No almoço de domingo um familiar grisalho e de bigode comentou, enquanto degustava uma costela bovina, a decisão do Supremo Tribunal Federal de que presos em celas superlotadas devem ser indenizados pelo Estado e proferiu um discurso indignado contra a possibilidade de ter de pagar indenização para estes vagabundos, em suas palavras. O tema estava circulando no final de semana via memes e outras formas contemporâneas de manifestação rápida e irrefletida e num grupo de whattsapp de meus colegas da época da faculdade, um camarada comentou a mesma notícia, também manifestando revolta com a possibilidade de ter de pagar indenização para um vagabundo, assassino e traficante.
Não respondi, no primeiro caso para evitar indigestão e no segundo porque minha cota de ponderações no grupo já estava esgotada e eu queria evitar ser considerado um mala. Entretanto, caminhando pela cidade na noite quente de fevereiro, observando gatos pretos em seus passos cuidadosos e moradores de rua dormindo embaixo das marquises, pensei no assunto.
Seria o caso de lembrar que as condutas consideradas tráfico de drogas são praticadas com enorme freqüência pela classe média, cada vez que um amigo fornece ao outro, ainda que gratuitamente, uma substância proibida, por exemplo – mas, como diria Criolo, “teu 12 de condomínio não carrega a mesma culpa”. Ou de recordar que menos de 10% dos presos são condenados por homicídio e que o índice de apuração de autoria deste delito é ínfimo.
Poderia ser dito também que de fato pagar indenização em razão de violação de direitos humanos em razão de celas superlotadas de fato não é a melhor solução, pois o correto seria soltar o excedente de presos, já que não é aceitável no atual momento histórico que uma pessoa seja obrigada a viver numa cela na qual caberiam seis pessoas com outras 39. Enfim, muita coisa poderia ser dita, mas o que realmente me tocou foi notar que nos dois casos apareceu a expressão vagabundo, para definir o brasileiro encarcerado.
Digo isso, pois conforme as pesquisas que venho realizando desde a época do mestrado, esse dito vagabundo trabalha desde a infância. Enquanto os jovens da classe média, aos dez anos, aguardavam a Kombi escolar para ir ao colégio particular, estudar no turno da manhã e pela tarde fazer inglês, natação, aulas de violão, jogar botão ou não fazer nada, o menino dito vagabundo vendia bala na sinaleira ou ajudava o pai a virar massa na construção.
Aos 12, enquanto o jovem bem nascido ganhava leite com nescau da empregada doméstica em seu quarto, o menino vagabundo cuidava da irmã mais nova e de mais algumas crianças da vizinhança – suas mães, domésticas, cuidavam dos jovens da classe média. Aos 16, enquanto íamos ao jogo do Grêmio cantando e tomando cerveja ao longo do caminho, o menino vagabundo vendia latão na frente do estádio, carregando um isopor em cima de um carrinho de duas rodas, e talvez ali o tenhamos conhecido numa efêmera relação comercial, na qual pagamos cinco reais no latão que ele comprou por dois no mercado atacado. Aos 18 o menino vagabundo já estava preso, foi flagrado vendendo maconha para um estudante de direito.
Pode ser também que ele tenha trabalhado lavando carros ou cuidando carros na rua. Pode ser que tenha trabalhado de camelô, carregando caixas na CEASA, catando lixo seco e puxando carrinho pela cidade, varrendo ruas como gari ou em alguma das atividades braçais que desde a escravidão são reservadas para os brasileiros que nascerem sem o bilhete premiado, sem os privilégios das classes médias, nas vilas que inundam na enchente, nas periferias nas quais as aulas da escola são canceladas em razão de tiroteios, nas ocupações de casas de madeiras que pegam fogo num incêndio suspeito em área desejada pela indústria imobiliária.
O fato é que o menino vagabundo trabalha desde os dez anos de idade, ao passo que o trabalhador da classe média pode retardar o início de sua vida laboral até a conclusão do curso superior, lá pelos 22, 24 ou 26 anos. Ou mais.
Evidentemente, um será o dono do sapato e o outro o engraxará. Quanta vagabundagem!
Marcelo Mayora é Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professor de Criminologia da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Carta Capital
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