumentam que querem que as pessoas "da classe baixa e média não tenham outra escolha a não ser trabalhar e ter que receber qualquer salário e aceitar qualquer emprego, não importa quais são os salários e as condições de trabalho. Acredito que o mercado de trabalho deve ser um mercado livre, onde você entra como uma pessoa livre e pode rejeitar o mercado se não quiser”.

Ele acrescentou: "Não devemos forçar as pessoas dizendo que você não pode ter nenhum acesso aos recursos de que precisa para sobreviver, para forçá-los a aceitar qualquer emprego e quaisquer condições de trabalho. Então é assim que se resolve isso: dizendo que desincentiva este trabalho. Na verdade a RBU não desincentiva o trabalho."

Nesse ponto, também podemos recorrer a Yang, que estruturou sua proposta de "dividendo da liberdade" como uma ferramenta para permitir que pessoas talentosas, que de outra forma poderiam desperdiçar suas vidas apenas tentando sobreviver, liberem seu potencial. Como ele escreveu em seu site de campanha, a RBU "aumenta o empreendedorismo porque fornece as necessidades básicas nos primeiros dias de vacas magras de uma empresa e atua como uma rede de segurança se o negócio falhar. Também dá a você mais consumidores para vender, porque todos têm mais renda disponível. O Instituto Roosevelt descobriu que uma RBU criaria 4,6 milhões de empregos e faria a economia crescer 12% continuamente. A RBU seria o maior catalisador para novos empregos, empreendedorismo e criatividade que já vimos."

Ele acrescentou que também "aumenta a produção artística, o trabalho sem fins lucrativos e o cuidado com os entes queridos porque fornece uma renda complementar para os interessados em trabalhos não sustentados pelo mercado".

Por fim, há preocupações sobre como garantir que uma RBU forneça dinheiro suficiente para realmente permitir que as pessoas sobrevivam com ele. Para refletir sobre isso, Salon recorreu a Richard D. Wolff, professor emérito de economia da Universidade de Massachusetts Amherst. Ele explicou que a viabilidade política e econômica de qualquer RBU estaria relacionada a quanto dinheiro ele desembolsaria.

Wolff disse a Salon: "Uma das minhas aversões à renda básica universal é minha profunda suspeita de que as forças sociais que sempre transformaram, a possibilidade de se viver com uma transferência pública de renda, um desastre em termos de qualidade de vida iriam destruir seus benefícios para não ajudar de fato os pobres”.

"Sou uma daquelas pessoas para quem as questões de riqueza e pobreza são sempre relativas, nunca absolutas", explicou Wolff. “Então eu não entendo a noção de 'dinheiro suficiente'. Suficiente significa o quê? Seu filho vai imaginar uma vida em que o degrau mais alto que ele pode alcançar é ser um motorista de caminhão ou, se você tiver sorte um professor de escola, contra outra pessoa que se imagina viajando ao redor do mundo, fazendo coisas interessantes?" Wolff disse que quando o governo define o valor da RBU, "você está moldando a vida das pessoas desde o início, provavelmente a inocência das crianças. E assim, para mim, a questão do que é suficiente é altamente discutível."

Wolff também observou que a RBU não corrigiria as desigualdades sociais subjacentes do capitalismo norte-americano - especificamente, que "uma corporação ... não deve distribuir renda da maneira radicalmente desigual que faz, com centenas de milhões de dólares para três dos principais funcionários, grandes porções dessa receita gastas com um punhado de grandes acionistas" e os trabalhadores recebendo muito menos. Wolff disse que ao não resolver o "problema maior" - de "ter uma sociedade que coloca algumas pessoas na posição de viver dos impostos pagos por outros" - a RBU apenas cria "uma receita para um conflito sem fim".

Ele propôs uma alternativa: "Dê um emprego a todos. Por que não estamos falando sobre o emprego básico universal? Dê um emprego a cada pessoa. Pare de definir empregos à maneira capitalista, como algo que dá lucro. Ter o lucro como o principal objetivo é uma ideia idiota. É estúpido matematicamente, é economicamente estúpido e é realmente estúpido como política social."

As palavras de Wolff lembram o presidente Franklin D. Roosevelt, que em 1944 propôs uma declaração de direitos econômicos que incluiria: "o direito a um trabalho útil e remunerado nas indústrias ou lojas ou fazendas ou minas da nação" e "o direito de ganhar o suficiente para fornecer alimentação adequada, roupas e recreação", juntamente com uma boa educação, um lar e o direito a cuidados médicos.

Nesse discurso, Roosevelt lançou as bases para o moderno estado de bem-estar como o conhecemos. Setenta e seis anos depois, a visão de Roosevelt é uma sombra de si mesma, e o pouco que resta do estado de bem-estar social dos EUA não conseguiu nos salvar de uma recessão induzida por uma pandemia. Agora, a questão não é se nossa doença econômica pode ser curada, mas se a renda básica universal é o remédio certo.

*Publicado originalmente em 'Salon' | Tradução de César Locatelli

Carta Maior

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