quinta-feira, 22 de outubro de 2020

49 anos depois, Stuart Angel Jones é candidato a vereador em Minas (pelo PSDB)

Stuart Angel e seu irmão, Tuty. Fotos: arquivo pessoal

O músico Ludwig van Beethoven teve um irmão mais velho, Ludwig Maria, que morreu seis dias depois de nascido em Bonn, na Alemanha, em 1769.


CYNARA MENEZES

Alguns psicanalistas especularam sobre o quanto afetou a psique do pintor Vincent Van Gogh o fato de ter tido um irmão mais velho, Vincent, que veio ao mundo natimorto em 30 de março de 1852, exatamente um ano antes dele nascer e de quem herdou inclusive o nome do meio, Willem. Além da possível luta interna sobre ser o “filho substituto”, Van Gogh teria se sentido “substituído” novamente quando seu querido irmão Theo nomeou o próprio filho como Vincent.


Salvador Dalí teve um irmão mais velho, Salvador, que morreu de meningite aos três anos de idade em 1903 e cuja lápide com seu nome inscrito nela assombrou a infância do pintor catalão como um jogo de espelhos entre a vida e a morte.
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“Retrato de Meu Irmão Morto”, Salvador Dalí, 1963

“Minha família fez uma coisa muito boa e muito terrível ao mesmo tempo: me deu o mesmo nome do meu irmão morto. Então eu, para diferenciar-me de meu irmão morto, teria que cometer todas estas excentricidades, para afirmar constantemente que eu não era aquele irmão morto, que eu era Dalí, o Dalí vivo”, disse o pintor em 1977.

Pouca gente sabe, mas, em setembro de 1972, um bebê mineiro recebeu o nome de seu irmão mais velho, Stuart Angel Jones, assassinado aos 25 anos, em maio de 1971, após ter sido arrastado por um jeep pelo pátio interno da base aérea do Galeão, com a boca no cano de descarga do veículo, torturado por lutar contra a ditadura militar no Brasil.

Sete meses após Stuart Angel ser capturado no Grajaú, o pai dele, o norte-americano-canadense Norman Angel Jones, separado da estilista Zuzu Angel desde 1960, e a mulher, Madalena, estavam gerando seu segundo menino. Já tinham Ulisses, com 6 anos. Um ano e quatro meses depois do desaparecimento de Stuart Angel no Rio de Janeiro, outro Stuart Angel nascia em Patos de Minas.

O irmão caçula do guerrilheiro “Paulo”, do MR-8, é candidato a vereador em Simão Pereira, bucólico município mineiro de 2500 habitantes, mais perto do Rio do que de Belo Horizonte. Não usa o nome do irmão, mas Tuty da Ambulância, apelido pelo qual é conhecido na cidade

Hoje, aos 48 anos, o irmão caçula do guerrilheiro “Paulo”, do MR-8, é candidato a vereador em Simão Pereira, bucólico município mineiro de 2500 habitantes, mais perto do Rio do que de Belo Horizonte, pelo PSDB. Não usa o nome do irmão, mas Tuty da Ambulância, apelido pelo qual é conhecido na cidade.

“A família era espírita”, conta Tuty, sobre a origem da ideia de batizá-lo com o nome do primogênito. “Meus pais foram no centro e a entidade falou: ‘Seu filho vai voltar para você’. O pai colocou o nome em mim como homenagem.” Fisicamente, é Ulisses quem se parece mais com Stuart Angel, não o xará.

A jornalista Hildegard Angel, filha de Zuzu e Norman, e portanto irmã de pai e mãe do primeiro Stuart (há ainda a mais nova, Ana Cristina), só conheceu os filhos de Madalena quando a mãe dela morreu, num acidente de carro em 14 de abril de 1976 na saída do Túnel Dois Irmãos (atual Túnel Zuzu Angel), que a Comissão da Verdade comprovou ter sido provocado pelos militares. A estilista dedicara a vida a investigar e encontrar os culpados pelo desaparecimento do primeiro “Tuti”, cujo corpo jamais foi encontrado. Segundo o depoimento de um capitão reformado da Aeronáutica à Comissão, Stuart Angel teria sido enterrado na cabeceira da pista da Base Aérea de Santa Cruz, no Rio.


Norman, Zuzu com Ana Cristina, Hilde e Stuart. Foto: acervo Instituto Zuzu Angel

O pai deles, Norman, morto em 1985, surge nas memórias dos filhos de ambos os casamentos como um personagem um tanto ausente, quase sempre de passagem, viajando muito. “Meu pai começou a percorrer o Brasil em seu serviço militar, trabalhando para a embaixada dos EUA, no Rio”, conta Hilde. “Ele comprava cristal de rocha para o governo norte-americano. Conhecia o Brasil inteiro, de Norte a Sul, capitais e interior. Queria viver no interior de Minas. Minha mãe, que nasceu em Curvelo e estudou em Belo Horizonte, onde conheceu meu pai, era fascinada pelo Rio de Janeiro. Desejava criar lá os filhos que tivessem.”

O primeiro Stuart nasceu em Salvador, onde Zuzu e Norman viveram após o casamento, com ele ainda envolvido com mineração. “Depois vieram para o Rio, onde minha irmã e eu nascemos. Este, eu acho, foi o pomo da discórdia do casal, pois papai se manteve trabalhando, viajando pelo interior (adorava a estrada), e vinha uma vez por mês, às vezes duas, para a casa no Rio.” Comento com Hilde que nunca havia ouvido falar do pai dela, só de Zuzu. “De fato, mamãe nos criou sozinha. A presença do meu pai em casa, mesmo quando casados, era esporádica. Contudo, ela sempre o elogiou na ausência, nunca o desmereceu. Ela o considerava um bom homem.”

“Meu pai e minha mãe não tinham divergências políticas, tinham divergências de escolhas de vida”, continua Hilde. “Meu pai admirava a luta de minha mãe na busca de Stuart, mas se preocupava com o risco de isso recair sobre mim e minha irmã. Ele também foi sequestrado e torturado pelos que procuravam Stuart, mas nunca me contou, nem contou esse fato, que foi revelado à família de Simão Pereira por um militar da região, depois da ditadura. Perdeu quase todos os dentes na tortura. Quando o vi de novo, com dentadura, ele disse que tinha arrancado porque não gostava de dentista.”

Além dos três filhos com Zuzu, dos dois com Madalena, e da filha de criação Abadia, Norman teve mais três de uma outra relação em Minas: Praxíteles, Gwendolyn e Edgar Bizagio Jones.


Abadia, Ulisses e Stuart 2. Foto: acervo pessoal

Quando deixou o Rio, Norman criou um abrigo de menores em Simão Pereira, a cidade onde Stuart quer se tornar vereador. Ali ajudou a criar mais de 50 meninos carentes que o chamavam “Pai Jones” e que são tratados como “irmãos do orfanato” por Tuty da Ambulância, como José Carlos de Jesus, o Carlinhos, cuja formação em Medicina muito orgulhava o gringo. “Todas as crianças foram crescendo, se formando. Eu, devido ao estudo, fui o último a sair. Foi um projeto social muito bonito, tirou muitas crianças da rua, do vício. Recebemos muito amor e ele jamais nos abandonou”, diz Carlinhos sobre o patriarca dos Angel Jones.

Tuty me conta que, adolescente, se interessou por política, se filiou ao PT e foi “cara-pintada” em Brasília durante o impeachment de Fernando Collor, em 1992. Depois, desencantou-se e só voltou a se interessar novamente agora, para combater o grupo bolsonarista do prefeito da cidade. Por que o PSDB? “Pela oportunidade. O PT não lançou candidato aqui. Tenho o sangue para o lado da esquerda, por tudo que a gente passou. Gosto muito de alguns ideais da esquerda”, diz. “Mas eu não sou ligado a partidos, me sinto estranho em relação a isso.”

“Quando era adolescente, cheguei num ponto de jurar vingança. Mas tirei esse pensamento da minha cabeça. Sangue gera sangue. Percebi que iria me igualar aos algozes do Stuart”

O candidato desconversa quando pergunto por que se afastou do PT. Diz que não aceitava “a política de alianças”. Mas seu perfil no facebook entrega que, pelo menos durante o processo de impeachment de Dilma Rousseff, foi seduzido pelo clima hostil à esquerda no país. Há postagens em defesa do “escola sem partido” e compartilhamentos de postagens anti-Lula de perfis reacionários, como o Endireita Brasil. Antes de 2015, suas postagens públicas focavam mais no questionamento de pastores e do fundamentalismo religioso.

–Você não seria capaz de entrar para a luta armada como Stuart, então?, pergunto.

–Pelo contrário. Seria, sim. Não posso negar que minha entrada na política seja por causa disso. Quando era adolescente, cheguei num ponto de jurar vingança. Mas tirei esse pensamento da minha cabeça. Sangue gera sangue. Percebi que iria me igualar aos algozes do Stuart.

Stuart conta que o velho Norman, apesar de ser uma pessoa fechada, deixava transparecer tristeza com o assassinato bárbaro do filho mais velho. “Ele poupava a gente dessas coisas. Mas uma vez foi chamado para uma festa e, na casa onde tinha essa festa, os pés das árvores eram pintados de branco. Ele falou que não ia porque aquilo lembrava o quartel e o quartel lembrava a morte do filho dele. Eu era pequeno e isso me marcou”, lembra Tuty. “Ele colocava uma cadeira em frente à praça –nossa casa é bem na praça– e você via tristeza nele, sim. Não era um homem que você podia falar ‘um homem feliz’. Carregava uma dor. Ele falava muito bem do Stuart, mas não levava a conversa adiante.”

Tuty, o candidato, faz sua campanha eleitoral através de vídeos que dispara pelo whatsapp aos moradores de Simão Pereira, e onde aparece caminhando pela cidade, às vezes acompanhado da trilha sonora de passarinhos e cigarras, mostrando lugares e falando de seus projetos, inclusive na praça que o pai apreciava contemplar: os brinquedos do parquinho, uma pista de corrida, uma ciclovia, um campinho de futebol… Tudo muito simples, direto e afetuoso.

“Stuart 2 não teve a formação ideológica de Stuart 1, mas a dedicação e o amor ao próximo são os mesmos. Stuart 2 é tão modesto quanto Stuart 1, que não se preocupava com vaidade e bens, não tinha mais roupas do que precisava, nem sapatos”, conta Hildegard Angel

“Os Stuarts têm grande semelhança nos valores humanos. Stuart 1 era um homem bondoso, como Stuart 2 é também. Ambos igualmente honestos, característica sempre cultivada por nosso pai e também pelas mães. Stuart 2 não teve a formação ideológica de Stuart 1, mas a dedicação e o amor ao próximo são os mesmos. Stuart 2 é tão modesto quanto Stuart 1, que não se preocupava com vaidade e bens, não tinha mais roupas do que precisava, nem sapatos. Quando nossa mãe quis lhe dar um carro, recusou. E outra característica marcante de ambos é a de tratar a todos igualmente”, compara Hildegard.

Stuart 2, como diz Hilde, conta que a irmã jornalista quis que ele fosse estudar na Alemanha, que tivesse cidadania canadense, e o levou para morar no Rio, onde chegou a trabalhar na empresa do cunhado, Francis. “‘Você é um bichinho do mato, vou te transformar num bichinho da cidade’, ela dizia. Mas eu gosto de ser bichinho do mato”, ri Tuty.

“Quando Stuart tinha 18 anos”, conta Hilde, “Madalena, sua mãe, me procurou, porque ele queria ir para os EUA, se eu podia ajudar. Nosso tio, também Stuart, estava disposto a receber Stuart sobrinho em sua casa, na Flórida, hospedando-o por um ano. No entanto, ele não falava inglês nem parecia muito desejoso de aprender. Seu amor eram as plantas e os animais. No tempo em que ficou morando conosco, ele fez vários canteiros de horta –uma beleza!– e construiu e montou um galinheiro.”


Norman, Madalena, Tuty e Ulisses. Foto: acervo pessoal

A história do primeiro Stuart Angel Jones permaneceu nebulosa para seu irmão e homônimo até a adolescência. Não foi pelo pai que Stuart soube da vida trágica de seu antecessor, mas por comentários esparsos dos “irmãos” no orfanato. Foi só depois dos 19 anos, quando morou com Hildegard, que ficou conhecendo todos os detalhes.

Quero saber de Tuty da Ambulância se, a exemplo das figuras históricas que receberam o nome de um irmão que se foi, isto teve um peso em sua vida. “É um pouco forte. Cresci realmente com um peso. Você tem o nome de uma pessoa que se deu, se doou, que foi morto de uma forma terrível, pela liberdade de um país. Cresci na pressão de ter o nome de alguém que foi importante para o Brasil e de poder honrar esse nome com as pequenas atitudes. Isso pesou, sim, em minhas atitudes, minhas escolhas”, diz. “Se ele aguentou tudo aquilo, eu não podia recuar.”


Uma nova forma de fazer jornalismo. Cultura, política, feminismo, direitos humanos, mídia e trabalho. Editora: Cynara Menezes




Revista Forum

 







































Alzheimer na periferia: sob olhar dos cuidadores, documentário expõe impacto da doença na vida das famílias

Vencedor de seis prêmios, longa-metragem brasileiro está disponível de forma gratuita no YouTube


19 de outubro de 2020, 12:15 h Atualizado em 19 de outubro de 2020, 13:00

Por Cristiane Bomfim, da Agência Einstein - De acordo com estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Alzheimer é o tipo mais comum de demência, representando cerca de 70% de todas elas. Mesmo assim, a doença ainda é considerada um tabu. “É algo que ninguém quer ver, ninguém quer falar. E quando o assunto é abordado, é sempre do ponto de vista médico ou a partir de relatos que não condizem com a realidade da maioria da população. A falta de informação é tão grande que ainda hoje não temos dados concretos de quantas pessoas têm a doença”, afirma Jorge Félix, gerontólogo e professor da Universidade de São Paulo (USP). Para ampliar a discussão do tema e, principalmente, mostrar as dificuldades reais de pacientes com a doença e seus cuidadores, desde setembro está disponível no YouTube o premiado documentário “Alzheimer na Periferia”. Produzido pela Malabar Filmes a partir do argumento original de Jorge Félix, o longa metragem conta a história de cinco famílias da periferia de São Paulo que convivem diariamente com a doença.

“O que mais faz falta na minha vida hoje é o trabalho. Quando eu tive que vender as lojas e parar de trabalhar para cuidar das minhas tias, eu fiquei muito deprimido, porque é horrível você não ter trabalho. Principalmente de segunda-feira, quando eu ouço as pessoas se levantarem, ligarem os carros e irem trabalhar”. Desde que descobriu que sua tia Leonor tinha Alzheimer, o administrador de empresas Paulo Saudek teve de tomar a difícil decisão de vender as lojas da família e abandonar o trabalho para se tornar cuidador em tempo integral. A escolha lhe rendeu a solidão e o consumo excessivo de álcool e cigarro. Ele terminou os poucos namoros que teve para não abandonar a tia com Alzheimer e a mãe já idosa. Nunca se casou e pouco saía de casa. Assim como ele, outros quatro personagens centrais escolhidos para o documentário contam como suas vidas mudaram quando um familiar recebeu o diagnóstico da doença. 

“A proposta era que o documentário tivesse utilidade pública. O que me apaixonou na ideia do Jorge era a possibilidade de contar essa história de uma forma mais poética e humana e menos jornalística para que chegasse ao maior número de pessoas possível. Nosso critério foi a diversidade de dores”, explica Albert Klinke, diretor do longa-metragem. Logo nas primeiras conversas sobre o projeto dois importantes aspectos que conduziriam o trabalho foram definidos: a cidade de São Paulo como protagonista no tratamento da doença e o destaque para as impressões e sentimentos dos cuidadores.

A cidade, o cuidador e os sentimentos de culpa e frustração

As cinco famílias escolhidas entre mais de cem entrevistadas moram nas periferias da capital paulista: Cidade Dutra e Jardim Imbé, na zona sul e ainda Vila Nova Brasilândia, bairro do Limão e Brasilândia, na zona norte. “Queríamos mostrar as dificuldades de locomoção e acesso aos equipamentos de saúde e assistência social vividos por uma maioria da população, as adaptações das casas e autoconstruções feitas com pouco dinheiro para tentar facilitar o dia a dia. Apesar de a doença estar espalhada, estes serviços estão concentrados no centro e nos melhores bairros”, afirma Jorge Félix. 

Soma-se a isso o papel fundamental e difícil dos cuidadores que na maioria das vezes é deixado de lado nas reportagens, nos filmes e novelas. “O documentário mostra o desgaste do cuidador em muitos aspectos. O que permeia tudo é sempre a frustração. São pessoas que têm de abrir mão das suas vidas, do que gostam de fazer, do trabalho, do namoro”, continua o gerontólogo.

“É difícil, mas é aquele ditado: comeu a carne, agora rói o osso. Eu fico com dó de ver ele assim. Às vezes eu perco a paciência com ele. E minhas filhas dizem que eu preciso sair, mas eu fico com dó de deixá-lo (sozinho). E todos os lugares que vou, levo ele”. Em desabafo, Maria José Pereira, cuidadora do marido Daniel Alves Pereira desde a descoberta do Alzheimer, conta com lágrima nos olhos, que após oito anos de relacionamento, a doença se manifestou. “Tudo se acaba”. A vida passou a ser em função do companheiro: banho, comida na boca, consultas médicas, fisioterapia, atenção nos remédios.




Vencedor de seis prêmios – entre eles o My True Story Film Festival, dos Estados Unidos –, “Alzheimer na Periferia” estreou em 2018 em poucas salas de cinema. “Tivemos muita dificuldade para divulgar o filme e recebemos muitas negativas. Então optamos pelo caminho alternativo e contamos com a ajuda das universidades e dos professores”, conta Albert Klinke. Agora, disponível na internet, os idealizadores esperam atingir mais pessoas. “É preciso difundir o assunto porque a população está envelhecendo. Não podemos esconder embaixo do tapete. Em muitos bairros da periferia, a palavra Alzheimer não existe e a pessoa com a doença é chamada de gagá, de demente. Isso faz com que as pessoas não procurem médico, com que o diagnóstico seja tardio e que a procura pelos medicamentos oferecidos de graça pelo SUS (Sistema Único de Saúde) seja baixa”, pondera o gerontólogo.

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Até o FMI discorda de Guedes!

O conhecido complexo de viralatas das elites tupiniquins parece ter um limite. Os elogios e a incorporação das receitas e práticas vindas do centro do financismo esbarram no quesito redução das desigualdades e no chamamento a oferecer algum tipo de contribuição (pedir “sacrifício” seria mesmo um exagero) para o futuro do País


20 de outubro de 2020, 17:26 h

A profundidade e o ineditismo da crise social e econômica, em razão da pandemia do coronavírus, tem provocado a ampliação de um certo consenso em torno das medidas de política econômica necessárias para fazer face às dificuldades da conjuntura. Porém, há muito tempo sabemos da recusa do superministro da economia em encarar o problema da forma com que a gravidade do momento exige.

Paulo Guedes permanece alheio à trágica realidade que o Brasil enfrenta e mantém o discurso irresponsável do personagem austericida fiscalista a todo custo. De acordo com sua visão conservadora, tudo será resolvido no tempo certo, a partir da simples conjugação das forças de mercado. Basta esperar que a articulação dos vetores do lado da oferta se articulem com aqueles relativos à demanda para que o equilíbrio mágico seja enfim atingido. Porém, a realidade é muito mais complexa do que esses modelitos ultrapassados da ortodoxia neoliberaloide. 153 mil mortes pela doença? Desemprego superior a 13 milhões de pessoas? Maior recessão da História prevista para o presente ano? Esses dados pouco importam na cabeça de planilha.

O old chicago boy mantém uma verdadeira obsessão com a questão do garrote fiscal. Antes mesmo do surgimento da covid 19, Guedes anunciava sua disposição em manter as bases da austeridade herdada do trabalho sujo efetuado pela duplinha Temer & Meirelles entre 2016 e 2018. Em especial, refiro-me à EC 95. Foi por meio dessa aberração que ficou estabelecido no texto constitucional o congelamento das despesas não financeiras do orçamento público pelo longo período de 20 anos. Entenda-se a proibição de aumento nos gastos com saúde, assistência social, educação, previdência social e outras rubricas consideradas secundárias pelo mestre. A única autorizada a crescer sem limites refere-se aos recurso para pagamento de juros da dívida.

Flexibilizar o austericídio é a regra lá fora.

No entanto, a realidade das economias dos próprios países desenvolvidos sofreu um grande baque a partir dos efeitos necessários ao combate da pandemia. A novidade reside na combinação de exigências múltiplas no plano de políticas públicas. A chegada da crise coloca na pauta, de forma urgente, medidas na área da saúde e da pesquisa, com o objetivo imediato de impedir o alastramento da doença e do contágio. Por outro lado, passam a ser também emergenciais decisões para atenuar os efeitos sobre a população mais carente e que teve suas condições de vida e trabalho bastante afetadas negativamente. Além disso, as autoridades econômicas desses países reconhecem a importância de medidas de auxílio às empresas, como isenção e desoneração tributária ou ainda subsídios na concessão de empréstimos e financiamentos.

Ora, não é difícil imaginar como esse conjunto de opções afeta diretamente as finanças públicas. Trata-se de elevações das despesas governamentais em uma conjuntura onde a redução das atividades econômicas de forma generalizada tende a reduzir também as receitas tributárias. Mas esse descompasso conjuntural das contas governamentais não pode servir como argumento para a paralisia da ação do Estado em um momento crucial. Aqui entra em cena a abordagem que fala da necessidade de medidas contracíclicas, ainda que isso vá contra a noção do senso comum de que não se poderia gastar ainda mais quando o déficit já é alto. Essa é uma das muitas diferenças de essência entre um indivíduo, uma família ou mesmo uma empresa em relação ao Estado. Este último tem uma série de capacidades que permitem adiantar recursos sob a forma de impostos, endividamento público, emissão monetária e outros instrumentos de política econômica.

O problema é que a ortodoxia nunca aceitou esse tipo de alternativa. Assim, as políticas oficiais de governos comandados por esse tipo de coalizão ou mesmo as agendas dos organismos multilaterais quase nunca incluíam esse tipo de medida. Tudo começou a mudar com a crise de 2008/9, quando houve um importante movimento de flexibilização dessa pauta da austeridade nos Estados Unidos e mesmo na União Europeia. A retomada do crescimento econômico e a tentativa de evitar a quebra de grandes conglomerados internacionais da área industrial e financeira foram a tônica de medidas que deixariam qualquer adepto do financismo de cabelo em pé até a véspera de seu anúncio.

Até o FMI se rende às evidências.

Agora em face da crise da pandemia, volta à cena esse debate a respeito da necessidade de alternativas que provocam aumento da despesa e do endividamento públicos. Os governos estão adotando esse tipo de medida, muito em função da emergência do momento e sem que esse novo “consenso” tenha sido objeto de reflexões mais fundamentadas. A agenda foi sendo tocada ao ritmo de um grande pragmatismo, ditado pela urgência da crise.

O inesperado para o momento foi a entrada do Fundo Monetário Internacional (FMI) no centro do palco. Essa instituição sempre foi conhecida pelo seu profundo enraizamento junto aos interesses do financismo global, com a consequente orientação de política econômica enviesada pelo conservadorismo e pela ortodoxia. Mas eis que o Fundo acaba de divulgar a edição de outubro do documento “Informes de perspectivas da economia mundial”, com algumas análises e recomendações bastante distintas de sua conhecida linha de defesa do establishment. O texto não esconde sua preocupação com a gravidade do momento e aponta saídas que não combinam em nada com o receituário tradicional do FMI. Pelo contrário, ali está explicitada a proposta de que o mais ricos passem a contribuir para os cofres públicos de seus países:

(...) “Ainda que seja difícil a adoção de novas medidas de receitas fiscais durante a crise, os governos talvez devam colocar-se a possibilidade de incrementar os impostos progressivos aplicados aos agentes do setor privado mais privilegiados e aos setores que estejam relativamente menos afetados pela crise (por exemplo, elevando as alíquotas de impostos para as categorias de renda mais alta, para as propriedades mais valiosas, para os ganhos de capital e os patrimônios), assim como a possibilidade de modificar a tributação das empresas para garantir que as mesmas paguem impostos de acordo com seus ganhos. Os países também deveriam cooperar com o desenho da tributação internacional das empresas para responder aos desafios da economia digital.” (...)

Em outra passagem, o documento reconhece a necessidade de flexibilizar as medidas de austeridade fiscal em razão da emergência da crise da pandemia. Assim, sugere que as mesmas sejam suspensas, ainda que provisoriamente.

(...) “Se as regras fiscais limitam a margem de manobra, a situação oferece justificativas para suspendê-las provisoriamente, comprometendo-se por sua vez a seguir uma trajetória gradual de consolidação uma vez superada a crise, para restabelecer o cumprimento das regras no médio prazo. Poderia ser criada uma margem de manobra para as necessidades imediatas de gasto, priorizando as medidas adotadas contra a crise e reduzindo os subsídios improdutivos e mal focados” (...)

Seria mesmo ingenuidade imaginar que tal mudança na orientação do FMI se deva alguma transformação mais profunda em sua estrutura ou suas funções. Mas o fato é que o inédito da situação e a gravidade da crise leva seus membros a refletirem o receio de consequências incontroláveis caso nada seja feito. Há riscos de amplificação dos efeitos da pandemia e da recessão. As previsões do órgão falam em -5,8% de queda no PIB das economias desenvolvidas, -8,3% no espaço europeu e -4,3% nos Estados Unidos. O único país na lista a oferecer crescimento econômico em 2020 é a China, com 1,9%. Ora, frente a essa quadro de descalabro, o FMI parece ter preferido ceder no principismo doutrinarista para reduzir as perdas no mundo capitalista. 

Baile da Ilha Fiscal, versão 2020

Ora, no Brasil esse tipo de impedimento atende pelo nome de EC 95 e o conjunto de medidas implementadas pela equipe de Paulo Guedes, cujo foco no balanço fiscal é obtuso e irredutível. O responsável pela equipe econômica parece pouco disposto a aceitar alguma flexibilização em sua agenda de destruição do Estado e desmonte das políticas públicas.

O conhecido complexo de viralatas das elites tupiniquins parece ter um limite. Os elogios e a incorporação das receitas e práticas vindas do centro do financismo esbarram no quesito redução das desigualdades e no chamamento a oferecer algum tipo de contribuição (pedir “sacrifício” seria mesmo um exagero) para o futuro do País. Abrir mão de sua tradicional arrogância e concordar com a tributação da renda e do patrimônio dos super ricos não combina com sua postura desde os tempos coloniais. Arejar suas mentes e aceitar alguma flexibilização no ideário importado da ortodoxia já ultrapassada tampouco lhes parece razoável.

Essa é a razão pela qual segue o Baile da Ilha Fiscal em sua versão do século XXI. Nossas classes dominantes preferem seguir obedientes às senilidades demenciais de Paulo Guedes, enquanto pelo mundo afora suas congêneres parecem ter aprendido a dançar pelo ritmo que o próprio FMI incorporou em sua última atualização de músicas recomendadas.

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Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal


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Justiça do Trabalho determina reintegração de bancários demitidos durante a pandemia

Justiça trabalhista tem concedido liminares para que os bancários demitidos durante a pandemia sejam reintegrados aos seus postos de trabalho. O principal argumento é que os maiores bancos privados do país assumiram compromissos públicos de evitar demissões durante a crise


22 de outubro de 2020, 08:49 h Atualizado em 22 de outubro de 2020, 08:49

247 - A Justiça trabalhista tem concedido liminares para que os bancários demitidos durante a pandemia sejam reintegrados aos seus postos de trabalho sob o argumento de que os três maiores bancos privados do país assumiram compromissos públicos de evitar demissões durante o período. Segundo reportagem do jornal Valor Econômico, neste ano foram distribuídos 11.087 processos trabalhistas contendo os termos pandemia e reintegração. Deste total, 417 foram contra o Santander, 283 contra o Bradesco e outras 177 contra o Itaú Unibanco.

De acordo com um levantamento realizado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (Contraf-CUT), somente o Santander teria demitido 1,1 mil funcionários desde o mês de junho. Já o Itaú Unibanco teria demitido outros 130 trabalhadores desde o início de setembro. O Bradesco teria desligado outros 566 bancários somente em outubro. Segundo a presidente da Contraf, Juvândia Moreira, o volume de demissões pode ser ainda maior, uma vez que nem todas são homologadas pelos sindicatos desde que a reforma trabalhista entrou em vigor. 

Ouvida pela reportagem, a advogada Cristina Stamato, do Stamato, do Saboya & Rocha Advogados Associados, ressalta que os processos pela reintegração dos trabalhadores estão lastreados no compromisso assumido pelos três maiores bancos privados do país, em reunião com a Federação Nacional dos Bancos (Fenaban), de que não seriam realizados cortes de pessoal durante a pandemia. “Apesar de não estar em acordo coletivo, foi assumido não só nos meios de comunicação, como nos informes aos acionistas, o que gera uma obrigação com os funcionários”, disse. 

Cristina, que atua junto ao Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos Bancários de Nova Friburgo e o de Niterói e Região, diz ter ajuizado 32 ações de reintegração de trabalhadores, tendo obtido liminares favoráveis em seis e negativas em sete. Ela afirma que vai recorrer. Uma outra alegação é que os bancos registraram lucros mesmo durante a crise. 

“De acordo com levantamento do Valor Data, com base nas demonstrações financeiras das instituições, o Itaú Unibanco teve lucro líquido de R$ 8,1 bilhões no 1º semestre de 2020. Uma queda de 41,6% do lucro obtido no mesmo período de 2019 (R$ 13,9 bilhões). O Bradesco registrou R$ 7,6 bilhões, uma queda de 40%, em relação ao 1º semestre do ano passado (R$ 12,7 bilhões), e o Santander teve R$ 6 bilhões de lucro, ante os R$ 7,1 bilhões no primeiro semestre de 2019, queda de 15,9 %”, diz a reportagem.

A Federação Brasileira de Bancos (Febraban), porém, diz que o volume de ações entre janeiro e setembro é 47,42% inferior ao apontado no mesmo período de 2019 e que a judicialização trabalhista do setor é a menor já registrada. Ainda segundo a entidade, as ações de reintegração estão dentro da normalidade. 

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O negacionismo, o gatopardismo e o transicionismo

"O transicionismo, apesar de ser uma posição por agora minoritária, é a posição que me parece carregar mais futuro e menos desgraça para a vida humana e não humana do planeta", escreve o professor Boaventura de Sousa Santos


21 de outubro de 2020, 12:31 h Atualizado em 21 de outubro de 2020, 13:02

A pandemia do novo coronavírus veio pôr em causa muitas das certezas políticas que pareciam consolidadas nos últimos quarenta anos sobretudo no chamado Norte global. As principais certezas eram: o triunfo final do capitalismo sobre o seu grande concorrente histórico, o socialismo soviético; a prioridade dos mercados na regulação da vida não só económica como social, com a consequente privatização e desregulação da economia, das políticas sociais e a redução do papel do Estado na regulação da vida colectiva; a globalização da economia assente nas vantagens comparativas na produção e distribuição; a brutal flexibilização (precarização) das relações de trabalho como condição para o aumento do emprego e o crescimento da economia. No seu conjunto, estas certezas constituíam a ordem neoliberal.

Esta ordem alimentava-se da desordem na vida das pessoas, sobretudo das que chegaram à vida adulta durante estas décadas. Basta recordar que a geração dos jovens que entrou no mercado de trabalho na primeira década de 2000 já conheceu duas crises económicas, a de 2008 e a atual crise decorrente da pandemia. Mas a pandemia significou muito mais que isso. Mostrou, nomeadamente, que é o Estado (e não os mercados) que pode proteger a vida dos cidadãos; que a globalização pode colocar em perigo a sobrevivência dos cidadãos se cada país não produzir os bens essenciais; que os trabalhadores com empregos precários são os mais atingidos por não terem qualquer fonte de rendimento ou proteção social quando o emprego termina, uma experiência que o Sul global conhece há muito; que as alternativas social-democratas e socialistas voltaram à imaginação de muitos, não só porque a destruição ecológica causada pela expansão infinita do capitalismo atingiu limites extremos, como porque, afinal, os países que não privatizaram nem descapitalizaram os seus laboratórios parecem ter sido os mais eficazes na produção e mais justos na distribuição de vacinas (Rússia e China). 

Não admira que os analistas financeiros ao serviço dos que criaram a ordem neoliberal prevejam agora que estamos a entrar numa nova era, a era da desordem. Compreende-se que assim seja uma vez que não sabem imaginar nada fora do catecismo neoliberal. O diagnóstico que fazem é muito lúcido e as preocupações que revelam são reais. Vejamos alguns dos seus traços principais. Os salários dos trabalhadores no Norte global estagnaram nos últimos trinta anos e as desigualdades sociais não cessaram de aumentar. A pandemia veio agravar a situação e é muito provável que dê azo a muita agitação social. Neste período, houve, de fato, uma luta de classes dos ricos contra os pobres e a resistência dos até agora derrotados pode surgir a qualquer momento.

Os impérios em fase final de declínio tendem a escolher figuras caricaturais, sejam elas Boris Johnson na Inglaterra ou Donald Trump nos EUA, que apenas aceleram o fim. A dívida externa de muitos países em resultado da pandemia será impagável e insustentável e os mercados financeiros não parecem ter consciência disso. O mesmo sucederá com o endividamento das famílias, sobretudo de classe média, já que foi este o único recurso que tiveram para manter um certo nível de vida. Alguns países escolheram o caminho fácil do turismo internacional (hotelaria e restauração), uma atividade por excelência presencial que vai sofrer de incerteza permanente.

A China acelerou a sua caminhada para voltar a ser a primeira economia do mundo, como foi durante séculos até ao início do século XIX. A segunda onda de globalização capitalista (1980-2020) chegou ao fim e não se sabe o que vem depois. A época da privatização das políticas sociais (nomeadamente, da medicina) com largas perspectivas de lucro parece ter chegado ao fim.

Estes diagnósticos, por vezes desassombrados, dão a entender que vamos entrar num período de opções mais decisivas e menos cômodas do que as que vigoraram nas últimas décadas. Antevejo três caminhos principais. Designo o primeiro por negacionismo. Não partilha o caráter dramático da avaliação exposta atrás. Não vê na atual crise nenhuma ameaça ao capitalismo. Pelo contrário, acha que ele se fortaleceu com a crise actual. Afinal, o número dos bilionários não cessou de aumentar durante a pandemia e, aliás, houve setores que viram aumentar os seus lucros em resultado da pandemia (veja-se o caso da Amazon ou das tecnologias de comunicação, Zoom, por exemplo). 

Reconhece-se que a crise social vai agravar-se; para a conter, o Estado apenas tem de reforçar o seu sistema de “lei e ordem”, fortalecer a sua capacidade de reprimir os protestos sociais que já começaram a acontecer, e que certamente irão aumentar, ampliando os corpos de polícia, retreinando o exército para atuar contra “inimigos internos”, intensificando o sistema de vigilância digital, ampliando o sistema prisional. Neste cenário, o neoliberalismo vai continuar a dominar a economia e a sociedade. Admite-se que será um neoliberalismo geneticamente modificado para poder defender-se do vírus chinês. Entenda-se, um neoliberalismo em tempo de intensificada guerra fria com a China e, por isso, combinado com algum tribalismo nacionalista. 

A segunda opção é a que corresponde mais fielmente aos interesses dos setores que reconhecem serem necessárias reformas para que o sistema possa continuar a funcionar, ou seja, para que a rentabilidade do capital possa continuar a estar garantida. Designo esta opção por gatopardismo, com referência ao romance Il Gattopardo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1958): é preciso que haja mudanças para que tudo fique na mesma, para que o essencial esteja garantido. Por exemplo, deve ampliar-se o setor público da saúde e reduzir as desigualdades sociais, mas não se pensa em alterar o sistema produtivo ou o sistema financeiro, a exploração dos recursos naturais, a destruição da natureza ou os modelos de consumo. 

Esta posição reconhece implicitamente que o negacionismo pode vir a dominar e teme que, a prazo, isso leve à inviabilidade do gatopardismo. A legitimidade do gatopardismo está baseada numa convivência que se sedimentou nos últimos quarenta anos entre capitalismo e democracia, uma democracia de baixa intensidade e bem domesticada, para não pôr em causa o modelo econômico e social, mas mesmo assim garantindo alguns direitos humanos que tornam mais difícil a recusa radical do sistema e a insurgência anti-sistémica. Sem a válvula de segurança das reformas, acabará a paz social mínima e, sem ela, a repressão será inevitável.

Há, no entanto, uma terceira posição que designo por transicionismo. Por enquanto habita apenas no inconformismo angustiado que aflora em múltiplos lugares: no ativismo ecológico dos jovens urbanos, um pouco por todo o mundo; na indignação e na resistência dos camponeses, povos indígenas e afrodescendentes e povos das florestas e das regiões ribeirinhas perante a invasão impune dos seus territórios e o abandono do Estado em tempos de pandemia; na reivindicação da importância das tarefas de cuidado a cargo das mulheres, ora no anonimato das famílias, ora nas lutas dos movimentos populares, ora à frente de governos e das políticas de saúde de vários países; num novo ativismo rebelde de artistas plásticos, poetas, grupos de teatro, rappers, sobretudo nas periferias das grandes cidades, um conjunto vasto a que podemos dar o nome de artivismo.

Esta é a posição que vê na pandemia o sinal de que o modelo civilizacional que domina o mundo desde o século XVI chegou ao fim e que é necessário iniciar uma transição para outro ou outros modelos civilizacionais. O modelo actual assenta na exploração sem limites da natureza e dos seres humanos, na ideia do crescimento econômico infinito, na prioridade do individualismo e da propriedade privada, no secularismo. 

Este modelo permitiu avanços tecnológicos impressionantes, mas concentrou os benefícios em alguns grupos sociais ao mesmo tempo que causou e legitimou a exclusão de outros grupos sociais, aliás maioritários, por via de três modos de dominação principais: exploração dos trabalhadores (capitalismo), racismo legitimador de massacres e pilhagens de raças consideradas inferiores e apropriação dos seus recursos e saberes (colonialismo) e sexismo legitimador da desvalorização do trabalho de cuidado das mulheres e da violência sistêmica contra elas no espaços doméstico e público (patriarcado). 

A pandemia, ao mesmo tempo que agravou estas desigualdades e discriminações, tornou mais evidente que, se não mudarmos de modelo civilizacional, novas pandemias continuarão a fustigar a humanidade e os danos que elas causarão na vida humana e não humana são imprevisíveis. Como não se pode mudar de modelo civilizacional de um dia para o outro, é necessário começar a desenhar políticas de transição. Daí a designação de transicionismo. 

Em meu entender, o transicionismo, apesar de ser uma posição por agora minoritária, é a posição que me parece carregar mais futuro e menos desgraça para a vida humana e não humana do planeta. Merece, pois, mais atenção. Partindo dela, podemos antecipar que vamos entrar numa era de transição paradigmática feita de várias transições. As transições ocorrem quando um modo dominante de vida individual e colectiva, criado por determinado sistema econômico, social, político e cultural, começa a revelar crescentes dificuldades em reproduzir-se ao mesmo tempo que, no seu seio, começam a germinar, de modo cada vez menos marginal, sinais e práticas que apontam para outros modos de vida qualitativamente distintos.

A ideia da transição é uma ideia intensamente política porque pressupõe a existência alternativa entre dois horizontes possíveis, um distópico e outro utópico. Vista do transicionismo, o não fazer nada, que é próprio do negacionismo, implica, de fato, uma transição, mas uma transição regressiva para um futuro irremediavelmente distóptico, um futuro em que se intensificarão e multiplicarão todos os males ou disfunções do tempo presente, um futuro sem futuro, já que a vida humana irá se tornar invivível, como já o é para muitas pessoas no nosso mundo. Pelo contrário, o transicionismo aponta para um horizonte utópico. E como a utopia por definição nunca se atinge, a transição é potencialmente infinita, mas nem por isso menos urgente. Se não começarmos já, amanhã pode ser demasiado tarde como nos advertem quer os cientistas das mudanças climáticas e do aquecimento global, quer os camponeses que sofrem os efeitos dramáticos dos eventos climáticos extremos.

A característica principal das transições é que nunca se sabe ao certo quando começam e quando terminam. É bem possível que o nosso tempo seja avaliado no futuro de modo diferente daquele que hoje defendemos. Pode mesmo vir a considerar-se que a transição já começou, mas sofre constantes bloqueios. A outra característica das transições é que ela é pouco visível para os que a vivem. Essa relativa invisibilidade é o outro lado da semi-cegueira com que temos de viver o tempo de transição. É um tempo de tentativa e erro, de avanços e recuos, de mudanças persistentes e efémeras, de modas e obsolescências, de partidas disfarçadas de chegadas e vice-versa. A transição só é plenamente identificável depois de acontecer. 

O negacionismo, o gatopardismo e o transicionismo vão enfrentar-se nos próximos tempos, e o enfrentamento será provavelmente menos pacífico e democrático do que desejaríamos. Uma coisa é certa, o tempo das grandes transições inscreveu-se na pele do nosso tempo e é bem possível que venha a contradizer o verso de Dante. Escreveu Dante que a seta que se vê vir vem mais devagar (che saetta previsa viene più lenta). Estamos a ver a seta da catástrofe ecológica a vir na nossa direcção. Vem tão rápida que por vezes dá a sensação de já se ter cravado em nós. Se for possível removê-la, não será sem dor. 

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Sociólogo português

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