Após superar um problema de saúde, ela lança seu novo livro, sobre as experiências limite que sempre atravessamos em nossas vidas, e que o mundo capitalista busca esconder debaixo do tapete. A pandemia gerou uma nova percepção sobre o que significa ''romper paradigmas'', desta vez a nível global: ''o liberalismo dissimula a dor por trás da ideia de adaptação''
Por Eduardo Febbro 06/07/2021 10:06
Belas, inconfessáveis, dolorosas, trágicas ou até salvadoras, as rupturas atravessam toda a nossa vida. Romper é sofrer e renascer, ou, também, perder-se para sempre. Algo tão íntimo e comum à condição humana como a ruptura não figura entre as reflexões filosóficas preferidas. E, no entanto, a ruptura é, de forma devastadora, a batuta de nossas existências.
Alguém, naquele mundo virado de cabeça para baixo pelo colapso global que a pandemia introduziu, pensou nisso muito antes do vírus: a filosofia francesa Claire Marin, cujo livro “Rupturas” interroga essa experiência extrema sem cair nas mais fáceis tentações: não é um tratado para confortar quem sofre, nem uma tentativa de ver as ruptura sob a lente de aumento da incongruente psicologia hiper positiva, tão promovida pelos gringos, nem um remédio literário para aliviar a dor, a tragédia, a separação ou a catástrofe.
Claire Marin pertence à corrente dos “filósofos do íntimo” e isso a levou a pensar sobre a ruptura, o lugar que ela ocupa em nossas vidas, o que ela produz, seus mitos, sua abrangência e seus limites, bem como sua variável ideológica. Porque, sem dúvida, a ruptura também tem um aspecto ideológico. O ultraliberalismo venenoso, por exemplo, a nega, não quer ouvir falar dela ou de suas consequências. O liberalismo precisa que admitamos as rupturas que o sistema propõe como dever religioso. Neste ensaio encantador e encorajador, Claire Marin percorre o extenso catálogo das rupturas: separações, traição, perda de emprego, viagens, tragédias, desaparecimento de entes queridos. Em suma, a infinidade de terremotos que sacodem as costas de nossas vidas, as majestosas incertezas que as rupturas geram e a nossa curiosa incapacidade ou capacidade de continuar com a melodia, de nos impor aos desastres, superar fronteiras dolorosas e, a partir daí, recomeçar vidas.
Ela publicou seu livro antes da ruptura universal que a pandemia trouxe. Muitos seres humanos encontraram em suas páginas maduras e felizes um reflexo de suas almas. A pensadora francesa sofreu as chicotadas de uma longa doença, que superou. Dessas experiências íntimas, dessa solidão, alimentam-se muitas das suas reflexões.
– Nossas vidas são quase reguladas pela ruptura. No entanto, nos esforçamos em negá-la. As sociedades contemporâneas escondem a ruptura e a apresentam como um produto da fragilidade. Por que você acha que é assim?
– Temos a tendência da encobrir os momentos de ruptura com uma espécie de continuidade que nos tranquiliza. Mas, na realidade, nossas vidas transcorrem no ritmo das rupturas. Há também uma espécie de silêncio filosófico em torno da dimensão física, encarnada e corporal do sofrimento. Sabemos que nos momentos de ruptura nós perdemos o apetite, perdemos peso, temos insônia, perdemos o equilíbrio e nosso corpo dói. É como se nosso corpo se tornasse um estranho. Nosso corpo é uma caixa de ressonância e quando passamos por momentos difíceis ele se enche de desconforto e perturbações. Nunca entendi por que essa dimensão corporal do sofrimento era silenciada quando, na realidade, no cotidiano, para contar a gravidade do que nos acontece costumamos dizer “perdi dez quilos, não durmo há três meses, perdi minha memória”. Cada pessoa faz do seu corpo uma testemunha da violência dessa experiência. O paradoxal dessa situação é que, na maioria das análises acadêmicas, essa dimensão corporal do sofrimento não é levada em consideração.
Um mundo de heróis camaleônicos
– Neste mundo ultraliberal onde o sucesso, a dureza e a carapuça são valorizadas, a ruptura é praticamente proibida, até negada. O liberalismo não quer sofrimento, mas heróis sempre dispostos a se adaptar a tudo?
– De forma muito hipócrita, o liberalismo esconde a ruptura por trás da ideia de elasticidade, flexibilidade, adaptabilidade, que aparecem como as novas virtudes das gerações mais novas. Você tem que ser capaz de passar de um emprego para outro, de uma região para outra, de um país para outro como se, a cada vez, não houvesse um grande esforço da pessoa para se adaptar, acomodar, aceitar e internalizar as relações com os outros, trabalhar com uma nova equipe, em outro país, em outro idioma, com padrões diferentes. Isso sempre requer esforço. Mas a ideologia liberal vai além: não só esconde a ruptura do que há de mais brutal, mas também impõe rupturas violentas que acabam dissimulando isso, como se fosse um tipo de virtude do trabalhador contemporâneo. Nos tratam como camaleões, apesar de que, na verdade, cada vez que mudamos de espaço ou de relacionamento, perdemos algo de nós mesmos. Claro, felizmente, podemos mudar o contexto, o país, o idioma. Isso faz parte da existência. Mas uma coisa é decidir, outra é ser praticamente forçado a fazê-lo explicitamente, e embora essa exigência não seja admitida socialmente. E é isso que está latente nessa lógica ultraliberal: fazer a ruptura parecer uma simples acomodação que, no final, vai beneficiar a lógica econômica. Existem rupturas que são felizes, estimulantes, emocionantes, cheias de aventura, e nas quais – e isso é importante – temos a possibilidade de ter o tempo necessário para nos adaptar. Isso é precisamente o que a lógica liberal não nos oferece. O normal é a privação do tempo necessário para que uma ruptura seja o menos violenta e indolor possível.
– Mas você enfatiza que a ruptura também pode ser uma possibilidade de transformação, porque envolve “um impulso criativo”.
– Essa é uma das características que mais me interessa, essa ambivalência da experiência da ruptura. Eu não queria apresentá-la sob o olhar de uma espécie de psicologia ultrapositiva e dizer que algo formidável pode ser extraído de todas as catástrofes. Eu não acredito nisso. Acho que existem catástrofes que definitivamente nos prejudicam. Existem sofrimentos, lesões e deformações físicas ou mentais que afetam profundamente as pessoas e é difícil imaginar que a vida poderia ser melhor depois. Porém, inversamente, acredito que existem momentos complicados na vida, rupturas profissionais ou amorosas, acidentes, doenças, que vivemos como uma catástrofe dolorosa, mas que, com o tempo, são decisivos para uma nova inflexão, uma nova orientação. Claro, o indivíduo precisa trabalhar na representação desses eventos, integrá-los psicologicamente e dar-lhes um significado. Cada pessoa dá um significado diferente às catástrofes pelas quais passa. Nosso caminho na vida não é direto, linear. Existem bifurcações forçadas, contratempos, fortes objeções aos nossos projetos iniciais. Essas bifurcações podem fazer com que apareçam horizontes que não havíamos previsto, que podem ser felizes, mesmo que não sejam os que concebemos. Somos então confrontados com revelações inesperadas.
– Mesmo que seja uma experiência vertiginosa que procuramos evitar, pode se tornar uma ruptura com alguma dose de renovação?
– Com a ruptura ocorre uma espécie de reconversão do olhar. De repente, vejo as coisas de uma maneira diferente e também me vejo de outra maneira. Se fomos capazes de passar pela experiência ruim, descobrimos que tínhamos mais recursos do que imaginávamos. Então, temos que saber o que fazer com esses recursos, com essa autonomia, com a nossa capacidade de adaptação para fazer coisas que não contemplamos. A ruptura também nos liberta de certas convenções, de esquemas pré-estabelecidos que correspondem às nossas origens sociais, à nossa formação familiar. Na perda há algo que faz parte da ordem da libertação diante de situações que, talvez, não foram forçadas, que fizeram parte de um projeto de vida, com o qual vivemos bem, mas antes do qual, depois da catástrofe, entendemos que eles não eram tão essenciais para nós, seja um trabalho, um relacionamento emocional ou uma promoção. A catástrofe tem um efeito de distanciamento que pode ser libertador. Já não me importo tanto em estar bem com minha família ou com meus colegas. Somos mais livres, o julgamento dos outros parece secundário para nós. Ne libertei de obrigações das quais não tinha plena consciência.
Tornar o invisível visível
– De alguma forma, então, a ruptura torna visível o que era invisível em nós.
– Tem o efeito de nos deixar ver com clareza as coisas que foram enterradas, negadas, coisas às quais renunciamos por considerá-las, talvez, como ideais de juventude. É como se, de repente, muitas coisas que eram periféricas, que estavam latentes, se centralizassem, emergissem, se deslocassem da margem para o centro. Produz-se uma nova visibilidade, o que é muito importante na vida. Não se trata de dizer que “o que não me mata me fortalece”. Mas, dentro de um certo período de tempo, isto é, meses ou anos, tomamos consciência de capacidades que desconhecíamos. Então estamos prontos para reorganizar nossa vida profissional ou sentimental com outras prioridades. Podemos passar por rupturas violentas e então nos comprometer com outras iniciativas voluntárias e controladas pelo sujeito.
– Você escreve que, após a ruptura, é possível aprender a domar a nova solidão e a possuí-la de forma positiva.
– Esse processo questiona nossa angústia diante da ruptura, porque fazemos o impossível para evitá-la, e também questiona nossa capacidade de vivermos sozinhos. A ruptura que a pandemia gerou, ou seja, o confinamento, quando muitas pessoas se encontraram sozinhas, isso nos mostrou o quão pouco preparados estamos cultural e psicologicamente para a solidão. O confinamento também nos mostrou em que medida precisamos uns dos outros, em uma sociedade moderna e capitalista, que, ao contrário, se funda na lógica de um único indivíduo autônomo. Agora vemos que viver sozinho requer um emprego, uma reapropriação, uma capacidade de viver face a face consigo mesmo. Quando um indivíduo fica só, há um espaço para habitar, um espaço de verdade do sujeito.
– A sociedade moderna quis nos mostrar como super heróis e, na verdade, somos seres frágeis.
– Esse é um tema muito contemporâneo, ou seja, a vulnerabilidade dos indivíduos. Assim que nos isolamos, verificamos imediatamente em que medida todos os aspectos da nossa vida, sejam os materiais ou os psicológicos mais profundos, se constroem a partir da troca com o outro e na presença do outro. O mito do indivíduo autônomo e autossuficiente mostrou seus limites nos últimos meses.
– Você diz: nunca renascemos sozinhos, e nunca mais somos os mesmos depois. A ruptura também marca o início de outra relação com a vida?
– Absolutamente. No caso de doença, o corpo nunca mais é o mesmo depois. O corpo se transforma, e guarda as sequelas. Podemos usar essa imagem quando se trata da ruptura. Por isso, não acredito que as dificuldades devam ser esquecidas ou consideradas como parênteses que fechamos. As rupturas falam sobre a nossa história e ao invés de cobri-las de tatuagens é mais adequado revê-las para ver também as dificuldades que estamos passando. A tendência mais espontânea, de má-fé, é passar para os outros a responsabilidade pelas dificuldades que nos originam. A insatisfação pessoal ocorre porque nossa vida não coincide com o que queremos. Procuramos manter um ideal de nós mesmos e, como não conseguimos isso, responsabilizamos o outro, ou a situação econômica, ou a situação política. Na ruptura, quando tomamos a decisão de romper, alcançamos uma forma de valentia, de decidir que será em outro nível ou em outra relação, na qual possamos nos expressar melhor. Às vezes não há essa valentia e colocamos o peso do nosso mal-estar nos outros.
– É um assunto complexo. É também evitar o mito da ruptura. A separação, o distanciamento, essas saídas não são capazes de consertar tudo.
– É possível que esse ideal que temos de nós mesmos não se concretize com a ruptura. Se sonho em ser romancista e tenho a impressão de que minha vida familiar ou meu trabalho me impedem, e deixo meu companheiro ou meu emprego, não é por isso que me tornarei o romancista que queria ser. Resta a possibilidade de que, no imaginário que dá origem à ruptura, existam representações fantasmagóricas. A ruptura traz riscos, não há nada ganho. Não é porque decido romper com minha antiga vida que a nova será como a imagino.
– O amor talvez seja o sentimento mais ameaçado pela ruptura. Está sempre aí, no ar…
– O risco da ruptura, do rompimento, é inerente à relação amorosa, mas também é aquele fator que traz intensidade. A fragilidade intrínseca do amor reveste a relação amorosa de beleza, essa passividade consentida que preside o amor. A ruptura é um código que faz parte do amor, é como uma catástrofe que se aproxima de todo aquele que se apaixona.
A ruptura global da pandemia
– A ruptura é uma experiência íntima e individual. Porém, a pandemia fez da ruptura uma experiência coletiva, planetária, compartilhada ao mesmo tempo por quase toda a humanidade. Estamos em um estado de luto globalizado?
– Numa sociedade contemporânea concebida como um espaço atomizado, nós pudemos ver até que ponto estamos ligados uns aos outros, e digo ligados e não simplesmente conectados. Estamos ligados até biologicamente, e nessa interdependência existe um risco, como vimos com a pandemia. Fronteiras não existem, para o bem e para o mal. Esperamos que essa consciência leve a transformações, modificações na forma como nos relacionamos. A pandemia nos levou a uma emoção universal. Foi uma experiência sem precedentes: entramos na doença, na tristeza, na angústia ou na depressão em uníssono. Na história da humanidade, não acredito que tenha havido uma emoção coletiva semelhante.
– Essa emoção coletiva é acompanhada também por uma questão global: depois dessa grande ruptura, que perspectiva temos para o mundo depois?
– Houve um primeiro momento em que ficamos chocados com aquele esforço coletivo que foram as restrições impostas às nossas liberdades. Então, pensamos que essa tragédia nos traria um mundo melhor, mas rapidamente percebemos que essa esperança era uma simples ilusão. Isso não nos impede de conservar a esperança de que existam mudanças, especialmente porque as sociedades ricas também estiveram sob a ameaça da pandemia. A pergunta que eu faço é sobre que impacto terá nas novas gerações esta experiência coletiva da pandemia, das rupturas que ela acarretou. Isso mudará suas formas de interagir, seus comportamentos? Não é impossível que essa geração mude, porque as representações do futuro foram modificadas pela presença da ameaça.
– A pandemia expôs publicamente e em escala universal a fragilidade da condição humana.
– Sim, totalmente. A pandemia ampliou essa evidência: os seres vivos são frágeis. Precisamente porque estou vivo, sou vulnerável. A ilusão de que tudo poderia ser tratado ou curado não funciona mais. A pandemia trouxe uma dúvida existencial. De repente, tudo que parecia seguro, garantido, mapeado, gerou uma dúvida, uma indagação sobre o que vai acontecer com a gente. A realidade se tornou mais complexa porque, quando estamos doentes, a realidade se torna mais hostil. A doença coloca tudo em um plano condicional. A nossa relação com o tempo, com a vida, passa a se centrar mais no presente, no momento. No início da pandemia era insuportável não poder fazer projetos, antecipar. E a principal característica das doenças é a de nos lembrar que nada está garantido, os próximos passos são incertos. Não somos nós que decidimos, há uma experiência de expropriação da vida muito clara. Vamos lembrar o que aconteceu durante a pandemia, quando perdemos nossa capacidade de pensar, criar, programar. Tudo tinha uma dimensão tão grande que era difícil entender. A experiência da doença tem o mesmo perfil: é uma catástrofe tão grande na existência que levou algum tempo para compreendê-la, para inscrevê-la na história de uma vida, em um contexto onde tudo parece absurdo, inimaginável e inaceitável.
– No entanto, é paradoxal que algo tão íntimo e muitas vezes inconfessável como a ruptura tenha se tornado público.
– Sim, totalmente. Há algo de inédito aqui porque nos levou a colocar no espaço público as fragilidades que, em geral, procuramos esconder. As pessoas confessam que estão cansadas, que têm medo, que não suportam, que estão deprimidas, que não aguentam mais. Existem confissões públicas de nossas vulnerabilidades que não são comuns em nossas sociedades competitivas, perfeitas e otimistas. A lógica do sucesso, do super herói, essas ideias estão perdendo força, e talvez isso reconfigure as relações para perfis mais humanos.
*Publicado originalmente em 'Página/12' | Tradução de Victor Farinelli
Carta Maior
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