quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Entenda o processo de aprovação da vacina da Covid-19 pela Anvisa

VACINA TESTE DE CORONAVÍRUS (CORONAVAC) SENDO APLICADA (FOTO: GOVESP)
 

Em entrevista a ‘CartaCapital’, consultor da agência esmiúça aspectos políticos e técnicos para aval final a um imunizante seguro


Com a divulgação de resultados clínicos das vacinas contra a Covid-19 em fase de testes, aumenta a expectativa para uma data em que os brasileiros – e o resto do mundo – poderão obter o imunizante contra o coronavírus.

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Até a picada de agulha, porém, a vacina passa obrigatoriamente pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), responsável por checar a qualidade dos fármacos e dar o aval necessário de segurança para todas as faixas etárias.

Algumas informações sobre o funcionamento das vacinas ainda não foram totalmente explicadas pelos laboratórios que desenvolvem os fármacos – como a dimensão da imunização, por exemplo. Outros detalhes já dizem respeito à organização montada pelo Ministério da Saúde para garantir um programa ordenado de vacinação – desde a refrigeração adequada ao fármaco até o treinamento dos agentes de Saúde para sua aplicação.

Quais vacinas estão em fase de testes no Brasil 


FOTO: ISTOCK

No Brasil, quatro vacinas na fase 3 – a que abrange a testagem em voluntários – tiveram estudos clínicos autorizados pela Anvisa: a de Oxford, desenvolvida pelo laboratório Astrazeneca e pela Fiocruz; a Coronavac, da Sinovac e Instituto Butantan, a Pfizer-Wyeth e a Janssen-Cilan, da Johnson & Johnson (atualmente em pausa para estudo de efeitos adversos).

As duas primeiras estão em fase de “submissão contínua”, o que permite que a Anvisa inicie a avaliação de dados do produto e de fases já concluídas da pesquisa enquanto outros dados são gerados para compor um dossiê final, afirmou a agência em nota a CartaCapital. “Para ambos, a Anvisa já avaliou os dados submetidos e emitiu exigências às empresas para complementação de informações e dados”.

Até o momento, o Ministério da Saúde tem acordos com os dois estudos. O anúncio mais recente é de terça-feira 20, quando a pasta confirmou a compra de 46 milhões de doses da Coronavac para o SUS.

Nomeada de “vacina [contra coronavírus] mais segura do mundo” pelo diretor do Butantan, Dimas Covas, por seus bons demonstrativos relacionados aos efeitos colaterais, a Coronavac ainda precisa apresentar os resultados de eficácia em relação à geração de anticorpos. Isso só vai acontecer quando 61 voluntários forem infectados pelo coronavírus – uma fração de segurança que deve ser atingida entre novembro e dezembro, espera Covas.

A Anvisa afirma que “não existe uma eficácia mínima necessária definida por resolução da Anvisa para registro de vacinas no Brasil”, e que este ponto depende do contexto de cada doença. No caso da Covid-19, por exemplo, o órgão afirma que há um debate em torno de uma eficácia de 50%.

“O que se vem discutindo entre as autoridades reguladoras é considerar aceitável para uma vacina contra a Covid-19 uma eficácia geral de 50%, garantindo-se que a maior parte da população atinja uma eficácia mínima considerada importante para a saúde pública”, afirmam. “Ressaltamos que essa é uma discussão global e que qualquer decisão será tomada a partir do compartilhamento e conhecimento dos dados”.

Nesse cenário, é possível afirmar que uma vacina eficiente contra o coronavírus será aprovada até o fim do ano? E há riscos de influências políticas ou entraves burocráticos entrarem no meio do aval final a um fármaco seguro?

Para responder a essas questões, CartaCapital entrevistou José Cássio de Moraes, doutor em Saúde Pública e professor da Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo, que também já atuou como consultor na Anvisa para o registro de novas vacinas e é membro do comitê técnico do Sistema Nacional de Imunização, integrado ao Ministério da Saúde. Confira:


CartaCapital: Para além das discussões recorrentes sobre a eficácia das vacinas que estão em fase 3, a discussão também gira em torno do tempo útil de análise pela Anvisa até a liberação. Como funciona isso dentro da agência? Poderia me dar um panorama do processo?

José Cássio de Moraes: Para uma vacina de interesse público, como no caso da Covid e de outras, a Anvisa se propõe a acompanhar principalmente a realização da fase 3. Os produtores mandam toda uma documentação para a Anvisa, justificando pelos dados das outras fases que pode ser uma vacina protetora e com certa segurança. Esse protocolo, além de ser aprovado no CONEP (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa), também é avaliado enquanto um protocolo de pesquisa.

Com isso, [os técnicos] vão recebendo essas informações a respeito da segurança da vacina e a análise da eficácia dessa vacina – como em que faixas etárias foram feito esses estudos, a quantidade de doses, a análise da bula do medicamento. Também agendam uma visita à fábrica que produz a vacina para ver se há boas práticas de produção, se há condições de higiene e técnicas, por exemplo, ou como é feita a inativação do vírus.

No caso da Covid-19, como é uma vacina produzida em ritmo muito rápido, as agências que fazem o controle de vacinas estão estabelecendo algumas regras para poder fazer a análise. A FDA (Food and Drug Administration, agência dos Estados Unidos) já publicou um documento de 18 páginas dizendo mais ou menos o que eles vão exigir – qual o aspecto de produção, de consistência do lote. Por exemplo, quanto tempo de acompanhamento deve ter o indivíduo após ter recebido a 2ª dose? A FDA estabeleceu que no mínimo 2 meses para ver a eficácia e 1 mês para verificar eventos adversos.

Que eu saiba, a Anvisa não colocou ou deu publicidade a que pontos ela vai abordar. Então a gente ainda não conhece. Normalmente, as análises da Anvisa faz são sérias e adequadas, e o que a gente espera agora é que não tenha nenhuma influência política nessa análise.

CartaCapital: Quais seriam as consequências de uma “influência política”? O que você quer dizer com isso?

José Cássio de Moraes: A Anvisa faz parte de uma comissão internacional de avaliação de produtos. Um produto avaliado pela Anvisa tem facilidade de ser aceito pela FDA, EMA e vice e versa, porque já tem o aval de uma agência regulatória que cumpre todos os requisitos.

Se [uma agência] fizer um tipo de avaliação não correta, com influência política, isso compromete a acreditação que a Anvisa tem hoje no cenário internacional a respeito da avaliação de produtos.

A Anvisa é formada por cinco diretores com mandato. Foram aprovados recentemente três diretores pelo Senado. Isso é indicado pelo presidente e aprovado pelo Senado. Eles têm mandato fixo. Quanto muda de presidente, não pode simplesmente tirar as pessoas que fazem parte dessa diretoria.

O importante seria que a Anvisa declarasse os critérios para análise. Um exemplo é o que acontece na FDA: a reunião que faz a avaliação e o julgamento final de um produto é aberta. As pessoas não têm direito a voto, mas de ouvir o que as pessoas estão falando. O que é segredo de produção não é aberto, mas os resultados clínicos e de segurança sim. Tem um parecer, e esse parecer é analisado e aprovado, e é uma discussão aberta. Qualquer pessoa pode se inscrever e, se quiser, pode encaminhar perguntas.

A Anvisa não tem isso, mas tem que escrever muito bem uma justificativa do porquê da aceitação ou não, e tem que ter um cronograma de casos. Ou seja, após receber todos os produtos, em 30 dias ou 60 dias, eu dou um parecer para não ficar empurrando com a barriga ou exigir documentos a mais. Senão para enrolar é fácil. Pede um documento, pede outro, e cai na burocracia fácil.

CartaCapital: Tem algum histórico disso ter acontecido?

José Cássio de Moraes: Na área de vacina, que a gente acompanha mais de perto, não. Nunca soube que houve essa situação de empurrar a decisão. As empresas [farmacêuticas] já conhecem essas exigências e têm funcionários especializados nessa questão da agência regulatória. Normalmente, elas já apresentam toda a documentação.

Isso dá uma validação das decisões que a Anvisa toma e gera mais segurança para a população, mais confiança. É um patrimônio que não se pode perder porque, se perder, é muito difícil recuperá-lo depois.


BROCHE EM FUNCIONÁRIO DA ANVISA. FOTO: FERNANDO FRAZÃO/AGÊNCIA BRASIL

CartaCapital: No dia 30 de setembro, o gerente-geral de medicamentos e produtos biológicos da Anvisa, Gustavo Mendes Lima Santos, falou que a agência pode flexibilizar os critérios de eficácia para aprovação de uma vacina contra a Covid-19 com 50% de eficácia mínima em vez de 70%. Você acha que esse é um caminho plausível?

José Cássio de Moraes: Isso é separado em dois aspectos: um é para você impedir a transmissão e outro é para evitar casos graves.

A vacina da gripe previne 20 a 30% a infecção das pessoas pelo vírus da gripe, mas tem uma proteção maior contra as formas graves. O objetivo da vacina seria não impedir a transmissão, mas impedir formas graves – esse é o objetivo da vacina da influenza ou do rotavírus humano aplicado em crianças.

As vacinas em teste certamente não estarão prontas até o final deste ano. Em 2020, acho que não será aplicada nenhuma dose de vacina em qualquer grupo

Outras vacinas tem o papel de eliminar a transmissão. Quando você toma a vacina do sarampo, não vai transmitir mais o sarampo para outras pessoas, por exemplo. Tem que se analisar ao que a vacina se propõe. Para isso existem as exigências para verificar se ela elimina a transmissão ou se ela evita um caso grave. E sempre depende da força de transmissão.

Uma vacina de sarampo, com 70% [de eficácia mínima] é insatisfatório, porque para cada caso de sarampo, uma pessoa infectada transmite para 18 pessoas. Na Covid, não há essa transmissão para 18 pessoas – o máximo que se conseguiu foi 1 para 4, então pode ter uma eficácia menor. Depende um pouco dessa capacidade de transmissão que tem o agente. Se é uma forma grave, por exemplo, como a gripe, a eficácia de 60% para evitar forma grave já é um dado importante principalmente em gestantes, pessoas com comorbidades, idosos. Tudo isso depende do objetivo da vacina.

É preciso se perguntar: o que você pretende com essa vacina? Aí você pode analisar se esse objetivo foi cumprido ou não, se foi um estudo bem feito, se a avaliação do desfecho final que você pretende foi bem medido. Se o desfecho final é evitar a transmissão, você tem que comprovar isso. Se é evitar casos graves, também.

Sobre a Coronavac, por exemplo, esses objetivos ainda não foram publicizados. Mas o mais provável é que vai ser para evitar casos graves porque a análise de transmissão é mais complicada. É uma análise que demora mais tempo para ser feita.

As vacinas em teste certamente não estarão prontas até o final deste ano. Em 2020, acho que não vai ser aplicada nenhuma dose de vacina em qualquer grupo que seja.

CartaCapital: A Anvisa também faz parte da estratégia de distribuição de vacinas ao redor do País? Se houver um acordo de produção nacional de uma vacina, por exemplo, qual é a estrutura mobilizada dentro do ministério?

José Cássio de Moraes: A Anvisa participava da comissão de imunização, e, depois que a vacina é liberada, parte para um comitê do Ministério da Saúde, o CONITEC. Depois, passa para o Programa Nacional de Imunização, que vai definir os grupos alvos, quando vai começar, qual estratégia será feita.

É um programa complicado, porque [para a Covid] são duas doses, e geralmente vacina de campanha é de uma dose só. Tem que aproveitar a rede de distribuição que já existe para as outras vacinas, comprar seringa e agulha, treinar as pessoas para aplicação, ter vigilância dos eventos adversos – a chamada fase 4 da doença, que é analisar os impactos da vacina.

Serão necessárias cerca de 500 milhões de doses para imunizar todo mundo. Não vai ter essa produção [rápida] nunca, nenhum laboratório tem condições disso. Não se produz uma vacina do mesmo jeito que uma aspirina

A gente tem essa tradição. Nós temos o programa mais amplo do mundo. A única vacina não incluída no Plano Nacional de Imunização é a vacina da meningite-B. Todos os demais, o setor privado ou público, tem acesso a todas as vacinas.

Tem que ter um planejamento muito bom para evitar invasão de centro de saúde, e o ideal é que se tenha uma política nacional . Se vacinar São Paulo e não o resto do Brasil, por exemplo, vai ter invasão no estado de SP pra ter vacina, e a perda do caráter do PNI, que é universal, descentralizado, equitativo.

Serão necessárias cerca de 500 milhões de doses para imunizar todo mundo. Não vai ter essa produção [rápida] nunca, nenhum laboratório tem condições disso. Não se produz uma vacina do mesmo jeito que uma aspirina.

CartaCapital: Você se sente positivo sobre a execução correta de todas essas fases?

José Cássio de Moraes: A gente tem uma experiência em fazer essas campanhas. Essa tem uma dificuldade maior porque são duas doses. Já tem uma rede de frios – para a conservação da vacina -, 36 mil postos de vacinação, cada posto tem sua geladeira, existe uma estrutura de logística que permite a distribuição e conservação.

Lógico que tem dificuldade porque você tem uma redução de pessoas que trabalham no setor de saúde, isso faz com que a agilidade seja menor porque você tem uma queda de investimento no SUS. Parece que o SUS foi redescoberto esse ano por algumas pessoas.

Precisa ser muito bem planejado, e a população precisa ser informada sobre quando será vacinada, senão será um salve-se quem puder. Precisa ser [uma campanha] muito bem planejada e com uma boa estratégia de comunicação para convencer cada cidadão que estará incluído nessa ou naquela fase. A gente sabe que todo mundo tem a ansiedade de ser vacinado o quanto antes for possível, mas é inviável  não tem como vacinar 100 milhões de pessoas simultaneamente no País.

CartaCapital: Por mais que a vacina seja uma notícia muito esperada, ela não dá conta de resolver toda a situação. Na sua avaliação, o Brasil corre o risco de sofrer com uma ‘segunda onda’? Devemos ser afetados pela alta de casos na Europa e, ao mesmo tempo, a situação de grande flexibilização em diversos estados?

José Cássio de Moraes: Tudo indica que a vacinação não é a bala de prata. As hipóteses mais prováveis é que ela vai evitar casos graves – e isso já é esperança maior de todos nós, que é evitar o óbito. A gente não tem informações que ela vai evitar a transmissão.

Com isso, a gente precisa manter estratégias para atender e acompanhar a pandemia. As coisas não foram muito bem feitas aqui. A única coisa que a gente teve foi uma reorganização do SUS no atendimento dos casos mais graves, e em alguns estados aconteceu das pessoas ficarem dias para serem internadas.

O SUS precisa ser valorizado, e ele está em deterioração, com menos verba. Ele tem que ser reativado, sair da UTI para oferecer um atendimento melhor para a população, porque ele demonstrou sua importância

Todas as outras coisas que os outros países fizeram a gente não fez. A gente teve um distanciamento social meia boca. Em São Paulo, o máximo foi 50 ou 60%, e hoje você vê gente andando por aí sem usar máscara. A medida que a gente vai relaxando, a gente pode retornar a um aumento da prevalência da doença.

Na Europa, você teve uma fase, depois caiu bastante e agora está voltando de novo. É uma doença que tem chances de se manter, mas você pode minimizar e melhorar o controle dela adotando medidas mais adequadas, com uma política nem de minimização dos riscos e nem de maximização deles. Nós não tivemos uma organização boa para enfrentar essa pandemia.

Nós vimos a importância de ter o SUS. Imagina se não tivéssemos o SUS e as pessoas tivessem que pagar para ser atendidos. O SUS precisa ser valorizado, e ele está em deterioração, com menos verba, com crise já há muito tempo. Ele tem que ser reativado, reanimado, sair da sua UTI para oferecer um atendimento melhor para a população porque ele demonstrou sua importância.

A gente não saiu ainda da 1ª onda, a gente pode ter quedas, mas está num patamar elevado. 500 óbitos por dia não é um patamar bom. Por mais que antes a gente tivesse 1.000, mas mesmo 500 óbitos por dia é elevado. A gente precisa ver se essa queda é consistente, se vai permanecer por várias semanas.

Antes, em média, por óbito, você tinha 3.600 óbitos por dia por todas as causas. Hoje se tem 500 só de uma causa. Ainda é um patamar elevado. Vinte e cinco mil casos diários – isso com toda a pobreza de testagem que a gente tem, porque uma parte desse aumento da Europa foi devido a se organizar mais a questão da testagem.

É repórter do site de CartaCapital.

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