Meu amigo Ilio Passarelli já falecido, mecânico cuja oficina situa-se na rua Frei Henrique de Coimbra, Lapa, São Paulo, e Chico de Oliveira eram habitués em conversas naquela rua. O Ilio morreu há algumas semanas e Chico seguiu o amigo logo depois. A rua deve ter ficado muito, muito mais triste depois disso...
Por Flavio Aguiar
Chico era sociólogo, economista, cientista político, filósofo humanista, professor de ética e um estilista de primeira. Concordássemos ou não, ler um texto dele ou ouvi-lo falar era sempre um prazer enorme, e uma lição de radicalidade aliada à elegância. Voz rouca, mas aflautada e melódica, fala metódica e didática, palavras poucas em ritmo de contenção: a prosa de Chico lembrava, mutatis mutandis, a de Graciliano Ramos: seca, contundente, generosa com o povo, dissecadora das artimanhas das classes dominantes.
Em nossa convivência na Carta Maior, precedida pela do Jornal Movimento e a que se seguiu uma longa e imorredoura amizade pela USP afora, além da leitura de seus artigos desfrutei da oportunidade de entrevista-lo em vários momentos, ao vivo e em documentários que fizemos sobre as sucessivas edições dos Fóruns Sociais Mundiais e outros conexos.
Com a lucidez costumeira, Chico elaborava a análise das propostas em pauta em relação com a situação econômica e política mundial. Esta clareza vinha da constante de seu pensamento, que o fazia entrar e sair da economia através da política. Para ele a economia não era uma ciência exata, assim como não era um amontoado de números, estatísticas, verdades tão supostamente “ ternas" quanto acomodadamente “ usteras". A economia era tanto um ser vivente e mutante quanto a capacidade de examina-lo, expondo suas entranhas com “engenho e arte”. O engenho e a arte de discernir as ciladas que ali eram armadas contra o povo e sua soberania, em favor das desigualdades e dos golpes para se explorar as maiorias.
Chico tinha um tirocínio político certeiro. Lembro-me dos dias atabalhoados que eram os do processo de “distensão” ou “abertura” dita “lenta, segura e gradual”. Falava-se muito do caminho da “abertura", trilhado pela parte do governo - também ditatorial e interessada no processo - e a resistência dos setores contrários a ele - que planejavam eternizar o golpe de 64. Eram dias que sucediam à exoneração do então Ministro do Exército, General Sylvio Frota, pelo General Ernesto Geisel, incidente motivado pela disputa sucessória do cargo que o último ocupava, a presidência, em 1977. Coisa comum no Brasil, contaram-se os generais perfilados de cada lado, e Geisel levou vantagem. Deposto Frota, como disse Elio Gaspari, Figueiredo terminou eleito com 100% dos votos: 1 x 0, voto de Geisel, depois confirmado pelos lacaios de plantão no Congresso Nacional. Entretanto, a turbulência não arrefecera. E numa certa conversa em sua casa, Chico de Oliveira fez a seguinte observação: “estamos vivendo estranha época. Para cometer uma loucura, bastam quatro pessoas e um carro”. De fato, algum tempo depois, aconteceu o atentado do Rio Centro, planejado por militares de extrema-direita para por fim ao processo da “abertura”. Até hoje não se sabe muito bem quantas pessoas estavam envolvidas, embora no carro em que explodiu a bomba houvesse apenas duas. Mas o fato confirmou que, além de professor, Chico era um profeta.
E era um profeta apaixonado, pelas suas causas, apaixonado pela inteligência, pela integridade, que defendia suas ideias com veemência. Por vezes demasiada. Como era muito amigo dele, fiz-lhe este reparo algumas vezes, coisa que ele ouviu com o bom humor que o caracterizava. Mas nunca desistiu da veemência. Ainda bem.
Carta Maior
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