A aliança tucano-peemedebista que levou ao golpe de 2016 já estava definida durante o governo de FHC. Protagonistas, os mesmos de sempre
Porque uma quadrilha de figuras tão incompetentes até na predação consegue impor sua vontade?
Porque somos o que somos, o país da casa-grande e da senzala
Mauricio Dias, companheiro de mil aventuras, na qualidade de jornalista excelente é repórter antes de mais nada e, como tal, habilita-se até a investigar sua própria memória. O recorte que ilustra estas páginas sai das lembranças de Mauricio para oferecer uma contribuição preciosa à história do Brasil dos últimos 20 anos.
História arejada durante o governo Lula e nos começos do governo Dilma, e deplorável antes e depois, até o estado de exceção dos dias de hoje carregados dos piores presságios. Há uma ligação clara entre o antes e o depois, uma continuidade inexorável e profundamente daninha ao País, que, de 2003 a 2012, viveu uma temporada esperançosa.
Alguns dos protagonistas do período que, carente de meio, tem começo e fim, figuram no recorte de O Globo, primeira nota de uma coluna da edição de 19 de maio de 1997. O tucanato acaba de comprar votos no Congresso para garantir a emenda constitucional da reeleição e quem socorre os pássaros que não voam são graúdos, onipresentes peemedebistas.
Os mesmos de sempre, com exceção de Iris Rezende. O qual, de todo modo, não parecia talhado para o Ministério da Justiça. Infinitos, contudo, são os caminhos da política nativa.
Fernando Henrique deu início à sua definitiva ascensão ao se tornar ministro de Itamar Franco e a aproveitar-se de ideias de terceiros em busca da estabilidade. Elegeu-se em 1994 na esteira do êxito das medidas econômicas.
Foi quando Antonio Carlos Magalhães garantiu com um sorriso de Gioconda, em entrevista a CartaCapital: “Ele não é tão de esquerda assim”. O príncipe dos sociólogos preparava-se ao papel de preferido da casa-grande, amado até o delírio no estado mais reacionário do Brasil, São Paulo, obviamente.
Soube como se cuidar, e partiu para uma política econômica neoliberal e os braços de Bill Clinton. Já no primeiro mandato o País quebrou em consequência da bolha russa, e nem por isso, à sombra da bandeira da estabilidade, ele deixou de conduzir a campanha da reeleição alcançada pela emenda dos votos comprados.
Doze dias depois de assumir o segundo mandato, desvalorizou o real, cometeu o maior estelionato eleitoral da história e novamente quebrou o Brasil. Nem por isso transitou pela cabeça de quem quer que seja a ideia de sapecar-lhe o impeachment. Não se iludam, a Constituição foi então respeitada porque convinha à casa-grande, mesmo que Roberto Marinho e sua Globo tivessem perdido na operação uma cordilheira de grana.
A privatização das comunicações, obra mestra do segundo mandato, foi bandalheira ciclópica. Tudo, com FHC no comando, é grandioso. Tive a oportunidade de ouvir os grampos das conversas entre os organizadores da festança, Luiz Carlos Mendonça de Barros e André Lara Resende, enquanto Pérsio Arida corria por fora.
“A gente entrega aos italianos, e depois dá um jeito como a gente sabe fazer”, dizia um. “Se for preciso, a gente chama a bomba atômica”, dizia outro. Ou seja, batemos à porta do gabinete presidencial, ali está o melhor de todos para dar jeitos.
A conexão física e moral entre aquele passado e o nosso presente já se firma, indissolúvel, para que a aliança tucano-peemedebista se exprima agora em perfeita sintonia. Leiam os nomes estampados no recorte.
O tempora, o mores... Registro com surpresa: quem seria o colunista global autor da nota exemplar na prática do jornalismo honesto? Alguns dos colunistas que enfeitam o jornalão carioca no momento, passados 20 anos, desempenham com notável dedicação o papel de porta-vozes do governo ilegítimo gerado pelo golpe.
Juntos no assalto à Constituição, o Legislativo entregue a uma turba de trapaceiros notórios e o Judiciário dos pançudos, empolados togados, coniventes. A mídia trata de exibi-los como salvadores da pátria. Pergunto aos meus desalentados botões: uma situação dessas seria possível em outro país que se diz democrático e civilizado?
Agitados, respondem: nunca, em hipótese alguma. E logo fica claro por que: trata-se de figuras medíocres, primárias, vulgares, em boa parte iletradas. Observo: ao menos são espertos, matreiros. E os botões: qual é o seu metro para medi-los? Digo: eles chegaram aonde queriam. Pois é, soletram os meus interlocutores, eles se dão bem porque nós somos o que somos.
A maioria é inerte e resignada sem condições de ser diferente, jamais lhe foi oferecida a chance de ganhar a consciência da cidadania. Há séculos sofre em perfeito silêncio, como se o sofrimento fosse seu destino inescapável, determinação divina, quem sabe.
A chamada classe média, em larga porção, deixa-se manipular pela mídia, ao lhe faltar uma tradição burguesa, no sentido europeu, de interesse cultural e político. A classe média do apelidado de Velho Mundo ainda é a maioria da população, tem autonomia de escolhas, boa leitura, estudo eficaz.
Entre nós a minoria rica, às vezes exorbitantemente rica, se acha, como diriam meus netos, salvo raras exceções. Tão vulgares quanto os demais das classes inferiores, os nossos endinheirados ostentam, ignaros de que a elegância exige recato.
Bandalhos ruidosos, exibem desde grifes até rótulos de vinhos caríssimos, sem excluir a possibilidade de manter no charuto o anel da marca, sinal indiscutível de que aquele fumante mataria a raposa da caçada. Tão manipuláveis midiaticamente quanto aqueles que os invejam e não menos ignorantes.
A mediocridade rima com prepotência. Transcrevo passagens do discurso de Michel Temer, pronunciado no Dia Internacional da Mulher. É a ode do poeta de Anônima Intimidade à rainha do lar.
• Tenho absoluta convicção, até por formação familiar e por estar ao lado da Marcela, o quanto a mulher faz pela casa, o quanto faz pelo lar, o que faz pelos filhos. E, portanto, se a sociedade vai bem, quando os filhos crescem, é porque tiveram uma adequada educação e formação em suas casas. E seguramente isso quem faz não é o homem, isso quem faz é a mulher.
• Ao longo do tempo, as senhoras, as mulheres, deram uma colaboração extraordinária ao nosso sistema. E hoje, como as mulheres participam intensamente de todos os debates, eu vou até tomar a liberdade de dizer que na economia também, a mulher tem uma grande participação.
• Ninguém mais é capaz de indicar os desajustes, por exemplo, de preços em supermercados do que a mulher. Ninguém é capaz de melhor detectar as eventuais flutuações econômicas do que a mulher, pelo orçamento doméstico maior ou menor.
Tal é o presidente do Brasil, o primeiro mandatário. Não é deste mundo contemporâneo, Michel Temer é do país da casa-grande e da senzala. Será que percebe? Receio que não.
Carta Capital
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