Trata-se de um grupo social grande e heterogêneo, que reúne setores que têm acesso, por meio de sua renda e/ou por crédito e endividamento, à oferta material e de serviços proposta pelo sistema de produção e consumo capitalista
Por Christophe Ventura, Mémoire des Luttes
13/06/2018 18:12
Durante a década de 2000, em um contexto de "boom" de exportações de suas matérias-primas, de enriquecimento das sociedades e de hegemonia dos governos progressistas (ou pós-neoliberais) que implementaram, nesse contexto, políticas de redistribuição e modernização, a América Latina experimentou uma grande transformação socioeconômica... e silenciosa: a ascensão do que se convencionou chamar (equivocadamente) de "classes médias". Trata-se, na verdade, de um grupo social grande e heterogêneo, que reúne setores que têm acesso, por meio de sua renda e/ou por crédito e endividamento, à oferta material e de serviços proposta pelo sistema de produção e consumo capitalista – cuja lógica e mecanismos se desenvolveram na América Latina concomitantemente à onda das esquerdas no poder – bem como a uma mobilidade física e social crescente na sociedade. Trata-se de "classes consumidoras". "Pela primeira vez em décadas [na América Latina], a classe média é numericamente maior do que a população vivendo na pobreza", afirmam a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal).
Mas existe a "classe média" e a "classe média". Entre 2001 e 2015, a parcela da população que ingressou na chamada classe média chamada “consolidada”, para usar a terminologia proposta pela OCDE e pela Cepal – ou seja, tendo, por dia, entre 10 e 50 dólares em valor real em 2005, e em paridade do poder de compra (PPC) – passou de 21% para quase 35%. É aqui que houve a maior progressão. Mas uma segunda camada de "classe média" – chamada "vulnerável" e dispondo de soma bem mais modesta entre 1 e 4 dólares (PPC) – passou de 34%, em 2000, para 40% em 2015. Numericamente majoritária entre as "classes médias", essa população de fato saiu da pobreza formal nos últimos quinze anos, mas ainda é formada, em grande parte, pelos pobres e os trabalhadores informais das sociedades latino-americanas. Estes últimos obtiveram acesso parcial e precário ao consumo, sem que sua posição na estrutura socioeconômica tenha se alterado.
O conjunto dessas populações constitui o cerne das evoluções sociopolíticas dos últimos anos na América Latina. Eles são os mais impactados juntamente com a população pobre (de 25 a 30% da população da região), pelos efeitos sociais da crise econômica e financeira global de 2008 que afetam todas as sociedades da região desde o primeiro quarto dos anos 2010.
Em todos os países, a queda nos recursos do Estado levou à deterioração dos serviços públicos e à volta da precariedade e do desemprego (especialmente entre as mulheres e os jovens, quando 25% da população têm entre 15 e 29 anos[ii]). Entre elas, a pobreza e as desigualdades – combatidas de forma significativa nos anos 2000 – voltaram a aumentar. Ao mesmo tempo, a região experimenta uma estagnação na renda per capita e um aumento da inflação.
Apesar de uma ligeira recuperação económica (crescimento estimado de 2,2% em 2018 e 2,8% em 2019[iii]) após cinco anos de desaceleração, sendo dois anos de recessões, 2015 e 2016, as dinâmicas de depressão sociais pós-2008 na América Latina se intensificaram e assumiram uma dimensão política.
Assim, desde os movimentos de contestação social no Brasil contra o governo de Dilma Rousseff (2013-2014), passando pela crise venezuelana, nicaraguense ou os crescentes conflitos sociais na Argentina ou no Brasil contra os governos de direita de Mauricio Macri e Michel Temer (não eleito), toda a região vive nesta dinâmica contestatória permanente.
Vinte anos após aquela que gerou o ciclo progressista e nacional-popular, a América Latina vive uma nova situação populista: está em curso um vasto movimento de desfiliação das maiorias sociais em relação aos governos, às classes e instituições políticas e sociais. Desta vez, a novidade é que dessas maiorias fazem parte as novas "classes médias", surgidas justamente durante o ciclo hegemônico da esquerda no poder. Esse movimento – tão virulento quanto indeterminado do ponto de vista político – não foi previsto, e as esquerdas latino-americanas não anteviram as consequências políticas e ideológicas para elas da ascensão dessas novas "classes médias", para quem não foram elaboradas estruturas políticas e ideológicas específicas e originais que não fossem o acesso a uma nova oferta de infraestruturas e ao consumo popular. Hoje infiéis no plano eleitoral, essas "classes médias" se revoltam contra as elites, que consideram ladras e responsáveis - por sua regressão social sem, no entanto, inscrever essa raiva em uma ideologia esquerda/direita predeterminada. Como resultado, elas podem, como no Brasil, exigir ao mesmo tempo maior acesso a serviços públicos e apoiar – e de forma continuada – uma ordem securitária, regressiva e discriminatória em termos de direitos sociais, econômicos e políticos para os mais vulneráveis - (pobres, negros, mulheres etc).
Essas dinâmicas operam ao mesmo tempo em que a opinião pública continua a descobrir a extensão dos escândalos de corrupção que gangrenam a região e gradualmente minam a legitimidade dos sistemas políticos e das instituições. O caso Odebrecht[iv] – que lembra o laço indissociável entre o corruptor privado e o corrupto público – afeta uma dezena de países e levou à queda do presidente Pedro Pablo Kuczynski (de direita) no Peru. No Brasil, a operação Lava Jato – à qual a Odebrecht está vinculada – constitui o pano de fundo da controversa prisão do ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva, que se considera um "preso político" de um estado hoje entregue a uma longa e profunda crise democrática.
Os acontecimentos atuais preocupam a OCDE e a Cepal, que identificam um "enfraquecimento do contrato social" e uma "crescente desconexão entre cidadãos e instituições públicas" em todos os países da região. De acordo com dados do instituto de pesquisas Latinobarómetro (nos quais se baseiam a instituição regional e internacional), 75% dos latino-americanos dizem não ter mais – ou ter pouca – confiança em seus governos, contra a 55% em 2010. Da mesma forma, 80% deles afirmavam em 2016 que seu governo era corrupto, contra 65% em 2010. Apenas 34% consideraram seu sistema judiciário confiável, enquanto 41% se disseram satisfeitos com o sistema de saúde – comparados a 57% em 2006 – e 56% com seu sistema educacional – contra 63% em 2006.
A América Latina entra em um ciclo eleitoral determinante de dois anos. Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, México, Uruguai e Venezuela enfrentarão eleições em 2018 e 2019. Isso alterará significativamente um panorama político cada vez mais incerto e imprevisível.
Em toda parte, de fato, ganham espaço forças atípicas, à periferia dos partidos estabelecidos. Crescem particularmente as correntes políticas evangélicas. Na Costa Rica, o Pastor Fabricio Alvarado obteve quase 40% dos votos no segundo turno da eleição presidencial de 1º de abril de 2018. No Brasil, essa tendência ganha espaço diariamente, no Rio de Janeiro e em outras partes do país[v]. Na Venezuela, o terceiro colocado na eleição presidencial de 20 de maio de 2018, Pastor Javier Bertucci, recebeu quase um milhão de votos, mais de 10%, particularmente entre as classes mais baixas. Essas igrejas tornam-se atores políticos proeminentes, atraindo parte crescente dos setores populares e pobres, até então eleitores da esquerda. Ao mesmo tempo, as forças populistas de direita crescem de maneira perigosa, particularmente no Brasil.
A longa sequência eleitoral já em curso irá redefinir a relação de forças entre governos liberais-conservadores e nacionais-populares, e redesenhará os equilíbrios regionais. Finalmente, esta relação de forças irá, por sua vez, esclarecer as perspectivas geopolíticas de uma região hoje instável.
A população "pobre", somada à população "vulnerável", representa 65% da população latino-americana.
[ii] Segundo a OIT, 26 milhões de pessoas estavam desempregadas em 2017 na América Latina, ou 8,4% da população ativa. OIT, Panorama Laboral 2017. América Latina y El Caribe, 2017.
[iii] Números e citações de Perspectivas Económicas de AméricaLatina 2018 : Repensando las instituciones para el desarrollo.
[iv] Entre 2001 e 2016, a construtora brasileira pagou cerca de 700 milhões de euros em subornos para obter contratos públicos em diversos países (Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Guatemala, México, Panamá, Peru, República Dominicana, Venezuela).
[v] Sobre o assunto, vale ler o livro de Lamia Oualalou, Jésus t’aime ! La déferlante évangélique, fruto de profundo trabalho de pesquisa (Les éditions du Cerf, Paris, 2018). Ver também « Déferlante évangélique en Amérique latine. Conversation avec Lamia Oualalou » no site Mémoire des luttes.
*Publicado originalmente no Mémoire des Luttes | Tradução de Clarisse Meireles
Carta Maior
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