Personagens de uma greve que durou de 1962 até 1969 contam por que essa batalha, 50 anos depois, ainda está forte na memória da comunidade
Publicado 13/11/2012 - 11h16
O movimento dos queixadas
começou em 1962 e durou mais de sete anos. Em 1975 a greve foi considerada
legal. O governo federal pagou os atrasados e interveio na fábrica dos Abdalla.
Em 1987 a Cimento Perus fechou as portas (Foto:Gerardo Lazzari/RBA)
Os piquetes lembravam os de outras greves. A diferença é que mais
de 200 policiais estavam dentro da fábrica desde as 3h da madrugada, a pedido
do patrão. Quem estava lá teve de sair. E quem chegava não entrava. O
movimento, marcado para começar às 6h de 14 de maio de 1962 caso as
reivindicações não fossem atendidas, foi diferente também porque se prolongaria
por sete anos e quatro meses, provavelmente um caso único no mundo.
Foi assim que cruzaram os braços todos os 1.400 trabalhadores na
fábrica de cimento localizada em Perus, no noroeste da capital paulista, e nas
pedreiras de calcário situadas a 20 quilômetros dali, no município de Cajamar.
Eles reivindicavam o pagamento de salários atrasados, o cumprimento de acordos
coletivos, reajuste e pagamento da verba para casa própria no período entre
outubro de 1960 e maio de 1962. Pela primeira vez, desde 1951, foi desligado
todo o maquinário obsoleto, desgastado e barulhento – o que não acontecia nem
para manutenção.
Durante 99 dias, tudo parou naquela que foi a maior fábrica de cimento
da América Latina e fornecedora do produto para a construção dos primeiros
edifícios de São Paulo, viadutos, pontes, estradas, estádios e até da capital
federal. O aposentado Sebastião de Souza Silva, 79 anos, mais conhecido como
Tião de Perus, lembra-se bem daqueles dias. Admitido como motorista pouco tempo
antes, ele relata que a paralisação incluía trabalhadores de três outras
empresas do patrão José João Abdalla, o poderoso J.J. Abdalla, dono de um
complexo industrial, bancário, agropecuário e latifundiário, influente na
política e famoso por comprar fábricas para explorar até que não dessem mais
lucro. Deputado estadual e federal, foi secretário do Trabalho do governador
Ademar de Barros entre 1950 e 1951.
A Companhia
Brasileira de Cimento Portland Perus (CBCPP) foi inaugurada por um consórcio
formado por empresários canadenses e brasileiros em 1926, quando ainda não
havia leis para garantir direitos trabalhistas, apenas decretos específicos
sobre limite de idade e jornada noturna. Até a década de 1940 atendia à metade
da demanda nacional. Em 1951 o empresário J.J. Abdalla comprou a fábrica, a
pedreira e a estrada de ferro Perus-Pirapora.
“Nos primeiros
99 dias parou tudo, mas no centésimo houve uma operação fura-greve. Muitos
voltaram ao serviço. Eu, não”, conta Tião. Segundo ele, havia a interferência
da deputada estadual Conceição da Costa Neves, que estava sempre no bairro para
convencer os operários a retornar ao trabalho. Ia à casa de muitos, acompanhada
pela polícia, e até os convidava para reunião com Abdalla. Os acordos assinados
em separado pelos operários das outras empresas – o que Tião chama de traição –
favoreceu a operação fura-greve.
Filho de
trabalhador da fábrica, o historiador Elcio Siqueira, que estudou o episódio
para seu mestrado e doutorado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),
conta que em 21 de agosto, data da operação, houve intervenção policial e os
agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) iam atrás dos
grevistas em casa. Houve inclusive ocupação militar em Perus e Cajamar. “Dos
1.100 grevistas, 700 ‘indesejáveis’ foram impedidos pelo patrão de retornar, o
que os levou a uma resistência épica”, afirma.
Ao longo
daquele ano foram feitas várias passeatas no bairro e no centro de São Paulo,
além de greves de fome na frente da residência oficial do governador Carvalho
Pinto. Sem acordo, em janeiro de 1963 o Sindicato dos Queixadas, como era
conhecido, entrou com ação para reintegrar os trabalhadores. Abdalla negou, com
a justificativa de abandono de emprego. E ainda quis despejá-los das vilas
operárias, mandando inclusive cortar água e luz nas casas.
Houve resistência e
nova ação na Justiça. Os dirigentes sindicais recomendaram então aos grevistas
tirar nova Carteira de Trabalho e procurar outro emprego enquanto os processos
tramitassem na Justiça. “Meu pai, que era carpinteiro, foi trabalhar na construção
de mansões no litoral. Muitos colegas dele se empregaram em grandes
construtoras. Tinha muito queixada construindo estádio”, lembra Sidnei
Fernandes Cruz, ex-queixada e atual presidente do sindicato em Perus.
Com o golpe de 1964,
a entidade foi uma das primeiras a sofrer intervenção, tendo dirigentes presos
ou respondendo a processos. Uma nova diretoria foi eleita, formada por aqueles
que tinham furado a greve – os quais, ironicamente, comandariam uma paralisação
fracassada em 1965.
Solidariedade
Ao longo dos sete anos, os
grevistas fizeram campanhas e receberam apoio de organizações. Entre 1962 e
1963, diversos setores, como professores e estudantes de Medicina da
Universidade de São Paulo (USP), iam a Perus atender os grevistas e seus
familiares. E os acadêmicos do Direito passaram a defender a encampação da
fábrica para cogestão operária. Na falta dos salários dos maridos, as mulheres
organizaram uma cooperativa de costura. Como lembra Tião, eles se encontravam
com frequência para acompanhar os desdobramentos, participar de assembleias e
viagens em busca de sustento e apoio para o movimento. “Enquanto isso, dentro
da fábrica, as jornadas eram intermináveis para manter a produção, com muitos
operários chegando a morrer de exaustão”, lembra o aposentado.
A retomada da
produção logo depois da greve, com a substituição de operários, demonstra a
simplicidade das rotinas grosseiras e penosas. “A política de rebaixamento da
qualidade dos serviços de manutenção estava associada a um padrão bárbaro de
operação pela administração Abdalla”, aponta Elcio. As condições de trabalho
eram tão ruins que muitos adoeciam e morriam. A exposição à poeira causava
silicose, grave doença pulmonar, que pode avançar para o câncer, como aconteceu
com o pai de Elcio Siqueira e pode ter ocorrido com o pai de Sidnei Fernandes
Cruz.
Com a simpatia da opinião pública, que acompanhava os desdobramentos da greve, o sindicato percebeu o espaço para denunciar Abdalla também como corrupto. Em 1966, com a queda de Ademar de Barros – que havia retornado em 1963, no lugar de Carvalho Pinto –, acabou a perseguição policial aos trabalhadores.
A admiração por aqueles operários, conforme pesquisadores, se devia principalmente à sua forma de luta, baseada na não violência ativa, que mais tarde seria chamada Firmeza Permanente. Preconizada por Mário Carvalho de Jesus, advogado do sindicato, consistia em resistir sem aceitar nenhuma provocação da polícia.
A postura combinava ideias do indiano Mahatma Gandhi (1869-1948) e do dominicano padre Lebret (1897-1966), teólogo francês que aproximou pensamento cristão e ação econômica para uma sociedade mais justa. Tal comportamento lembrava o dos queixadas, porcos selvagens que só reagem ao agressor quando reunidos em manada – daí o apelido dos operários e de seu sindicato.
O Sindicato dos Queixadas chegou a associar 99% dos trabalhadores. Outro traço peculiar era a solidariedade a outros movimentos, como os da Rhodia, da Fiação e Tecelagem Santo André e da Usina Miranda. Mais tarde, na época das grandes greves do ABC paulista, os queixadas denunciaram à Organização Internacional do Trabalho (OIT) a repressão àqueles sindicatos.
Só em 1967 o governo estadual reconheceu o direito de greve dos 400 trabalhadores estáveis, que foram reintegrados dois anos depois. A fábrica teria de pagar os salários correspondentes aos sete anos. A luta continuou com denúncias de fraudes contra Abdalla e a reivindicação da cogestão da fábrica. A greve foi considerada legal apenas em 1975, quando o governo federal pagou os salários referentes aos 2.448 dias de paralisação e interveio na fábrica.
Naquele ano, houve grandes passeatas em Perus contra a poluição, todas apoiadas pela Igreja Católica e reprimidas pelo Dops, que usou o episódio como pretexto para expulsar missionários estrangeiros. Em 1974, os trabalhadores exigiram o confisco total dos bens de Abdalla, o pagamento dos salários atrasados e a instalação de filtros nas chaminés. Logo surgiram movimentos pelo fechamento da fábrica e por medidas de compensação à população por tanto sofrimento com a poeira.
Ideal presente
Em 1979, uma área confiscada pela União foi transferida à prefeitura paulistana e transformada no Parque Anhanguera, quase 20 vezes maior que o Ibirapuera. Em 1983, quando J.J. Abdalla já estava afastado da gestão (ele morreria cinco anos depois), seu sobrinho Antonio João Abdalla Filho, o multimilionário e playboy Toninho Abdalla, desativou a estrada de ferro e as minas de calcário. Agonizante, a fábrica foi fechada em 1987.
Para Elcio Siqueira, a paralisação de 1962, que a princípio era moderada, limitada a aspectos trabalhistas, radicalizou-se com o tempo. “Os trabalhadores lançaram a proposta de desapropriação da fábrica, que devia muitos impostos, e sua cogestão pelos operários”, diz.
Para o governo Carvalho Pinto, a fábrica era inviável e o estado temia abrir um precedente: encampar uma fábrica toda vez que trabalhadores e patrões não se entendessem. Para Sidnei Fernandes Cruz, a desapropriação não ocorreu por pressões do cartel do cimento. “A medida permitiria a oferta de cimento a preços inferiores aos dos outros fabricantes.”
Após 50 anos do começo da greve, o ideal daqueles operários ainda move toda a comunidade. Só que, em vez da defesa de direitos trabalhistas, envolve a construção de uma universidade pública e de um centro de cultura operária no terreno tombado, onde as ruínas da antiga fábrica resistem às tentativas de depredação. Já existe lei para isso. O que falta é a desapropriação do terreno, que está na mira da especulação imobiliária.
O grupo Abdalla quer transformar o espaço em um shopping center ou condomínio residencial. Já o Ministério da Educação planeja construir ali um campus do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo. Apesar de bem-vindo, está longe do campus defendido pelo movimento Pró-Universidade Pública da Zona Noroeste. “Queremos uma universidade popular capaz de socializar o conhecimento acadêmico com a comunidade e dialogar com os saberes locais”, diz Marcos Manoel dos Santos, professor e militante do movimento
A luta conta ainda com o professor Euler Sandeville Júnior, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP. Seu interesse pelo significado da fábrica o fez levar para o bairro parte do projeto chamado Poéticas e Conflitos na Paisagem. Todo sábado, na comunidade cultural Quilombaque, alunos da graduação assistem a uma aula aberta também ao público. ”A fábrica é o resgate de uma memória do trabalho, dos próprios meios de produção do espaço urbano e de uma fase importante da construção da cidade”, define o professor, que acredita no potencial educativo e cultural do espaço.
Para muitos, a greve dos queixadas foi uma derrota em especial para os trabalhadores que não tinham estabilidade e deixou lembranças amargas entre aqueles que não concordavam com os rumos que tomou. “Havia quem quisesse apenas o atendimento da pauta de reivindicação, sem apelar para uma batalha tão claramente contrária à ordem burguesa”, diz Elcio. Tião de Perus, que não tinha estabilidade no emprego, pensa diferente. “Não fracassamos. O movimento nos ensinou muitas coisas, como a solidariedade.”
Rede Brasil Atual
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