“Eu considero Médici o maior assassino da História do Brasil”
Um dos maiores nomes da história do jornalismo esportivo brasileiro. Um
dos raros jornalistas a vencer como técnico de futebol. O ano era 1970. O
Brasil era forte favorito a conquistar o tricampeonato no México com uma
campanha arrasadora nas Eliminatórias. Mas havia naquela delegação alguém que
irritava o comando do país. Um comunista que […]
Um dos maiores nomes da história do jornalismo esportivo brasileiro. Um
dos raros jornalistas a vencer como técnico de futebol. O ano era 1970. O
Brasil era forte favorito a conquistar o tricampeonato no México com uma
campanha arrasadora nas Eliminatórias. Mas havia naquela delegação alguém que
irritava o comando do país. Um comunista que não batia continência para
general. João Saldanha, ou o João Sem Medo, apelido dado pelo amigo Nelson
Rodrigues, conduziria a Seleção Brasileira, ou melhor, as “Feras do Saldanha”
para a consagração. Mas, pouco antes da Copa do Mundo, ele é derrubado. Duas
semanas depois de afrontar o presidente Médici com uma declaração que entrou
para a história.
Um regresso no tempo ajuda a contar como a relação entre o jornalista e
treinador vinha desgastada com o Regime Militar. João Saldanha ajudava exilados
políticos em viagens no exterior com a Seleção. “Saldanha era pombo-correio do
Partidão e levava dinheiro para os exilados no Chile e no México. Evidente que
a polícia política brasileira olhava ele, grampeava o telefone dele”, contou o
sobrinho do jornalista e doutor em História pela USP Raul Milliet Filho.
Saldanha sabia que a militância no Partidão poderia custar o cargo de
treinador na Seleção Brasileira, mas entendia que havia uma causa maior acima
do esporte. “Ele sabia que corria riscos. Mas o mais importante não foi o
futebol, foi a atividade política dele. Tanto que ele aproveitava o esporte
para fazer a atividade política”.
Em 1969, morre um dos grandes amigos do João Sem Medo, o guerrilheiro
Carlos Marighela. A morte do companheiro do Partidão intensificou a vontade de
revelar ao mundo os horrores do período militar. Saldanha entregava aos
jornalistas em viagens como treinador da Seleção listas de mortos e
desaparecidos políticos, umas das relações apresentava mais de 3 mil nomes.
“Saldanha ficou com muita raiva da forma como Marighella foi assassinado. Ele
denunciava prisões políticas de outros companheiros, de todas as organizações
de esquerda. Embora o PCB fosse contrário à luta armada. Conversando com os
jogadores isso via à tona. Principalmente com o Tostão”.
O apelido João Sem Medo vinha da forma impetuosa como o jornalista
apresentava as opiniões em crônicas no Jornal do Brasil, no rádio e na
televisão. Não foram raras as vezes que Saldanha “trocou gentilezas” com o
jornalista Armando Nogueira, colega de bancada na até hoje apontada como a mais
importante mesa redonda do futebol na televisão, a ‘Resenha Facit’. Um dos
programas por pouco não acaba em tragédia. O bicheiro Castor de Andrade, na época
o homem forte do time do Bangu, invadiu armado o estúdio de televisão para
tirar satisfações com Saldanha. Em outra ocasião, o goleiro Manga teve de sair
fugido da comemoração de um título porque o então treinador havia ficado
insatisfeito com a atuação do jogador na partida.
Se não havia temor ao enfrentar ao tecer comentários incisivos nos
veículos de comunicação, Saldanha temia o que as consequências da atividade
política poderia trazer para a família. A filha do jornalista, Ruth Saldanha,
contou à reportagem que viveu com nove anos de idade e que retratava o medo de
ser mais uma vítima da repressão no Brasil. “Ele pediu para eu pegar jornais
que estavam em bolsas de supermercado e queimar no tanque de casa. Eram jornais
clandestinos. A gente foi tirando aos poucos e queimando tudo. Eu fiz isso por
muitos dias. Era um período muito tenso. De conhecer pessoas e nunca mais
vê-las”, recordou.
Diante de um período de caça aos comunistas, o leitor que não viveu
aquele período poderá se perguntar como um comunista foi parar no comando da
Seleção Brasileira. Nos anos 60, o país respirava futebol e a vitória ou
derrota da Seleção Brasileira determinava o humor do brasileiro com o país. O
escrete brasileiro fez uma de suas piores atuações em Copas do Mundo em 1966 e
era necessário o reencontro com o povo. E o nome do “comentarista que o Brasil
inteiro consagrou”, forma como era anunciado no rádio, surgiu como a solução
perfeita para a recuperação do prestígio perdido.
A solução se revelou um sucesso no campo. Saldanha já havia experimentado
a consagração como treinador campeão pelo Botafogo. Ao chegar à Seleção, trouxe
novos jogadores e mudou a forma de o Brasil jogar. A campanha nas eliminatórias
foi demolidora, 23 gols marcados e apenas dois sofridos. Um jogo, que parecia
ser fatura liquidada antes da bola rolar, começou difícil para a seleção. O
primeiro tempo contra a fraquíssima Venezuela acabou 0 a 0.
“O time era pior do que é hoje. O Brasil fez um primeiro tempo
horroroso, perdeu vários gols feitos. O João chamou o time e disse pra eles:
“Pra jogar essa porcaria vocês fiquem aí em campo” e jooou a chave do vestiário
fora . Além de entender de tática, ele sabia mexer com o brio dos jogadores. O
jogo acabou 5 a 0 pra nós”, lembrou Milliet.
Chegamos a março de 1970, duas semanas antes da viagem para a Copa do
Mundo no México. João Saldanha havia viajado algumas vezes ao país sede da Copa
ao lado de um militar da Escola de Educação Física do Exército para preparação
dos jogadores quanto ao clima, a altitude e o horário dos jogos. Em uma volta
ao Rio Grande do Sul, estado natal.
Circulava no meio esportivo o burburinho da exigência da escalação do
atacante Dario por parte do então presidente da época, o general Emílio
Garrastazu Médici. O jogador do Atlético Mineiro era um atacante preciso, mas
sem a categoria das “Feras do Saldanha”. Em uma viagem ao Rio Grande do Sul,
estado natal, Saldanha saiu com a seguinte resposta a um radialista sobre a
insistência do general.
“Eu e o presidente temos muitas coisas em comum. Somos gaúchos, somos
gremistas, gostamos de futebol. Nem eu escalo o ministério e nem ele escala
time. Você vê que nós nos entendemos muito bem”. Duas semanas depois, a CBD
presidida por João Havelange anunciava a demissão de João Saldanha. Em um
artigo, Nelson Rodrigues escreveu: “A demissão de João Saldanha foi uma manobra
digna de nosso vômito”.
Engana-se quem pensa que a demissão da Seleção deprimiu o treinador. O
homem que liderou uma guerrilha de camponeses contra senhores de terra, em
1950, no Paraná e, um ano antes, tomou um tiro da polícia no pulmão em uma
invasão da sede da UNE no Rio, voltou a fazer o que mais gostava: jornalismo e
política. Chegou a ser candidato a vice prefeito no Rio de Janeiro, em 1985.
Dois anos depois, concedeu uma entrevista ao programa “Roda Viva”. Saldanha
definiu o presidente militar que ousou enfrentar em apenas uma frase.
“Eu considero Médici o maior assassino da História do Brasil”.
Saldanha morreu em 1990, na Itália, vítima de enfisema pulmonar durante
a Copa do Mundo que comentava para a Rede Manchete de Televisão .
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