Um grupo de nove pessoas obteve o reconhecimento da situação de trabalho degradante – uma das modalidades de trabalho escravo contemporâneo – em um assentamento no município de Colônia do Piauí.
No processo, decorrente de uma Ação Civil Pública, o juiz Carlos Wagner Araújo Nery da Cruz condenou dois réus envolvidos no processo, sendo um o proprietário original e outro, o arrendatário da fazenda. Eles terão que pagar, de forma solidária, verbas trabalhistas e indenizações individuais, além de indenização coletiva, por dano moral. Na sentença, o juiz determinou o bloqueio imediato, pelo sistema Bacenjud, dos valores de R$ 400 mil de cada um dos dois réus, de forma a garantir o pagamento das verbas trabalhistas, das indenizações individuais e da indenização coletiva, por danos morais. E também expediu alvarás para que os trabalhadores recebam seguro-desemprego. O julgamento transitou em julgado em 23 de junho de 2017 – ou seja, não cabe mais recurso.
A condenação inclui a obrigação de assinatura da carteira de trabalho e o pagamento dos respectivos direitos a cada um dos trabalhadores, com base em salário de R$ 1.400, incluindo aviso prévio, décimo-terceiro salário, férias e FGTS, entre outras verbas. As indenizações individuais, por dano moral, implicam o valor de R$ 10 mil para cada um dos trabalhadores. Também foi reconhecido o pedido para pagamento de indenização por dano moral coletivo, recaindo sobre cada um dos dois réus a condenação para pagar o valor de R$ 300 mil. Em sua sentença, o juiz determinou que os valores da indenização coletiva, “ao invés de serem depositados em prol do Fundo de Amparo do Trabalhador, serão investidos em projetos que beneficiem a sociedade indiretamente lesada, no raio de jurisdição desta Vara do Trabalho, tudo após a anuência do autor da presente ação, no caso o Ministério Público do Trabalho; com redução da respectiva multa, conforme exposto na fundamentação”.
Condições degradantes
Em fevereiro de 2016, o Ministério Público do Trabalho recebeu denúncia, por meio eletrônico, com relato de violações de direitos trabalhistas praticadas na propriedade rural denominada Projeto Flor da América, que atuava com corte de madeira no município de Colônia do Piauí. A denúncia recaiu, primeiro, contra o proprietário original e, posteriormente, contra o arrendatário da fazenda. Ao realizar inspeções no local, dois meses depois, o MPT constatou a veracidade das denúncias, inclusive identificando a pessoa que atuava como aliciador (ou “gato”, como é conhecido), que arregimentava trabalhadores de outros Estados, a mando do dono da fazenda. Algumas das irregularidades encontradas:
ausência de banheiros e de materiais de higiene e limpeza, sendo que as necessidades fisiológicas eram realizadas no chão, na mata local;
não fornecimento de vestimentas adequadas aos trabalhadores;
não fornecimento/utilização dos chamados EPIs (Equipamentos de Proteção Individual), que incluem vestimenta própria para o operador de motoserra, capacete, protetor auricular, protetor facial, óculos e luva;
ausência de copos descartáveis ou de uso individual (os trabalhadores envasilhavam a água, de qualidade duvidosa, em garrafa térmica para o consumo nas frentes de trabalho);
a alimentação era inadequada e de baixo valor nutritivo (nenhuma das refeições continha carne); era preparada e servida em local sob más condições de higiene e de conservação;
não havia mesas e cadeiras para refeições;
ausência de camas ou armários para os trabalhadores, que repousavam em redes e colchões improvisados no chão, sem capas, sujos e rasgados;
as motosserras não dispunham de itens básicos de proteção contra acidentes, com risco grave e iminente de acidentes de trabalho.
Além das constatações durante as inspeções no local, o MPT fez constar nos autos diversos depoimentos de trabalhadores envolvidos que confirmaram as denúncias apresentadas.
Instaurada a Ação Civil Pública, coube ao titular da Vara do Trabalho de Oeiras analisar os pedidos do Ministério Público do Trabalho e dar sequência ao processo. Assim, o juiz Carlos Wagner entendeu que, diante dos fundamentos e provas apresentadas nos autos, restou demonstrada a configuração de trabalho em condições análogas à de escravo, e concluiu a sentença nos termos já mencionados.
Ao ser notificado, o primeiro réu – o proprietário original do assentamento rural –defendeu-se alegando, preliminarmente, que não poderia ser penalizado por ato que não praticou, na medida em que em 2015 ele teria vendido o empreendimento a outra pessoa. Quanto ao mérito, o réu negou rebateu todos os pedidos apresentados pelo MPT.
O segundo réu – o suposto comprador do empreendimento –, ao ser notificado, também defendeu-se na mesma linha do primeiro: alegou, preliminarmente, que não poderia ser responsabilizado, pois “jamais foi arrendatário das terras do Projeto Flor da América, tendo sua relação se limitado tão somente a adquirir lenha da empresa Carvão Colonial Ltda – ME para sua empresa Gesso LCB Indústria e Comércio Ltda. E, no mérito, também rebateu os pedidos apresentados pelo MPT.
Ocorre que nenhum dos dois empresários compareceu à audiência – o que ensejou ao juiz determinar a confissão aos réus em relação à matéria de fato.
Além das provas – inclusive testemunhais – apresentadas nos autos, o juiz considerou, para sua decisão de arrolar os dois empresários como réus solidários no processo, a existência de procuração pública lavrada em 2016, em que um empresário concede ao outro “amplos poderes de representação junto ao IBAMA e SEMAR-PI, além de assinar contratos e distratos, tudo em referência ao projeto de plano de manejo florestal sustentável denominado Fazenda Flor da América, localizada no Município de Colônia-PI”.
Assim, o magistrado refutou a tese de que haveria apenas relação comercial entre o primeiro e o segundo réu, pois este, “na verdade recebeu todos os poderes em relação à exploração do projeto de manejo florestal da respectiva Fazenda”.No mérito da questão, o juiz concluiu que “a instrução processual demonstrou, após a colheita da prova oral, que os trabalhadores listados na presente ação coletiva eram, de fato, submetidos a trabalho degradante. Tal figura lesiva ao meio ambiente do trabalho, que se constitui uma garantia de natureza fundamental e que ofende a dignidade da pessoa humana, configura-se pela ausência de alojamentos adequados, pela ausência de alimentação adequada e saudável, pela ausência do fornecimento de Equipamentos de Proteção Individual aos trabalhadores, pela falta de reconhecimento do vínculo com anotações na Carteira de Trabalho e Previdência Social; em tudo isso pela “coisificação” da pessoa humana.
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