Reconstruir tudo aquilo que foi seriamente destruído ao longo dos últimos quatro anos implica a mudança radical na orientação da política econômica
Paulo Kliass
27 de setembro de 2022, 15:18 h Atualizado em 27 de setembro de 2022, 15:46
O anúncio da decisão da 249ª reunião do Comitê de Política Monetária (COPOM) teve algum sentido de surpresa. A nota divulgada no final da tarde do dia 21 de setembro apontava a interrupção de uma série de doze encontros anteriores em que a taxa referencial de juros havia sido sistematicamente aumentada. Assim, depois de 18 meses de elevações ininterruptas, a SELIC ficou finalmente estacionada no patamar de 13,75% ao ano.
A expectativa de que o colegiado responsável pelo estabelecimento das bases da política monetária no Brasil aumentasse mais uma vez esse instrumento residia na realização, quase simultânea, de uma reunião do órgão congênere dos Estados Unidos. No mesmo dia, o FED decidia por aumentar o intervalo de sua taxa em 0,75%, passando o teto da mesma de 2,5% para 3,25% anuais. Como costuma acontecer em situações como essa, uma série de bancos centrais pelo mundo afora optaram por acompanhar os norte-americanos e também elevaram suas taxas. Esse foi o caso, por exemplo, do Banco Central da Inglaterra, da Noruega, da África do Sul, da Suíça e da Suécia. Além disso, alguns dias antes, o Banco Central Europeu igualmente havia decidido elevar sua taxa, saindo de zero para 0,75%.
Apesar de todo esse quadro externo conspirando para uma nova subida a ser patrocinada pelo COPOM, o colegiado optou pela cautela. Alguns analistas buscam a explicação no fato de que a SELIC já estava em um nível muito acima do razoável ou do necessário, mesmo sob uma abordagem conservadora em termos de análise macroeconômica. Afinal, os diretores do Banco Central (BC) já haviam promovido um aumento de mais de quase 600% na taxa ao longo deste último ano e meio. Em março de 2021 a SELIC estava estabelecida em 2% e foi multiplicada por quase 7 vezes até a reunião realizada em agosto.
A armadilha da independência do BC
No entanto, os fundamentos que dão sustentação ao modelo reinante nas reuniões do COPOM não se importam com as consequências sociais e mesmo econômicas de suas decisões. Assim, é bastante provável que se assista ao retorno das pressões para novos aumentos a partir da próxima reunião, a ser realizada em 25 e 26 de outubro. Caso as pesquisas de intenção de voto se confirmem, já conheceremos o futuro Presidente da República naquele momento. A provável vitória de Lula ainda no primeiro turno no próximo domingo deveria operar como uma nova variável a ser levada em consideração pelos integrantes do Comitê. Mas, infelizmente, não deve ser este o caminho a ser trilhado pelos nove membros do colegiado, que são os próprios diretores do BC.
A avaliação de que o aumento sistemático e contínuo da taxa referencial de juros seria o único meio para atuar contra o processo inflacionário mais recente é um exemplo das dificuldades que o futuro governo vai enfrentar a partir de janeiro de 2023. Em sua atual composição, o COPOM nada mais faz senão corroborar os desejos e as vontades da direção do financismo em nosso País. A maioria dos economistas que não deixamos nos levar pelo canto de sereia do conservadorismo neoliberal já alertamos há um bom tempo para o equívoco da trajetória altista na SELIC. A pressão sobre os preços tinha origem, fundamentalmente, nos setores de energia e de alimentos. Ora, são dois casos típicos de bens e serviços cujos preços não podem ser dimensionados apenas pelos movimentos de oferta e demanda do mercado, como ocorre com os preços da banana no final da feira.
No caso da energia elétrica, os reajustes são autorizados pelo governo, por intermédio da agência reguladora do sistema, a ANEEL. Para o que se refere aos derivados do petróleo, os reajustes são definidos pela política de “preço de paridade internacional”, estabelecida também pelo governo federal. Os aumentos na SELIC não promoveram nenhuma alteração nas tarifas nem nos valores de produtos como a gasolina, o diesel ou o gás de cozinha. Se a intenção era mesmo atenuar o impacto de tais aumentos de preços nos índices inflacionários, o caminho seria a redução dos mesmos também por decisão governamental.
COPOM destruidor: SELIC nas alturas
Quanto aos alimentos, as razões podem ser buscadas igualmente no desmonte liberaloide praticado pelo superministro da economia. Paulo Guedes decidiu por eliminar os instrumentos que o Estado brasileiro ´possuía há décadas para acompanhar e intervir nos mercados de produtos agrícolas, quando necessário. Trata-se da conhecida e estratégica política de estoques reguladores, por intermédio da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), para que o governo possa atuar sobre a oferta e a demanda de alimentos e evitar os riscos de desabastecimento, em razão de movimentos de especulação e de crises associadas à sazonalidade ou a eventos climáticos inesperados.
Com a opção pela política do “liberou geral” também no setor, a administração pública fica de mãos atadas para intervir e regular o mercado de alimentos, que passa a ser objeto de elevações de preços em seus produtos. Aqui tampouco é suficiente a elevação da SELIC para acomodar as forças em busca de algum tipo de equilíbrio. Assim, o que se viu foi a continuidade do crescimento dos índices inflacionários apesar da impressionante escalada altista da taxa referencial de juros. O resultado foi a manutenção severa dos efeitos recessivos provocados pelo arrocho monetário, ao passo que o fenômeno que se pretendia atacar, a inflação, permaneceu praticamente inalterada ao longo do período.
Essa abordagem do fenômeno econômico vai na contramão das necessidades de retomada urgente do crescimento do ritmo das atividades de uma forma geral e também da implementação de um programa nacional de desenvolvimento. Para que isso se torne realidade, é necessária uma política monetária fundada em outras bases, em que o patamar da SELIC esteja bem abaixo do atual. Além disso, o próprio BC precisa atuar de forma incisiva como órgão fiscalizador e regulador do sistema financeiro. Para tanto, é fundamental que ele aja de forma exemplar no controle dos “spreads” praticados pelas instituições financeiras, bem como na punição de práticas abusivas associadas às tarifas e demais cobranças pelos serviços oferecidos aos clientes. Para tanto, o governo pode também se utilizar dos grandes bancos públicos, como o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal, o Banco da Amazônia, o Banco do Nordeste e o BNDES.
Novo governo e a política monetária
A aprovação da independência do BC, por meio da Lei Complementar nº 179 em 2021, criou uma dificuldade adicional para o próximo Presidente da República. Por meio de alguns dispositivos introduzidos na legislação, os dirigentes da instituição passaram a contar com mandato fixo de 4 anos. O pior é que esse mecanismo foi estendido para os atuais diretores. Assim, o próximo governante terá que conviver com os integrantes da direção do órgão - que são também os próprios integrantes do COPOM - e que foram nomeados pela dupla Guedes & Bolsonaro. Um absurdo!
Isso significa que está montada uma bomba com alto poder de sabotagem, no âmbito da política monetária ao menos, sobre qualquer tentativa de retomada de um projeto desenvolvimentista. Isso pela simples razão de que esse tipo de programa pressupõe uma mudança significativa na forma do financiamento público das necessidades de investimento e também na política de formação dos custos financeiros de uma forma geral na economia e na sociedade. Para tanto, o governo precisa contar com os responsáveis pela política monetária como parceiros nesse projeto de nacional e não como adversários.
Porém, o fato é que os representantes do sistema financeiro e das elites do capitalismo de uma forma geral também parecem estar se dando conta da inviabilidade eleitoral da aventura da terceira via. Aqueles que não pretendem apostar mais uma vez no desastre que representou o governo da intolerância e do genocídio não têm outra alternativa que não seja apoiar ou aceitar a eleição de Lula. Mas não o fazem de forma passiva. Pressionam de todas as formas para obter algum compromisso do ex presidente quanto à manutenção da essência da política econômica de Paulo Guedes, em especial no que se refere à preservação da austeridade fiscal e ao compromisso com a política de teto de gastos.
Articulam para que o futuro governo não leve em frente a revogação das medidas destruidoras dos direitos dos trabalhadores e apresentam balões de ensaio sobre nomes de perfil conservador para ocuparem postos na área econômica a partir de janeiro próximo. Os grandes meios de comunicação mal conseguem esconder os seus receios e retomam suas tentativas de “lobby” explícito em prol de uma solução que tenha o sentido da preservação do poder do financismo. Pululam editoriais e matérias com tintura de chantagem e aroma fétido de ameaça.
A coligação da chapa Lula e Alckmin recebeu o nome de “Brasil da Esperança”. Ampla em sua composição, ela se formou na tentativa de encerrar de forma definitiva o ciclo da extrema direita autoritária e golpista em nosso País. Mas ela também carrega o significado de recuperar o tempo perdido, os sonhos enterrados e os diretos aniquilados. Reconstruir tudo aquilo que foi seriamente destruído ao longo dos últimos quatro anos implica a mudança radical na orientação da política econômica. E a trajetória futura da SELIC deve se acomodar a essa nova realidade.
Paulo Kliass
Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal
Este artigo não representa a opinião do Brasil 247 e é de responsabilidade do colunista.
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