por Débora Melo — publicado 15/03/2017 00h10, última modificação 15/03/2017 09h45
Ao mesmo tempo em que dificulta o acesso à aposentadoria, governo quer desvincular as pensões e o BPC do salário mínimo
Estudo do Ipea aponta que, com novas regras, 47,3% das mulheres não vão conseguir se aposentar
Um grupo de trabalho do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) prepara uma série de notas técnicas sobre os impactos negativos que a reforma da Previdência proposta pelo governo Michel Temer trará às trabalhadoras brasileiras. Além de estabelecer um mínimo de 65 anos de idade e 25 anos de contribuição, a proposta prevê desvincular as pensões do salário mínimo.
Outro ponto crítico do texto enviado ao Congresso Nacional é a inclusão de mudanças nas regras de concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC), que também deverá ser desvinculado do mínimo. O BPC é concedido a idosos e portadores de deficiência em situação de pobreza, sem a necessidade de contribuição à Previdência Social.
A economista Joana Mostafa, integrante do grupo de trabalho do Ipea, elencou os pontos mais graves da reforma e criticou as mudanças nas pensões e no BPC. "Sem aposentadoria, as mulheres estarão desprotegidas e acabarão caindo no BPC. E é justamente no BPC que o governo quer um ajuste: estão propondo a desvinculação do salário mínimo e o aumento da idade, de 65 para 70 anos. É uma reforma muito perversa."
CartaCapital: Qual é o ponto mais grave da reforma da Previdência, no que diz respeito às mulheres?
Joana Mostafa: O mais grave, para nós, é a mudança no tempo mínimo de contribuição para acessar a aposentadoria, de 15 para 25 anos. No mercado de trabalho brasileiro existem várias desigualdades. A rotatividade, a intermitência do trabalho, a informalidade, tudo isso vai fazer com que a grande maioria dos trabalhadores não consiga alcançar 25 anos de contribuição.
No caso das mulheres, a divisão sexual do trabalho, em que elas assumem grande parte dos afazeres domésticos, faz com que elas tenham mais dificuldade de acessar o mercado formal e, portanto, mais dificuldade de acumular os anos de contribuição. Hoje, 15 anos de contribuição já exclui muita gente. Para as domésticas, por exemplo, é muito difícil. Aumentar para 25 anos vai excluir ainda mais, só os mais estruturados no mercado de trabalho vão conseguir.
Nós fizemos um cálculo e chegamos à conclusão que, no futuro, 47,3% das mulheres não vão alcançar os 25 anos de contribuição. Para os homens, esse percentual será de 30%. Então é claro que essa reforma vai afetar os homens também, porque muitos sofrem com o trabalho precário, com a rotatividade, mas vai afetar ainda mais as mulheres, justamente por conta da divisão sexual do trabalho.
CC: O relator da reforma na Câmara, deputado Arthur Maia (PPS-BA), admitiu que a proposta é injusta com a mulheres e sinalizou que o texto pode trazer alguma diferenciação às mulheres que têm filhos. Qual sua opinião a respeito?
JM: A todas as mulheres é atribuído socialmente um papel, que é o papel de cuidados: cuidar da casa, das crianças, dos idosos, das pessoas com deficiência. Não importa se ela efetivamente vai executar esses cuidados, se ela é mulher, é atribuído a ela esse papel. A questão do cuidado é muito ampla, não dá para considerar só o evento maternidade.
As mulheres jovens, sem filhos, se deparam no mercado de trabalho com uma taxa de desemprego, por exemplo, muito maior que a dos homens, porque o mercado já efetiva o preconceito e a desigualdade de gênero no sentido de achar que essa mulher, um dia, se afastará da sua carreira. Então eles preferem os homens, porque aos homens não é atribuído esse papel social do cuidado.
Joana Mostafa: 'A Previdência é a única política que dá valor ao trabalho não remunerado das mulheres' (Foto: CUT)
CC: Isso tende a mudar?
JM: Tende a mudar, inclusive isso vem melhorando no Brasil. Mas nós estamos muito distantes de países como os da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico], por exemplo, que foram inclusive citados na justificativa da reforma.
Nós somamos as horas de trabalho remunerado com as horas despendidas em afazeres domésticos, que é tudo levantado pela Pnad [Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios], e concluímos que as mulheres trabalham, em média, oito horas por semana a mais que os homens. No final da vida laboral, quando elas se aposentam após 22 anos de contribuição, em média, elas terão trabalhado 5,4 anos a mais que os homens. É a partir desse dado que nós estamos sugerindo que os cinco anos de diferença na aposentadoria por idade, de 60 para 65 anos, condizem absolutamente com a realidade brasileira.
Nos países da OCDE, as mulheres trabalham, em média, 3 horas e 11 minutos a mais que os homens por semana, somando a jornada remunerada e a não remunerada. São países desenvolvidos, onde há licença-maternidade de um ano, onde a licença pode ser compartilhada entre homens e mulheres...
Esse tipo de arranjo de uma regra do Estado faz com que você estimule uma divisão mais justa de papeis no trabalho remunerado e no trabalho de cuidados. Mas não é o tipo de política que está sendo proposto pelo governo, pelo contrário. O governo só está propondo apenas tirar (direitos).
CC: Algumas pesquisadoras defendem um período de transição, até que o País tenha políticas públicas fortes para combater essas desigualdades. Como a senhora avalia essa sugestão?
JM: Eu acho interessantíssimo. Nós estamos trabalhando em uma proposta nesse sentido. Hoje, as creches atendem apenas um terço das crianças entre 0 e 3 anos. Quem está cuidando (das que estão fora da creche)? A mulher. Três anos fora do mercado de trabalho é muita coisa. Como ela volta depois? Volta de forma precarizada, é óbvio que ela não vai chegar nunca aos 25 anos de contribuição. Essa questão das creches é algo que a gente poderia colocar em um indicador multidimensional, para uma regra de transição, até chegar perto dos 65 anos de idade.
É muito importante falar do mercado de trabalho, porque a Previdência é uma política absolutamente correlacionada ao mercado. Essa regra (aposentador por idade aos 65 anos, para homens, e aos 60, para mulher) é a única política que dá valor ao trabalho não remunerado, porque é uma compensação. Falar em compensação parece ruim, mas não é. É uma compensação que dá reconhecimento, que valora. Afinal, cinco anos de trabalho tem valor econômico.
CC: O secretário da Previdência, Marcelo Caetano, já disse em entrevista que tanto a desigualdade de gênero quanto a desigualdade de renda não devem ser resolvidas pela Previdência...
JM: É uma visão bastante tacanha. Se o Estado quiser simplesmente reproduzir o mercado de trabalho, ele será altamente regressivo e irá reproduzir as maiores desigualdades. Agora, o que a Previdência tenta fazer? Ela tenta distribuir os rendimentos derivados da contribuição. Considerar apenas o poder contributivo das pessoas seria transformar o sistema previdenciário em algo muito parecido com o de capitalização. Não é o nosso caso. O nosso sistema previdenciário é de repartição e solidário.
CC: Estão querendo subverter a lógica do sistema, então.
JM: Sim, porque estão privilegiando a outra perna, que é a perna da sustentabilidade econômica e fiscal. Mas sustentabilidade fiscal vista também de uma forma tacanha, baseada apenas nas contribuições. Porque é possível financiar o sistema. Mas a forma como vamos financiar esse sistema é uma decisão social nossa, do Brasil. Os brasileiros têm que decidir que tipo de proteção eles querem e qual é o seu financiamento possível. Se esse governo não dá conta de fazer o financiamento, isso é problema desse governo, não é problema do Brasil.
CC: Uma reforma é necessária, na sua opinião?
JM: Reformar o sistema de Previdência é uma questão contínua, algo que temos sempre que fazer. Nós, do Ipea, não somos contra isso, há vários parâmetros que precisam ser reformados. Mas não do jeito como foi proposta, pois, no conjunto da obra, a reforma é ruim, principalmente para as mulheres. Há o aumento da idade e do tempo de contribuição e há, ainda, a proposta de desvincular as pensões do salário mínimo. Hoje, 74% das pensões são adquiridas pelas mulheres. E por quê? Justamente nós temos, ainda, uma divisão sexual do trabalho, onde a participação das mulheres no mercado de trabalho é de 55%, enquanto a dos homens é de 78%.
A vida laboral das mulheres está muito ligada ao domicílio, e elas não conseguem ter acesso à aposentadoria, a não ser via pensão. E essa reforma propõe desvincular a pensão do salário mínimo. Estamos criticando muito esse ponto da proposta, porque é um ataque em cheio às mulheres, por conta da divisão sexual do trabalho.
Ao não dar essa proteção social às mulheres que passaram a vida toda fazendo trabalho de cuidados você está, no fundo, desestimulando mulheres e homens a continuar com esse mesmo arranjo. O resultado disso é que, no futuro, possivelmente a taxa de fecundidade cairá mais rápido ainda. O que vai gerar outro problema.
CC: Nesse sentido, vocês também têm criticado as mudanças no Benefício de Prestação Continuada (BPC), certo?
JM: Sim, este é outro ponto que acerta em cheio as mulheres. Os homens também, mas principalmente as mulheres, que são as mais atingidas pelas precarização no mercado de trabalho e que não vão conseguir atingir os 25 anos de contribuição. Sem aposentadoria, elas estarão desprotegidas e acabarão caindo no BPC. E é justamente no BPC que o governo quer um ajuste: estão propondo a desvinculação do salário mínimo e o aumento da idade, de 65 para 70 anos. É uma reforma muito perversa.
Carta Capital
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