Depois de primeiros dias com filmes em competição que variaram do fraco ao bom, mas praticamente nenhum excelente, o novo longa do grego Yorgos Lanthimos, The Killing of a Sacred Deer abriu a semana com a expectativa de ser um dos candidatos à Palma de Ouro desta edição. Mas não deve ser desta vez que o diretor dos ótimos Dente Canino e The Lobster leva para casa o prêmio máximo do Festival de Cannes.
Estrelado por Nicole Kidman e Colin Farrel, o longa é um engenhoso jogo de cena e traz os dois atores (além do elenco juvenil) em performances memoráveis. Nicole prova com sua performance na pele da médica Anna Murphy que, apesar de veterana, tem sempre muito o que aprender. “Eu sempre fui rebelde. Não é a hora de eu me conformar. Eu apoio sempre pessoas que são únicas e têm um estilo muito diferente”, comentou a atriz australiana, que este ano passa pela Croisette com quatro projetos. Além de The Killing…, está na série de Jane Campion, Top of the Lake, e nos longas How to Talk to Girls at Parties e O Estranho que Nós Amamos (este, de Sofia Coppola, em competição e também ao lado de Farrel).
Mas certamente é o longa de Lanthimos o projeto que exigiu mais liberdade criativa da atriz. Nicole vive uma mãe de família em uma situação surreal e aterrorizante. Está ao mesmo tempo fria e sexy, emotiva e cerebral. “Eu adoro trabalhar. É ainda minha paixão e eu preciso trabalhar. E Yorgos é um diretor incrível. Amei o projeto desde o roteiro. Como um ator, você não pode ser um doido por controle das situações. É preciso estar disponível para projetos inovadores”, completou a atriz.
De fato The Killing… não é nada convencional. Mas há uma certa falta de profundidade da trama que o afasta da Palma. Confirmado pela forma com a que o diretor lidou com as questões dos jornalistas durante a entrevista concedida logo depois da sessão do filme, o mergulho não muito profundo nas zonas sombrias de uma família faz de The Killing of a Sacred Deer um filme que é competente, mas que não exige do espectador mais do que um jogo cerebral (e não necessariamente visceral) para acompanhar a história do casal de médicos Steven Murphy (Farrel) e Anna Murphy (Nicole).
Ele é um cardiologista bem sucedido. Ela é uma oftalmologista também de sucesso. Aparentemente tudo vai bem. Mas os constantes encontros de Steven com o jovem Martin (Barry Keoghan) desperta tanto a desconfiança do espectador quanto de Anna.
Está neste triângulo nada amoroso a maior força do longa, que também tem ótima atuação da jovem Rafael Cassidy (Kim, a filha do casal, de 14 anos) e Sunny Sullivan (Bob, o filho de cerca de 10 anos). Em uma trama que à primeira vista pode ser lida como uma alegoria, quase uma tragédia grega, sobre a culpa e a justiça, sobre a causa e a consequência de cada ato que se toma, o tom simbólico se perde em meio a engenhosidades da narrativa visual, da construção do clima de suspense psicológico (ou quase), do ‘vamos testar até onde o público suporte e como ‘interpreta’ o meu jogo’.
Quando Yorgos afirma que, apesar de grego e, muito por isso, ser sempre asssociado aos grandes mitos e tradições da narrativa ocidental, The Killing não tem nada de simbólico, alegórico ou mais profundo que “um filme muito simples sobre vingança”, a trama do que poderia ser chamado em português “O assassinato de um cervo sagrado” perde consideravelmente sua força.
Negar o simbolismo pode ser mais um jogo de Yorgos, um dos mais criativos diretores da nova geração (que levou a mostra Um Certain Regard de 2009 com o genial Dente Canino e concorreu este ano ao Oscar de Melhor Roteiro com The Lobster). Tomara que sim.
Na trama, Martin é um adolescente de 16 anos, filho de um paciente que morreu na mesa de operação (nas mãos do Dr. Murphy) e exige justiça por sua perda. Para isso, sem apelar para spoilers, pode-se dizer que que Dr. Murphy também vai ter de perder algo. No entanto, Martin é um personagem quase (ou totalmente) psicopata, do tipo que fica mais triste quando descobre que, além dele e de seu falecido pai, todos comem espaguete enrolando a massa no garfo, o que faz dele “só mais um”.
A aparente desconexão emocional e a sede por vingança poderia dar a Martin um quê de Max Cady teen (Robert De Niro, em Cabo do Medo, de Martin Scorsese) e frio, mas esta força se perde em meio a situações que mais parecem um jogo de A Escolha de Sofia sádico.
Há, ainda sim, muito o que se valorizar no longa de Lanthimos e os elementos de sua narrativa merecem uma análise futura mais detalhada. No entanto, sua clara fuga das perguntas sobre seu processo criativo e suas intenções ao construir a trama mais sinalizam para uma falta de conclusão de onde se quis chegar do que uma consistência de discurso de cinema. “É um filme direto, que fala de vingança. A gente tentou passar longe de simbolismos. Além disso, não sei falar muito de meus filmes”, respondeu Yorgos, meio resmungando.
Nicole, que aprendeu a lidar com o jeito lacônico do diretor, pontuou: “Ele é assim. Às vezes eu pedia instruções no set e ele murmurava ou só levantava as sobrancelhas. Eu meio entendia que eram estas as direções que ele tinha para dar.” Talvez, assim como Nicole, a crítica de Cannes tenha de aprender a interpretar as levantadas de sobrancelhas que o diretor dá em seu filme.
Carta Capital
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