domingo, 17 de junho de 2018

A relação entre a matéria e as ideias



Marx nos ensina que, "em última instância" a matéria define a ideia.

Esse "em última instância" quer dizer que, nosso pensamento tem uma certa independência em relação à realidade que nos cerca. Ou seja, que nos poderemos pensar algo que não dependa diretamente e sempre da realidade na qual vivemos.

Existem pensadores que, materialistas, entendem que a ideia é sempre produto da matéria. Em última instância sim, mas nem sempre. O ser humano consegue pensar coisas em determinados momentos e circunstâncias que possam não ter relação direta com a base material. Se assim não fosse o homem não teria a independência de dar sua marca ao que pensa, à sua vida, e ao mundo material. Para o bem ou para o mal. Acertando ou errando.

Por outro lado, existem os idealistas, ou seja, aqueles que entendem que a ideia, o pensamento, Deus ou o que lá seja determinam a existência do mundo material>

A propósito, vou interromper a seriedade da digressão até aqui feita, para relatar uma história que, parecendo piada sem ser, nos ajuda a compreender melhor o que estamos dizendo.

Dois amigos meus, dois comunistas, Manoel Santana e Kleber Massena conversavam numa manhã. Santana reclamava de uma dor de cabeça e Kleber que havia perdido seu relógio. Kleber disse para Santana: "pense positivo camarada que a dor de cabeça vai passar". Ao que Manoel Santana respondeu: "se você pensar positivo, Kleber, certamente seu relógio reaparecerá"...

É isso aí, a matéria determina a realidade mas não mecanicamente. E o espírito tem certa autonmia mas sem criar o mundo que nos cerca.

Dito isto, vamos apreciar um pouco do que Jessé Souza nos diz em seu A Elite do Atraso sobre a criação das ideias:

Daí que seja fundamental perceber como as ideias são criadas e qual o seu papel na forma como a sociedade via definir seu caminho específico. Não apenas a mídia, mas também os indivíduos e as classes sociais vão definir sua ação prática, quer tenham ou não consciência disso, a partir desse mesmo repositório de ideias. Novamente, não somos formigas. Em vez de um código genético que define por antecipação o comportamento das formigas e das abelhas, nós só podemos construir e reproduzir um padrão de comportamento por força das ideias que nos ajudam a interpretar o mundo. Afinal, são essas ideias que irão esclarecer os indivíduos e as classes sociais acerca de seus objetivos, interesses e conflitos. Como não somos abelhas nem formigas, mas um tipo de animal que interpreta a própria ação, toda a nossa ação no mundo é influenciada, quer saibamos disso ou não, por ideias. São elas que nos fornecem o material que nos permite interpretar nossa própria vida e dar sentido a ela.
Por conta disso, quem controla a produção das ideias dominantes controla o mundo. Por conta disso também, as ideias dominantes são sempre produto das elites dominantes. É necessário, para quem domina e quer continuar dominando, se apropriar da produção de ideias para interpretar e justificar tudo o que acontece no mundo de acordo com seus interesses.
No mundo moderno, a dominação de fato tem que ser legitimada cientificamente. Quem atribui prestígio hoje em dia a uma ideia é o prestígio científico, assim como antes era o prestígio religioso ou supostamente divino. É a ciência hoje, mais que a religião, quem decide o que é verdadeiro ou falso no mundo. Por conta disso, toda informação midiática, no jornal ou na TV, procura se legitimar com algum especialista na matéria que esteja sendo discutida. Nessa estratégia de dominação, que é mais simbólica que material, é a posse do que é tido como verdadeiro que permite também se apoderar do que é percebido como justo e injusto, honesto e desonesto, correto ou incorreto, bem ou mal e assim por diante. Controla-se a partir do prestígio científico, portanto, tudo que importa na nossa vida. 
Essa é a raiz também, como não poderia deixar de ser, do culturalismo racista que discutimos acima e que manda na nossa interpretação e justificação do mundo hoje em dia. Não por acaso, a dominância do culturalismo racista é um efeito da dominação americana a partir do século XX, muito especialmente a partir da Segunda Guerra Mundial. O racismo cultural americano vai substituir - com enorme vantagem - o racismo fenotípico ou racial do racismo científico que vigorou na fase do colonialismo europeu do século XIX e do começo do século XX. 
O novo racismo culturalista americano foi implementado como política de Estado e não foi deixado à ação espontânea de ninguém. A teoria da modernização recebeu dinheiro pesado do departamento de Estado americano, sob o comando de Harry Truman no pós-guerra, para se tornar paradigma universal. A partir daí, a teoria da modernização americana virou uma espécie de coqueluche mundial. Milhares de trabalhos foram realizados nas duas décadas seguintes com o intuito de mostrar como os EUA eram o modelo universal do planeta. Todos os outros países eram uma espécie de realização incompleta desse modelo. Depois, todos os países colonizados receberam também dinheiro de fundações americanas para veicularem essa teoria e seus pressupostos implicitamente racistas no mundo inteiro, inclusive no Brasil. 
Mas no Brasil, onde a comparação com os EUA foi a obsessão de todos os intelectuais desde o começo do século XIX, a elaboração de nosso culturalismo racista invertido, contra nós mesmos, foi realizada por mãos nativas e antes mesmo da coqueluche mundial do paradigma culturalista racista da teoria da modernização. Somos, por assim dizer, escravos tão subservientes que antecipamos os desejos de nosso senhor antes mesmo que ele o tenha expressado. Somos escravos de casa, escravos de confiança, daqueles que se candidatam a ser um agregado da família, sonho que nossos intelectuais compartilham com nossa elite e nossa classe média em relação aos EUA. Daí que a elaboração de teorias racistas que nos rebaixam e nos humilham tenha sido paralela e relativamente independente desse movimento internacional e político mais óbvio, como estratégia americana de dominação política por meio da ciência no pós-guerra. 
Assim, se na década de 1930, enquanto Talcott Parsons dava os primeiros passos em seu engenhoso esquema a partir do qual se tornaria influência máxima da teoria da modernização no mundo, se desenhava no Brasil a sua contraparte "vira-lata", produto mais típico do pensamento do escravo dócil, ponto a ponto a imagem invertida daquilo que Parsons construía como autoimagem da superioridade dos americanos no mundo.9 Se Parsons e seus seguidores iriam construir a imagem dos americanos como objetivos, pragmáticos, antitradicionais, universalistas e produtivos, nossos pensadores mais influentes iriam construir o brasileiro como pré-moderno, tradicional, particularista, afetivo e, para completar, com uma tendência irresistível à desonestidade. ("A Elite do Atraso", Jessé Souza, pgs. 25 a 27) 

Pois é, e tem muito mais "chumbo" como esses pela frente...
José Augusto Azeredo




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