Há um verdadeiro conluio ou cartel ao forçar os consumidores brasileiros a “perderem a conta” de quanto realmente pagaram e quantos produtos compraram por meio de pagamentos a prazo. Muitos (sem consulta a planilhas ou faturas) desconhecem as inúmeras e distintas parcelas mensais sobrepostas, onde estão embutidos juros e tarifas ocultos nos preços dos bens.
Por Fernando Nogueira da Costa 31/01/2022 15:20
É necessário planejar o oferecimento de crédito por meio do PIX. Os bancos podem temer a competição com sua própria operação de cartões. Mas o projeto foi selecionado para fazer parte do sandbox regulatório em inovações financeiras do Banco Central do Brasil.
Daí espera-se os grandes bancos se movimentar para oferecer o PIX Crédito. Seria um avanço na utilização do meio de pagamento instantâneo e na competição com os cartões de crédito.
Hoje, as transações do PIX são debitadas em tempo real da conta corrente. Na prática, isso se assemelha a uma operação com cartão de débito.
Quando o consumidor gasta com pagamento no cartão, só paga quando chega a fatura. O lojista incentiva isso porque aumenta a escala das vendas e a bandeira é uma garantia de o banco pagá-lo.
Porém, o repasse da tarifa de intercâmbio eleva os preços a prazo. Pior, não os diferenciam dos preços à vista, de modo o lojista, o banco, a credenciadora e a bandeira receberem também alíquotas pelas transações comerciais.
Uma concessão de crédito a partir do PIX dispensaria as bandeiras e, eventualmente, até as credenciadoras. Essas passaram anos se apresentando como dois intermediários essenciais em cartões.
Se for bem-sucedido, o produto poderá competir com o parcelado sem juros. Para este, os bancos buscam alternativas, porque são operações onde assumem o risco, mas não têm controle sobre a concessão do crédito.
As instituições financeiras poderiam, por exemplo, oferecer condições especiais e descontos. Assim, estimulariam o uso do PIX Crédito como alternativa aos cartões em uma bem-vinda inovação financeira.
Em síntese, a proposta de diferenciação de preços, para ser melhorada em debate eleitoral, seja por contribuições de especialistas, seja pela reação da opinião pública, envolveria cerca de seis passos.
Primeiro, acabar com a ilusão causada pela expressão “sem juros”. O pagamento “à vista” com cartão, possível de aproveitar “até 40 dias de graça”, tem seu custo pago pelos adimplentes do rotativo, pagando inclusive pelos inadimplentes, e também por todos os consumidores sob forma de um custo de vida mais elevado!
Segundo, em consequência dessa “jabuticaba brasileira”, seria necessária uma obrigação e uma vedação legislativa.
Obrigar a diferenciação entre preço PIX à vista e qualquer outro preço a prazo no cartão. O preço à vista no PIX deveria ter o desconto das taxas pagas aos vários elos da cadeia: a bandeira, o emissor, o adquirente, a maquininha, etc.
Proibir o parcelado sem juros em troca de ser parcelado com juros razoáveis como o de crédito com garantia dos produtos. Viabilizaria o preço a prazo com juros bem inferiores, por exemplo, caso fosse garantido por consignação: desconto em folha de pagamentos. Teria como efeito colateral maior demanda social por formalização do mercado de trabalho para obtenção desse direito.
A tabela acima mostra que o total dos saldos de créditos para pessoas físicas, em dezembro de 2021, foi 2,7 trilhões de reais. Deste valor, 392 bilhões (14,5%) foi através de cartões de crédito. A forma de pagamento no cartão foi, predominantemente, à vista (310 bilhões), seguida por crédito rotativo (49 bilhões) e parcelado (33 bilhões).
Restringir as credenciadoras e seu mercado de adquirência. Elas fazem uma barganha eticamente condenável ao propiciar antecipações das receitas futuras ao comércio (capital de giro) em troca de os lojistas forçarem o consumidor “perder as contas dos pagamentos a prazo” e, inadvertidamente, entrar no crédito rotativo caríssimo.
Tudo isso resultaria na diminuição do custo de vida, ou seja, o “desinflacionamento” dos preços à vista no Brasil. Aqui, nessa “terra da jabuticaba” com esse modelo de cartões único no mundo, paga-se à vista o mesmo pago a prazo, ou seja, todos os consumidores pagam todos os custos da venda a prazo embutidos no preço à vista!
Há contra-argumento em defesa da manutenção do “pagamento parcelado sem juros”. Seria um instrumento muito utilizado pelos consumidores detentores de cartões de crédito, seja pela falta de dinheiro e educação financeira, seja pela pressão dos lojistas.
Nessa lógica, o lojista não se preocuparia em avaliar o risco da inadimplência de seus clientes nessas operações, porque quem arcaria com o prejuízo seria o banco emissor do cartão. Como prêmio de risco, os bancos elevariam os juros do crédito rotativo do cartão de crédito.
Também se argumenta a falta de transparência para o consumidor sobre os juros praticados nessas operações ser “culpa dos banqueiros”, contumaz bode-expiatório para transferir a ira dos incautos. Como quem define o limite de crédito nos cartões para o consumidor é o banco emissor, e não o lojista, não caberia a este se preocupar em fazer a avaliação adequada de risco dos seus clientes, mas sim aos bancos.
Afinal, dizem os defensores desse mercado de adquirência e antecipações das receitas futuras do comércio, os bancos se remuneram também por meio das anuidades pagas por clientes de cartões. Além disso, recebem parcela da tarifa de intercâmbio, descontada da tarifa cobrada ao lojista, maior ainda em casos de compras parceladas. Esse valor acumulado cobriria as recompensas e a garantia de pagamento aos lojistas, além das eventuais inadimplências.
Os defensores desse status quo colocam a culpa dos problemas existentes nos próprios consumidores! Os clientes do crédito rotativo do cartão reagem muito pouco a variações de juros cobrados.
Essa denominada baixa elasticidade do consumidor (disposição a reagir) dá amplo poder de definição de preços (juros) para os emissores, sendo responsável pelas elevadíssimas taxas cobradas. “Enfiam a faca nos enforcados” por desemprego, pobreza e dívida!
Dizem os neoliberais: “nesse livre mercado, todas as opções estão à disposição para o consumidor soberano”. Ele pode recorrer aos bancos para obter outro tipo de crédito, usar o rotativo do cartão de crédito, o parcelado sem juros e ainda procurar barganhar algum “desconto”, caso pague à vista.
Argumentam, “em economia competitiva, o lojista repassar custos, inclusive os financeiros, com a venda com base em cartões de crédito, para o consumidor, seria contraditório com o crescimento das vendas”. Ora, o problema é justamente não ter competição quando essa prática implícita de cartel é generalizada!
Quanto ao argumento da falta de transparência sobre os juros, praticados na modalidade de crédito rotativo ou parcelado, não seria razão suficiente para propor o seu fim. Assimetria de informação se corrigiria com mais informações e com educação financeira. Sim, e as sociedade brasileira está cobrando ambas!
Os defensores da manutenção intocada desse “eficiente e popular parcelado sem juros” alegam essa “eficiência” ser provada justamente por sua “popularidade”. Mentem ao dizer esse crédito ao consumidor via cartões de crédito ter um custo menor se comparado ao de outro crédito tomado diretamente no sistema financeiro e apelam para o típico populismo de direita: fingem falar “em nome do povo” quando defendem uma posição contrária ao elevar seu custo-de-vida!
O Banco Central não deve alegar qualquer mudança regulamentar ser, cultural e praticamente, inviável. O comércio necessita enfrentar a diferenciação entre preços à vista e a prazo sem o justificado temor de perder vendas.
O consumidor não deve apelar para o parcelado sem juros como fosse a única forma de viabilizar seu consumo e se sentir capaz de sempre aproveitar ao máximo os limites de crédito e as datas de aniversários de todos os cartões possuídos. Quando todos esses agentes econômicos acham estar ganhando, ao mesmo tempo, estão na verdade perdendo sem ter consciência dessa perda.
Jairo Saddi (Valor, 22/02/2021) também advoga em defesa dessa bandeira de luta pelo fim da não diferenciação de preços com a seguinte frase de efeito. “Se o parcelado sem juros não fosse uma jabuticaba bem brasileira, seria uma genial invenção para a humanidade, e claramente não o é”. De fato, a humanidade não importa esse modelo tupiniquim...
O parcelado sem juros implica em um juro oculto. O cliente está pagando pelo prazo, ainda sem saber: o preço à vista deveria ser menor face ao realmente cobrado.
Na realidade, essa cobrança remunera os vários elos da carteira, o emissor da bandeira, o adquirente, a maquininha e assim por diante. Por isso, recusam a priori debater a implantação de um parcelado com juros, chamado de “crediário no cartão”, para diferenciar preços.
O PIX só vai substituir todas as alternativas com uso de cartões de crédito quando tiver apoio do comércio para tornar seu uso fácil e automático. Isso será quando puder existir o PIX-Parcelado com baixíssimo juro.
Para Saddi, “proibir o parcelado sem juros (sem oferecer uma alternativa palatável) não é uma solução, assim como não é uma solução achar o lojista ser capaz de, por si só, ter a honestidade de cobrar um preço à vista menor e outro maior a prazo”.
O banco emissor em tese teria o risco da operação de crédito sem ser remunerado por isso, porque seriam o credenciador ou o adquirente quem cobraria taxas altas para antecipar os recursos ao varejista. Na prática, a tendência lógica do mercado tem sido a verticalização do sistema, concentrando todos papéis e funções em cada grande grupo bancário, seja no Elo entre Bradesco-BB-Caixa, seja no Itaucard.
Na verdade, o parcelado sem juros só se sustenta porque os consumidores brasileiros ignoram quanto de juros e tarifas, além de impostos, está sendo cobrado sem a diferenciação de preços. Caso contrário, eles se revoltariam contra esse status quo econômico e elegeriam alguém capaz de liderar uma re-evolução do sistema... de pagamentos!
Fernando Nogueira da Costa é Professor Titular do IE-UNICAMP. Autor do livro digital “Dívida Pública e Dívida Social: Pobres no Orçamento, Ricos nos Impostos (ou Pobres no Ativo, Ricos no Passivo)” (2022). Baixe em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com / E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com
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