"A Elite do Atraso" é obra de autoria de Jessé Souza, professor da Universidade Federal do ABC e estudioso profundo da realidade brasileira. A ênfase maior desse livro é no período de 2016 a 2017, sem prejuízo de abordagem maior da história do Brasil.
Vou reproduzir aqui neste Blog trechos importantes da análise promovida pelo autor que vale a pena, e muito, ser seriamente estudada e profundamente refletida por todos nós.
Vamos a uma das citações muito importante, ou talvez a mais delas, pgs. 209 a 214:
"Normalizando a exceção: o conluio entre a grande mídia a a Lava Jato
No dia 17 de junho de 2017, arrisquei uma olhada no programa Painel, comandado por William Waack na GloboNews. Foi a mais perfeita introdução a esta conclusão do livro que eu poderia imaginar. Waack propõe a seus convidados a análise da conjuntura política nacional com base na crise entre os poderes da República. A partir daí, cada um se esmera na análise de qual poder estaria invadindo a seara alheia. O mais importante, como sempre acontece na vida, no entanto, seria aquilo que não foi perguntado e, portanto, que não poderia ter sido respondido: seria perguntar quem mais ajudou para que a bagunça institucional entre os poderes e a crise atual do Brasil atingisse tamanhas proporções?
Pus-me, então, naquela posição que certamente o leitor também já deve ter se posto em diferentes ocasiões: e se eu estivesse lá respondendo às questões erradas montadas no perverso teatrinho global para fazer as pessoas de imbecis? Ninguém.nasce imbecil, mas podemos ser feitos de imbecis, e a Rede Globo se especializou nesse trabalho. Bem, eu teria aproveitado cada segundo para desmontar a farsa para milhões, o que garante que jamais seria convidado para coisas assim pelo resto da vida na Globo. Eu teria respondido que quem mais contribuiu para a crise atual, tanto a econômica quanto a política, assim como também para a própria crise entre os poderes, foi a própria Globo, juntamente com toda a grande mídia, que ela comanda ao construir a pauta da mídia como um todo. Teríamos de começar por analisar seu papel no golpe e no pós-golpe, portanto, já que todo o descalabro foi efeito em consequência da mentira midiaticamente produzida. Seria interessante saber o que o jornalista William Waack faria: interromperia o programa? Faria de conta que não existo? Bem, deve ser por isso que ele só convida quem pensa como ele.
Por que a grande mídia, e muito especialmente a Globo, continua tratando a corrupção como se ela estivesse em todas as instituições menos nela? Até quando? E ainda se põem comentaristas e âncoras com ar de indignados com a situação moral do país, permitindo a identificação com a audiência imbecilizada? Por que os procuradores da operação Lava Jato, da boca para fora tão indignados com a corrupção quando os âncoras da Globo, não tiveram o menor interesse de saber a efetiva participação da imprensa e, em particular, da emissora, nos esquemas de beneficiamento a empresas privadas que apenas a Odebrecht estava sendo acusada? Emílio Odebrecht em sua delação à Lava Jato, referindo-se às necessidades no Brasil de sua empresa, ressaltou que, além de aportar a engenharia dos projetos, tinha também de cuidar de sua viabilidade financeira. Assim ele declarou textualmente:
O que me entristece, e afeu digo (em relação a) da própria imprensa, que a imprensa toda sabia, que o que efetivamente acontecia era isso. Por que agora é que tão fazendo tudo isso? Por que não fizeram isso há dez, quinze, vinte anos atrás? Porque isso tudo é feito há trinta anos... Por exemplo, na quebra dos monopólios, nós ajudamos a quebra dos monopólios, inclusive sobre a parte de telecomunicações, nós chegamos a montar uma sociedade privada com três ou quatro empresas... uma delas era até a Globo... para criar um embasamento acerca do que estava acontecendo no mundo... para que isso facilitasse aquilo que era decisão de governo, de quebra de monopólio de telefomunicações, da parte do petróleo, e outras coisas...
Um procurador da Lava Jato, que está ouvindo a delação, interrompe o presidente da Odebrecht, não para pedir mais detalhes e abrir um fulcro de investigação que levaria ao elo mais interessante que uma investigação desse tipo poderia abrir. Não a mera associação com partidos políticos, mas a associação entre empesas privadas, imprensa e poder público, com o fito de enganar o público. Em vez disso, o procurador diz, candidamente, "sempre há um momento para começar", se autojustificando em vez de aproveitar a revelação para inquirir e saber mais. Emílio Odebrecht não se faz de rogado com o desinteresse dos procuradores e volta com o assunto:
Mas é importante que haja compreensão disso, isso é uma realidade... Essa imprensa sabia disso tudo, e fica agora com essa demagogia... todos sabiam como funcionava e acho que todos deveriam fazer essa lavagem de roupa suja... pela omissão que tiveram durante todo esse tempo...
O empresário mencionou a existência de uma sociedade privada com participação da Globo, com o objetivo de fazer lobby pela privatização da telefonia pública e pela quebra do monopólio do Estado no setor do petróleo e outros setores. Fernando Henrique Cardoso diria desse trabalho da mídia de enganar o público com as supostas vantagens da privatização, com um interlocutor privilegiado, que "o pessoal está até exagerando". Apesar da relutância dos procuradores da Lava Jato, visivelmente constrangidos com a revelação, afinal, ela se referia não ao patrimonialismo do PT ou Lula, mas à associação de interesses entre a elite do atraso e da rapina e ao papel de sua imprensa de dourar a pílula ao saque das riquezas de todos em benefício de uma meia dúzia de ricaços, Emílio Odebrecht só desistiu depois de muito tentar chamar atenção dos paladinos da justiça.
Emílio Odebrecht queria contar, afinal ele sabia que a Globo e outras mídias estavam mantendo um imagem imaculada em esquema de lesar a sociedade, ficando apenas ele e sua empresa com a conta. Ninguém gosta de ser tratado como tolo e ver seu parceiro de esquema sai imaculado e sem culpa, e ainda tirando onda de "virgem no cabaré" e fazendo o teatrinho de enojado pela situação, como a Rede Globo e o restante da grande imprensa faz. A hipocrisia da Globo e da imprensa em geral era o que irritava e enojava Emílio Odebrecht. Por conta disso o patrono da Odebrecht se referiu várias vezes ao fato, o que qualqur um pode conferir na sua delação que continua na internet, mas os procuradores da Lava Jato se mostraram tão seletivos no seu combate à corrupção quanto William Waack na escolha de seus interlocutores. Certamente, acharam que essa informação não viria ao caso, como costuma dizer o juiz Sérgio Moro quando as informações não se referem a Lula e ao PT.
Como a Globo consegui tamanho poder de, como Emílio Odebrecht insinuou, saber de tudo que acontecia e ainda tirar onda de vestal da moralidade nacional? E, com base no seu monopólio virtual da informação manter uma sociedade imbecilizada e conciliantemente desinformada, subjugar os poderes da democracia representativa e cooptar o aparelho judiciário-policial do Estado, e ajudar, como nenhuma outra instituição, o aprofundamento de uma crise sistêmica, sem perder a concessão pública? Tamanho feito requer governos autoritários e ditadura. Como a Globo conseguiu o feito em tempos de democracia formal?
A formação do que chamei de pacto antipopular entre uma ínfima elite do dinheiro, que encara a sociedade como um todo como espólio para saque financeiro, e os setores mais conservadores da classe média deu-se pelo que chamamos de colonização da esfera pública pelo poder do dinheiro. Se as classes populares são exploradas e reprimidas com violência e a questão social, até hoje, é tratada como uma questão de polícia e violência física, a classe média é mantida leal por outros motivos. Esse ponto é essencial para a compreensão do Brasil contemporâneo.
A servidão da classe média e de suas frações mais conservadoras à elite, que as explora e as usa para a reprodução de seu poder cotidiano, é conseguida por meios simbólicos. Em vez do cassetete da polícia, temos aqui a manipulação midiática das necessidades de autolegitimação da classe média transmutadas em defesa da moralidade estreita da suposta corrupção patrimonialista. A crítica da imaturidade das classes populares sob a forma de populismo fecha o pacote do acordo transclassista que se une contra qualquer forma de ascensão popular verdadeira.
O lócus, onde esse acordo entre desiguais se consuma, é uma esfera pública para inglês ver, colonizada pelo dinheiro e sem qualquer pluralidade de opiniões que permita a construção de sujeitos autônomos e com opinião própria. Contra a classe média, portanto, a violência da elite de proprietários que controla não só a produção intelectual e a informação, é uma violência simbólica. Um tipo de violência não percebido enquanto tal, posto que se vende como se fosse convencimento real.
O mecanismo principal desse tipo de dominação é ma imprensa desregulada e venal, que vende uma informação e uma interpretação da vida social enviesada pelos interesses do pacto antipopular. Isso acontece tanto porque é dependente de seus anunciantes quanto porque participa, ela própria, do mesmo esquema elitista dominante do saque e da rapina do trabalho coletivo. Como não houve aqui a criação do mecanismo da TV pública, que não se confunde com TV estatal, em uma sociedade com pouca leitura e pouca reflexão a dominação simbólica mais violenta encontrou terreno fértil para se desenvolver".
Jessé Souza nos mostra aqui, à exaustão, o papel desempenhado pela classe média, não só em sua participação no Golpe que culminou com a deposição de Dilma Roussef, como na ferrenha perseguição à Lula que culminou com a prisão do maior presidente da República e Estadista brasileiro.
José Augusto Azeredo
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